MAGIA: A RELIGIÃO DO
“OUTRO”
Francisco Santos Silva
Centro de História da Cultura,
Faculdade De Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa
Resumo: Este artigo procura
explorar a palavra “magia” no contexto do estudo científico da religião
e, mais geralmente, no contexto das ciências sociais e humanas. Como tal, é
procurado, neste artigo, fazer uma pequena história do uso do termo, de forma a
compreender a sua carga política, social e histórica. Como se verá ao longo do
artigo, o termo “magia” tem sido utilizado historicamente quase sempre de forma
pejorativa de forma a descrever a “religião dos outros”. Esta carga xenófoba,
bem como o fato de aquilo que é descrito como “magia” poder ser facilmente
integrável dentro do fenômeno geralmente descrito como religião, leva à
conclusão de que o termo “magia” é um termo sem utilidade ética no estudo do fenômeno
religioso.
Palavras chave: Magia, Religião, Metodologia
Magic: The Religion of the “Other”
Abstract: This article seeks to explore the
usefulness of the word “magic” in the context of the scientific study of
religion and more broadly in the context of the humanities. As such, an attempt
is made in this article to outline a short history of the use of the term so as
to understand its political, social and historical baggage. As will be seen
throughout the article, the word “magic” has historically been used
consistently in a pejorative fashion as a way to describe “the religion of
others”. This xenophobic charge and the fact that which is described as “magic”
can easily be integrated in the phenomenon of religion, leads to the conclusion
that the term “magic” is a term without etic usefulness in the study of the
religious phenomenon.
Keywords: Magic, Religion, Methodology
Quando o antropólogo Bronislaw
Malinowski escreveu o ensaio "Magic, Science and Religion"2, em 1925,
estes três termos - Magia, Ciência e Religião - parecem ser possuídos de uma
identidade própria e estanque. No entanto, este nem sempre foi o caso - não o
era quando da escrita de Malinowski, nem o é hoje. A distinção entre ciência e
religião, bem como entre ciência e magia parece, pelo menos na modernidade, ser
pouco contenciosa; a ciência trata do mundo físico e natural, enquanto os
outros dois termos se interessam pelo metafísico e sobrenatural. Esta é uma
distinção bastante recente na história da humanidade, visto que no período
pré-iluminismo as ideias de ciência e religião estavam bastante misturadas. No
período do Renascimento, a ciência estava também bastante unida à chamada
"magia natural", ou seja, a utilização de processos naturais para
fins mágicos, no qual se incluem ideias hoje vistas como "mágicas"
cva cristã, desenhar um círculo no chão e queimar incenso,
de forma a contatar com anjos ou deus é uma prática mágica, enquanto ajoelhar,
juntar as mãos e rezar para o mesmo fim é uma prática religiosa. No mesmo
princípio, a transmutação do chumbo em ouro é magia, enquanto que a
transmutação de pão e vinho em carne e sangue é religião. Este último exemplo
levou, de fato, durante a reforma protestante, a acusações pela parte de alguns
protestantes de práticas mágicas pela Igreja Católica. Como mencionado em cima,
é uma questão de perspectiva.
Não é a intenção deste artigo
minimizar a religião ou a magia, mas, sim, colocar a questão de se existe de
fato a necessidade desta distinção entre magia e religião. Será uma distinção
útil? Devemos manter distinções que servem como acusação, sendo o termo “magia”
utilizado quase como insulto para práticas pela parte daqueles que não
compreendem ou desaprovam do ato a que chamam “mágico”? De forma a podermos dar
uma resposta a estas perguntas teremos de começar por analisar como as relações
entre a religião, e aquilo a que se escolheu chamar “magia”, num contexto
histórico, tanto no período pré-moderno como na época moderna e contemporânea.
Seguidamente, veremos como as ideias de religião e magia foram distinguidas no
contexto acadêmico no séculos XIX e XX, e, por último, determinar como a
utilização destes termos foi usada como uma ferramenta de poder cultural social
e político. Apenas após examinarmos estes fatores poderemos chegar a uma
conclusão, no que respeita à utilidade da palavra “magia” como a descrição de
qualquer fenômeno independente ou até se este fenômeno sequer existe como algo
independente da religião.
Relação entre magia e religião:
Antiguidade ao séc. XVII
Desde a antiguidade clássica, que
os termos “magia”, para a prática, ou “mago”, para o praticante, se referem a
práticas religiosas realizadas por outros que não aqueles que utilizam o termo.
O termo tem origens Persas e refere-se às práticas Zoroastrianas da Pérsia
Antiga, e é portanto um termo utilizado pelos gregos como forma de descrever as
práticas de alguém que é visto como “outro”. A palavra é utilizada na Grécia
Antiga como designação de ritos cuja “legitimidade era contestada e,
frequentemente, pelo menos em
alturas posteriores, marginalizada e proibida”4. É, portanto, uma palavra que
demonstra um certo desprezo pela atividade religiosa do “outro” – os gregos
defendem a sua superioridade espiritual definindo as religiões não gregas como
magia. Outro termo com o mesmo significado, tanto denotativo como conotativo, é
o termo chaldaioi/chaldaei que, tendo o mesmo significado de magia e mago, se
refere neste caso aos caldeus, sendo outra vez um termo que revela uma
xenofobia religiosa pela parte dos gregos antigos. É interessante ver como esta
utilização do termo é semelhante à forma como ele será utilizado ao longo da
história, tanto pelas religiões dominantes como pelos poderes coloniais. O
termo “magia” revela, então, desde a sua origem, uma afinidade com um desprezo
pela religião ou práticas daqueles que são considerados estrangeiros ou
“outros” pela cultura dominante. Rapidamente, o termo “magia” deixa de ser
especificamente descritivo de práticas de outros povos para passar a designar
práticas religiosas dentro das próprias culturas greco-latinas que não se
coadunam com a perspectiva da maioria culturalmente dominante. Aparecem, então,
na Grécia os termos goétia, para descrever a arte de se comunicar com os mortos
(e, mais tarde, demônios), e pharmakeútria, que descreve “uma mulher que usa
ervas e drogas”. No latim, os termos saga (bruxa), veneficus (pessoa que usa
venenos) e, mais tarde, maleficus (pessoa que faz o mal) servem ao mesmo
propósito de descrição de práticas não reconhecidas pela maioria culturalmente
dominante5.
Poder-se-ia dizer que, na Era
Medieval, o “feitiço volta-se contra o feiticeiro” e é, principalmente, no
ataque pela parte de cristãos aos resquícios do paganismo clássico que o termo
magia é utilizado. O mesmo paganismo clássico que utilizou o termo como
descrição de religiões estrangeiras é agora sujeito à acusação de magia por um
novo paradigma cultural representado pelo cristianismo. Santo Agostinho é um
dos mais influentes expoentes das ideias anti-magia; no livro X da Cidade De
Deus, o próprio Agostinho fala sobre a utilização do termo magia quando
descreve os pensadores neo-platónicos:
[...]pois eles desejam diferenciar
entre aqueles a que as pessoas chamam magos, que praticam necromancia, e estão
viciados em artes ilícitas e condenados, e aqueles outros que parecem ser
dignos de elogio pela sua prática de teurgia, – a verdade, no entanto, sendo
que ambas as classes são escravas dos ritos enganadores dos demônios que
invocam sob o nome de anjos.6
Agostinho reforça então a
perspectiva de que a atribuição da etiqueta “magia” é dependente do ponto de
vista do escritor - para Agostinho, como cristão, a teurgia é também magia, tal
como a necromancia, pois não está inserida no contexto cristão e, logo, as
práticas utilizam forças demoníacas. Outra contribuição importante de Santo
Agostinho, para a definição daquilo que veio a ser visto como magia, está na
sua associação da magia à “teoria dos sinais” no texto De Doctrina Christiana
no qual associa a Magia à idolatria e demonolatria:
devido ao uso de sinais direcionados
ambiguamente, que demônios podem manipular e usar para enganar humanos, a magia
pode ser vista como uma espécie de linguagem que os humanos e demônios têm em
comum7.
Nasce aqui, então, a ideia
estereotipada do mago como aquele que faz sinais misteriosos de forma a contatar
seres sobrenaturais, uma ideia que informa as percepções de magia até aos dias
de hoje e que leva a grande parte das distinções entre o que é religião e
magia. É, no entanto, no fim da época medieval e no Renascimento, que começam a
aparecer perspectivas mais positivas no que diz respeito à magia, e isto sucede
devido a criação de uma nova subdivisão dentro do campo chamado de “magia” -
para além da “magia ritual” de que Agostinho fala, desenvolvem-se teorias agora
respeitantes à “magia natural”. Esta “magia natural” não utiliza a mediação de
seres sobrenaturais como a ritual, mas, sim, as propriedades ocultas no mundo
físico. Bons exemplos desta “magia natural” estão presentes em fenómenos como a
astrologia, alquimia e também certas formas de medicina. Estas ideias supõem
uma relação de correspondência e inter-relação entre elementos naturais, o ser
humano, e o mundo metafísico, mas não dependem da intervenção direta do
sobrenatural. Nesta perspectiva, a “magia” torna-se quase uma ponte entre a
religião e a ciência, utilizando métodos que mais tarde se tornarão parte
integrante do método científico, mas a cuja eficácia subjazem teorias derivadas
do hermetismo e neo-platonismo pagão, no que respeita à interligação dos vários
planos de existência (o que justifica até aos dias de hoje, por exemplo, as
influências planetárias nas vidas humanas, segundo os crentes nas ideias
astrológicas). O Renascimento é uma época em que muitos dos textos da
Antiguidade Clássica são redescobertos pelos europeus, levando a um
ressurgimento das ideias herméticas e neo-platonicas que garantem essa
justificação à nova “magia natural”. É, também nesta época, que os primeiros
estudos sistemáticos daquilo a que se chama magia começam a surgir abertamente
na Europa, como a De Occulta Philosophia Libri Tres de Cornelius Agrippa ou a
Magia Naturalis de Giambattista della Porta, mostrando uma maior abertura
cultural e social a novas ideias relacionadas com a “magia”, que pela primeira
vez deixa de ter um sentido completamente pejorativo, passando também a ser
associada ao renascimento das ideias clássicas.
Relação entre magia e religião:
séc. XVIII a XXI
A modernidade herda do
renascimento as várias ideias de magia desenvolvidas anteriormente, agora, já
com uma forte distinção entre a “magia sobrenatural” e a “magia natural”, que
passa a ser vista como uma proto-ciência, visto que, a partir da Idade Média e
até à Modernidade foi-se, progressivamente, afastando da “magia ritual” ou
sobrenatural. No entanto, a noção de magia como a “superstição dos outros”
continua bem firme; na Encyclopédie de Diderot e d'Alembert publicada em 1765,
a definição de magia inclui o seguinte excerto:
Como uma ciência negra, é honrada
em países onde o barbarismo e a rudeza governam. Os Lapões e, em geral, os
povos selvagens cultivam a magia, e têm-na em grande consideração8.
Os editores da Encyclopédie dividem
a ideia de “magia” em três grupos:
Primeiro, “magia divina”, que
consiste de revelações divinas ao homem santo, vista de forma positiva se bem
que levantando grandes dúvidas aos editores da Encyclopédie;
Segundo, “magia natural”, que é
vista também de forma positiva, como tendo trazido avanços inestimáveis à
humanidade através do estudo aprofundado da natureza e que consideram estar a
ser, corretamente, substituída pela ciência, e que os cientistas de hoje (séc.
XVIII) irão também parecer magos para sociedades mais avançadas no futuro
(note-se que a ideia de mago aqui implica atraso).
Terceiro, “magia sobrenatural”,
a que se chama propriamente magia. Esta última merece ter a sua definição
extensamente citada de forma a compreendermos a perspectiva iluminista em
relação à magia:
Esta magia negra, que ofende
sempre, que leva ao orgulho, ignorância e à rejeição da ciência; é esta que
Agrippa incluiu sob as etiquetas “celestial” e “cerimonial” [ou ritual]. Não é
ciência se não no nome e não é nada se não um amontoado confuso de princípios
obscuros, ambíguos e inconclusivos, práticas que eram geralmente arbitrárias e
infantis, a inutilidade das quais é demonstrada pela natureza das coisas.
Agrippa que era também um
filósofo para além de mago, utilizou o termo “magia celestial” para descrever a
astrologia judiciária que atribuía a espíritos algum domínio sobre os planetas,
e aos planetas algum domínio sobre os homens. Também afirmou que as diferentes
constelações influenciavam as tendências, destino e boa ou má fortuna dos
homens. Baseado nestas fracas fundações, construiu um sistema ridículo, que não
se atreve a aparecer hoje em dia excepto no “Almanaque de Liége” e outros
livros similares. Estas patéticas colecções de material alimentam preconceitos
e erros populares9.
Nessa citação, quase se ouvem os
ecos distantes dos argumentos anti-religião utilizados por escritores
contemporâneos do séc. XX e XXI como Richard Dawkins. A visão da magia como
entrave à ciência e como algo que alimenta erros e preconceitos nas mentes
populares foi hoje substituída, numa época mais permissiva, pelas mesmas ideias
aplicadas à religião em vez da magia.
É, no entanto, na fase
pós-iluminismo, particularmente, a partir da segunda metade do séc. XIX, que
surgem autores e grupos organizados que se começam a definir como sendo magos
ou praticando magia, frequentemente, como forma complementar à religião ou,
mais raramente, como reação à religião imposta. Um dos primeiros exemplos desta
reabilitação da magia como sistema está presente no escritor francês Eliphas
Lévi (1810-1875), que através das suas obras desenvolve uma ideia coerente de
magia em que a força de vontade do homem tem o poder de alterar o mundo,
baseado em ideias de microcosmo e macrocosmo que advêm do hermetismo dos
primeiros séculos da nossa era, e filtradas pelo Renascimento. Será este mesmo
Eliphas Lévi a influenciar tremendamente a primeira ordem secreta que se
intitula de ordem magica, a Aurora Dourada ou Golden Dawn inglesa; o fundador
da ordem, Samuel Mathers, era um profundo admirador de Lévi, como se pode ver
pelas introduções das suas obras, que citam Lévi frequentemente. Vários membros
da ordem, que terão um impacto forte no desenvolvimento das ideias de magia no
séc. XX e XXI, são também admiradores de Lévi. A.E.Waite, escritor e co-criador
do baralho de tarot Raider-Waite traduziu uma grande parte dos livros de Lévi
para inglês e um dos mais famosos membros da ordem da Golden Dawn, Aleister
Crowley, acreditava ser uma reencarnação de Lévi. Mas se Lévi influenciou a
Golden Dawn e o seu currículo mágico, a própria Golden Dawn foi ainda
substancialmente mais influente do que os escritos de Eliphas Lévi, como afirma
Hanegraaff:
A “Hermetic Order of the Golden
Dawn” [Ordem Hermética da Aurora Dourada] é uma ordem ocultista do virar do
século [XIX para XX]. Todos os grupos que praticam magia ritual no séc. XX são
dependentes do impressionante sistema de rituais que foi desenvolvido pelo seu
membro mais criativo, Samuel Liddell McGregor Mathers11.
O que esta afirmação implica é
uma dívida pela parte de grupos religiosos Neo-Pagãos, Wiccans, membros de grupos
de Magia Cerimonial, Thelemitas, entre outros, à Golden Dawn devido à sua
cristalização do ritual mágico no contexto desta ordem. Estas práticas
continuam a ser populares hoje, e, desde o advento da Internet, estes grupos
religiosos/mágicos têm-se espalhado a um ritmo bastante rápido.
Deparamo-nos aqui com uma questão
nova no caso da relação entre religião e magia. Neste caso, temos grupos que se
auto-identificam, orgulhosamente, com a magia, em vez de a palavra ser um termo
pejorativo dado por outros. Este fenômeno é, de certa forma, semelhante ao que
acontece com a palavra “pagão”, também adotada pelos Neo-Pagãos, e que tem uma
história semelhante de uso pejorativo, quando aplicada, por exemplo, pela
maioria cristã. Em ambos os casos, existe um elemento de “recuperação” de
palavras que foram feitas impuras pela forma como foram utilizadas, bem como um
elemento de distanciamento da maioria culturalmente dominante - um certo
elemento de “choque”. Não deixa, no entanto, de ser um termo êmico, aplicado pelos praticantes àquilo que
eles próprios praticam, e que, por isso, deve ser respeitado. Isto, no entanto,
não implica a sua distinção do conceito de religião, visto que Neo-Pagãos,
Wiccans e Thelemitas se considerariam membros de religiões que expressam a sua
religião através de práticas mágicas. O mesmo não acontece quando, por exemplo,
no contexto de estudos antropológicos, se aplica o termo “magia” a povos que
não utilizam esse mesmo termo para definir as suas práticas religiosas. Veremos
alguns exemplos disto na secção seguinte.
Como o mundo acadêmico tem visto
a distinção entre magia e religião
No seu artigo introdutório sobre
“Magia”, no Dictionary of Gnosis and Western Esotericism, Wouter Hanegraaff
divide as perspectivas que levaram ao conceito de magia utilizado correntemente
no mundo académico em três teorias12. A primeira destas teorias é representada
por E.B. Tylor (1832-1917) e J.G. Frazer (1854-1941), tendo Tylor desenvolvido
uma teoria “evolucionista” da sociedade humana, segundo a qual o homem
evoluiria de um estado animista, para um estado politeísta, monoteísta e por
fim culminaria no triunfo da ciência. A prática de magia estaria então
relacionada com os dois primeiros estados da humanidade (animismo e
politeísmo). No entanto, para Tylor, “magia” é independente da religião, sendo
vista mais como “má ciência” do que como “má religião”, como se pode ver pela
seguinte descrição da “ciência oculta” da astrologia:
[…] a astrologia depende de um
erro da primeira ordem, o erro de confundir uma analogia ideal com uma relação
real. A astrologia, pela imensidão da sua influência ilusória na humanidade, e
pelo período relativamente moderno até ao qual se manteve como um ramo honrado
da filosofia, pode-se arrogar do lugar mais elevado entre as ciências ocultas.
Não pertence aos níveis mais baixos de civilização, apesar de um dos seus
conceitos fundamentais, a das almas ou inteligências animadas dos corpos
celestiais, estar enraizado no mais profundo da vida selvagem13.
Mais uma vez, a “ciência oculta”
e, por analogia, a magia, estão associadas a processos mentais “selvagens”.
Frazer viria a simplificar as ideias de Tylor criando um ciclo evolutivo com
três passos: magia-religião-ciência. A humanidade, no seu estado mais
primitivo, pratica magia; no seu estado intermédio, segue a religião e, num
estado mais evoluído, seguirá a ciência. No entanto, nunca é dada uma distinção
satisfatória entre religião e magia; para Frazer, a magia é distinta da
religião devido à ideia de “simpatia” ou seja, que existem correspondências
entre coisas semelhantes e que, afetando umas, as outras serão também afetadas
(um exemplo simples seria espetar agulhas num boneco de forma a afectar uma
pessoa). Isto não explica, no entanto, como pode, então, ser considerada
religião o rezar perante uma imagem da divindade, por exemplo, sendo a imagem
também um caso de processo simpático, um crucifixo sendo uma imagem daquilo que
se pretende contatar, algo semelhante ou “simpático” ao alvo da oração.
Uma segunda teoria da magia
discutida por Hanegraaff no artigo acima mencionado foi desenvolvida por Marcel
Mauss (1872-1950) e Émile Durkheim (1858-1917). Em oposição a Frazer e Tylor,
Mauss define magia não como simplesmente a ação “simpática”, mas, sim, como o ato
ritual privado:
um rito mágico é qualquer rito
que não faça parte do culto organizado – é privado, secreto, misterioso e
aproxima-se dos limites do rito proibido.
Esta teoria, que é depois
suportada por Durkheim, parece, à primeira vista, evitar alguns dos problemas
de eurocentrismo presentes na teoria Tylor/Frazer. No entanto, parece ter pouca
base empírica, como escreve Hanegraaff:
(…) as premissas básicas para a
sua teoria [de Mauss] são de facto derivadas inteiramente das categorias
tradicionais da heresiologia Cristã: sendo adotados, de forma acrítica,
preconceitos paranoicos em relação à magia como as práticas do “outro”
não-socializado, como fundação para um estudo supostamente acadêmico daquilo
que a magia é.
Conseguimos ver, então, como a
teoria de Mauss/Durkheim cai, não só no mesmo erro que Tylor/Frazer, mas também
nos mesmos preconceitos de S. Agostinho e de Diderot - a magia é a “crença
ilógica do outro” seja o outro o “selvagem” ou “primitivo” ou, no caso de
Mauss/Durkheim, o que existe nas margens da sociedade e da instituição
religiosa. Este princípio parece ser aceite, tacitamente, sem uma discussão
convincente ou profunda que defina a magia em oposição à religião através de
conceitos externos ou éticos16 à própria religião dominante.
A terceira teoria da magia tem as
suas origens em Lévy-Bruhl e na ideia de “participação”, uma ideia que
Lévy-Bruhl associa à mente Pré-Moderna em que causas e efeitos estão, de tal
forma associados, que são vistos como idênticos e consubstanciais, logo
participando um do outro. Apesar de Lévy-Bruhl não ter desenvolvido esta teoria
com a ideia de magia em mente, foi, no entanto, adaptada por outros escritores,
como Malinowski, de forma a identificar “participação” com “magia”, de certa
forma, voltando à ideia de Frazer da magia como um processo de “simpatia”. A
identificação de magia com processos mentais pré-modernos reforça a ideia
evolucionária, que põe a magia num ponto evolutivo anterior ao do homem
moderno, bem como os seus praticantes num ponto inferior ao “homem moderno”. A
força política desta ideia foi de grande utilidade para as potências coloniais
e para a sua “missão civilizadora”: o colonialista que define a si próprio como
mais evoluído é justificado através destas definições na conversão e controle
daquilo a que chamavam povos “primitivos”, pois a sua ação é benéfica para os
colonizados. Note-se, também, que todas estas teorias são desenvolvidas por
pensadores oriundos de países colonizadores, seja o Reino Unido ou a França,
dos quais as teorias irradiaram para o resto da Europa colonialista durante a
primeira metade do séc. XX. Não é, até ao início do séc. XXI, que a aceitação
tácita da dicotomia magia/religião começa a ser seriamente posta em causa,
visto que nenhuma das teorias, anteriormente desenvolvidas, é intelectualmente
satisfatória no que diz respeito à distinção magia/religião. Hanegraaff
16 Ético é aqui utilizado no
sentido da dicotomia êmico/ético, ou "insider/outsider", um conceito
êmico sendo um conceito que tem as suas origens dentro da própria perspectiva
religiosa e um conceito ético sendo um conceito externo à concepção religiosa.
Para a religião ser analisada de um ponto de vista das ciências humanas os
conceitos devem então ser éticos de forma a não estarem comprometidos com
nenhuma perspectiva religiosa.
faz uma boa síntese desta nova
perspectiva, neste caso, em relação à ideia de magia num contexto ocidental,
mas que é igualmente aplicável a povos não ocidentais:
Uma abordagem mais consistente e
historicamente mais produtiva seria começar por reconhecer o pluralismo
religioso que sempre caracterizou a cultura ocidental, e analisar a magia como
um conceito em grande parte polemico, que tem sido usado por vários grupos
comprometidos religiosamente ou para descrever as suas próprias crenças e
práticas religiosas, ou – mais frequentemente – para desacreditar as dos
outros.
A utilidade da palavra magia
resume-se então à utilidade de um termo émico, que apenas faz sentido no
contexto do discurso de um grupo religioso, e não como categoria de analise acadêmica.
É no fundo uma palavra que define uma opinião teológica sobre as práticas dos
outros, ou em casos particulares (como Neo-Paganismo, Wicca ou Thelema por
exemplo) sobre suas próprias práticas. Na secção seguinte, analisaremos, então,
as razões para rejeitar a palavra “magia” como termo ético independente do
termo “religião”.
Como utilizar a palavra “magia”
Como temos visto, ao longo de
todo este artigo, a palavra “magia” apresenta-se, quase sempre, como uma
palavra problemática utilizada como munição teológica ou política seja pela
religião instituída ou pelo poder político dominante (como no caso dos poderes
coloniais, ou até governos centrais, como forma de atacar ou negar a validade
das crenças de minorias). Como vimos acima, é, também, por vezes, utilizada
como um termo de auto-descrição por religiões minoritárias no mundo ocidental,
muitas das quais têm uma ideia de contra-cultura como uma das fundações do seu
pensamento, fazendo então sentido a utilização de termos que são desprezados
pela cultura dominante (compare-se o termo “magia” aos termos “pagão” e “bruxa”
ou “bruxaria”, termos com histórias e conotações semelhantes e utilizados por
estes mesmos grupos). Torna-se, então, aparente a dificuldade na utilização da
palavra “magia”, como um termo de utilidade descritiva no estudo científico da
religião ou a sua utilização em qualquer ciência social e humana. Não se trata,
sequer, de uma questão sobre o fato de a magia ser ou não independente da
religião como conceito, ou se deve ser vista como uma sub-divisão do fenômeno
religioso. De facto, a palavra “magia”, como é geralmente utilizada, não pode
ser vista senão como religião ou ritual religioso, ou seja, deve ser
completamente fundida dentro do termo “religião”. Mesmo quando descrita pelos
praticantes como “magia”, tal termo deve ser visto como um descritor émico, ou
seja, uma descrição que o grupo faz de si próprio, mas não um termo de
utilidade categorizante e descritiva do ponto de vista científico, tal como um
grupo que se descreve como o “verdadeiro cristianismo”, por exemplo, deve ser
visto como um grupo que êmicamente se descreve como tal, sem que isto implique
que a categoria e descrição científica do grupo seja realmente a do “verdadeiro
cristianismo”. O termo “magia” pode então ser tratado como qualquer outro termo
que descreva um juízo de valor, importante quando da análise do discurso êmico,
mas irrelevante para a descrição acadêmica.
Outro elemento importante, que
leva ao descarte da palavra “magia”, como termo útil à descrição analítica, é a
própria metodologia moderna para o estudo do fenômeno religioso. O estudioso acadêmico
que adota uma posição ética (externa ou de “outsider”), de forma a ser o mais
imparcial possível na sua analise do fenômeno religioso, não se pode identificar
pessoalmente com o seu objeto de estudo. Em vez disso, o estudioso tenta chegar
a conclusões que sejam tanto quanto possível “científicas”, ou seja,
observáveis e falseáveis18. Por esta mesma razão, o estudioso ético não deve
fazer julgamentos de valor, no que diz respeito à verdade ou inverdade de
afirmações metafísicas, sendo estas afirmações que não podem, pela sua própria
natureza, nem ser observadas nem falseadas por outros estudiosos. Como tal, a
realidade dessas afirmações pode ser um assunto para o discurso êmico, mas não
é passível de ser resolvido através da discussão acadêmica. O estudo científico
da religião procura estudar aquilo que é determinável, através dos meios
disponíveis ao cientista neste mundo e não fazer conjecturas sobre o “outro
mundo”. Isto leva a que a atitude adotada, geralmente para o estudo da
religião, seja uma de agnosticismo metodológico, ou seja, a suspensão do
julgamento pessoal do estudioso sobre um fenômeno religioso, enquanto está no
seu papel de estudioso. É importante, também, notar que a palavra, aqui
utilizada, é “agnosticismo” e não “ateísmo”, não implicando portanto uma
atitude hostil em relação à religião, apenas numa suspensão do julgamento sobre
aquilo que é impossível de provar ou “desaprovar”. A ideia, que subjaz ao termo
“magia”, depende, sempre, de um julgamento de valor sobre a validade da prática
religiosa e como tal é incompatível com a perspectiva do agnosticismo
metodológico; quando o estudioso utiliza a palavra magia para descrever um fenômeno
está a fazer um julgamento de valor, mesmo que inconsciente, em relação à
efetividade metafísica do ato mágico. Do ponto de vista do agnosticismo
metodológico a prática, dita mágica, ou, por exemplo, o ritual praticado no
contexto da eucaristia cristã tem igual validade, pois a diferença que faz de
um magia e do outro religião, é uma diferença ao nível metafísico e, logo, não
mensurável de um ponto de vista científico.
Para além destes problemas
metodológicos, existe também uma carga histórica e política do termo, que leva
a que seja preferível para o estudioso pô-lo de parte, de forma a não ser
associado não só às atitudes xenófobas que levaram à origem e utilização do
termo desde a Grécia Antiga até ao Período Colonial, mas também às próprias
políticas de diferenciação e de justificação da “missão civilizadora”
utilizadas pelos poderes coloniais. O termo “magia”, que historicamente pode
ser definido como “a religião dos outros”, é sempre politicamente incorreto, a
não ser quando este é utilizado em relação aos grupos que utilizam o termo para
se descrever a si próprios.
Por último, surge-nos a
particularidade daquilo a que se chamou “magia natural”, sendo um conjunto de
sistemas do período medieval tardio e do Renascimento que, segundo os seus
defensores, não utilizava métodos sobrenaturais para os seus resultados efetivos.
No entanto, esta “magia natural” não é também um termo independente, visto que
em certos casos (astrologia, por exemplo), dependia de ideias neo-platónicas e
herméticas que eram, sem dúvida, religiosas e, em outros casos (alguns
resultados alquímicos e medicinais), eram proto-científicas, sendo muitas vezes
resultados que mais tarde vieram a ser codificados e explicados através da
ciência. Ao invés da magia, no seu sentido mais amplo, a “magia natural”
dissolve-se não só na religião, mas também na ciência.
Conclusão
Toda a carga política, social e
cultural da palavra "magia", acima discutida, leva à conclusão que,
embora seja uma palavra que tem de ser reconhecida como fazendo parte
integrante do discurso êmico sobre religião e, logo, é um sujeito de análise
como tal para o estudioso das religiões, não pode ser vista como uma categoria
com existência independente da religião. De fato, podemos facilmente chegar à
conclusão que toda a "magia" que lida com elementos sobrenaturais é,
de fato, motivada pelo sentimento religioso e, como tal, é parte integrante do
largo e variado fenômeno da religião. Como vimos, também acima, existem alguns
casos em que algo que se descreve como "magia" não lida com esses
elementos sobrenaturais, sejam alguns elementos da "magia natural",
que podem ser considerados como proto-ciência ou até a própria magia como arte
de palco ou ilusionismo. Esta ideia da magia, como ilusionismo no contexto de
palco, ajuda também a ilustrar a forma como a palavra foi historicamente usada.
Neste caso, não estritamente como "a religião do outro", mas como
ilusão, a realização de falsos milagres para o entretenimento de um público.
Esta ideia de falsos milagres, ou falsa religião é uma ideia que esteve sempre
colada à etiqueta "magia", sendo portanto uma palavra que descreve um
ponto de vista teologicamente informado que só faz sentido na perspectiva do
crente, na separação que faz entre a sua religião e o que lhe é estranho, ou
"mágico". Para um investigador que tente ser isento na sua apreciação
do fenômeno religioso, adotando o agnosticismo metodológico, esta distinção
deixa rapidamente de fazer qualquer sentido, quando separada da perspectiva
teológica que lhe é associada. A verdade é que acabamos por não ter uma definição
abrangente e não pautada por perspectivas teológicas que se aplique ao fenômeno
de "magia" como algo realmente distinto do fenômeno religioso em
geral. A única definição constante para o fenômeno de magia, desde a Grécia
Antiga até ao séc. XX, parece ser a expressão religiosa daqueles que se
encontram à margem da sociedade culturalmente dominante, sejam estes os persas
ou caldeus em relação aos gregos, os povos colonizados em relação a
Inglaterra, França ou Portugal, a
religião popular das mezinhas e remédios tradicionais em relação à elite
cultural, ou mais recentemente a auto-descrição da expressão religiosa daqueles
que se consideram a si próprios como existindo nas margens da cultura dominante
(Pagãos, Wiccans, Thelemitas, praticantes de Magia Ritual entre outros). É a
religião à margem daqueles que escrevem a história, é a religião dos outros.
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