domingo, 22 de junho de 2014

A Tradição Oral e sua Metodologia

por J. Vansina.

Neste artigo, uma análise completa de como utilizar o expediente da História Oral no caso da História e da Cultura Africana in História Geral da África. São Paulo; Ática, 1981 volume 1

As civilizações africanas, no Saara e ao sul do deserto, eram em grande parte civilizações da palavra falada, mesmo onde existia a escrita, como na África ocidental a partir do século XVI, pois muito poucas pessoas sabiam escrever, ficando a escrita muitas vezes relegada a um plano secundário em relação às preocupações essenciais da sociedade. Seria um erro reduzir a civilização da palavra falada simplesmente a uma negativa, "ausência do escrever", e perpetuar o desdém inato dos letrados pelos iletrados, que encontramos em tantos ditados, como no provérbio chinês: "A tinta mais fraca é preferível à mais forte palavra". Isso demonstraria uma total ignorância da natureza dessas civilizações orais. Como disse um estudante iniciado em uma tradição esotérica: "O poder da palavra é terrível. Ela nos une, e a revelação do segredo nos destrói" (através da destruição da identidade da sociedade, pois a palavra destrói o segredo comum).
A civilização oral
Um estudioso que trabalha com tradições orais deve compenetrar-se da atitude de uma civilização oral em relação ao discurso, atitude essa, totalmente diferente da de uma civilização onde a escrita registrou todas as mensagens importantes. Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, Isto é, a tradição oral. A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas. Os Dogon sem dúvida expressaram esse nominalismo da forma mais evidente; nos rituais constatamos em toda parte que o nome é a coisa, e que "dizer" é "fazer".
A oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade. As tradições desconcertam o historiador contemporâneo - imerso em tão grande número de evidências escritas, vendo-se obrigado, por isso, a desenvolver técnicas de leitura rápida - pelo simples fato de bastar à compreensão a repetição dos mesmos dados em diversas mensagens. As tradições requerem um retorno contínuo à fonte. Fu Kiau, do Zaire, diz, com razão, que é ingenuidade ler um texto oral uma ou duas vezes e supor que já o compreendemos. Ele deve ser escutado, decorado, digerido internamente, como um poema, e cuidadosamente examinado para que se possam apreender seus muitos significados - ao menos no caso de se tratar de uma elocução importante. O historiador deve, portanto, aprender a trabalhar mais lentamente, é refletir, para embrenhar-se numa representação coletiva, já que o corpus da tradição é a memória coletiva de uma sociedade que se explica a si mesma. Muitos estudiosos africanos, como Amadou Hampâté-Ba ou Boubou Hama, muito eloqüentemente têm expressado esse mesmo raciocínio. O historiador deve iniciar-se, primeiramente, nos modos de pensar da sociedade oral, antes de interpretar suas tradições.
A natureza da tradição oral
A tradição oral foi definida como um testemunho transmitido oralmente de uma geração à outra. Suas características particulares são o verbalismo e sua maneira de transmissão, na qual difere das fontes escritas. Devido à sua complexidade, não é fácil encontrar uma definição para tradição oral que dê conta de todos os seus aspectos. Um documento escrito é um objeto: um manuscrito. Mas um documento oral pode ser definido de diversas maneiras, pois um indivíduo pode interromper seu testemunho, corrigir-se, recomeçar, etc. Uma definição um pouco arbitrária de um testemunho poderia, portanto, ser: todas as declarações feitas por uma pessoa sobre uma mesma seqüência de acontecimentos passados, contanto que a pessoa não tenha adquirido novas informações entre as diversas declarações. Porque, nesse último caso, a transmissão seria alterada e estaríamos diante de uma nova tradição.
Algumas pessoas, em particular especialistas como os griots, conhecem tradições relativas a toda uma série de diferentes eventos. Houve casos de uma pessoa recitar duas tradições diferentes para relatar o mesmo processo histórico. Informantes de Ruanda relataram duas versões de uma tradição sobre os Tutsi e os Hutu: uma, segundo a qual, o primeiro Tutsi caiu do céu e encontrou o Hutu na terra; e outra, segundo a qual Tutsi e Hutu eram irmãos. Duas tradições completamente diferentes, um mesmo informante e um mesmo assunto! É por isso que se inclui "uma mesma seqüência de acontecimentos" na definição de um testemunho. Enfim, todos conhecem o caso do informante local que conta uma história compósita, elaborada a partir das diferentes tradições que ele conhece.
Uma tradição é uma mensagem transmitida de uma geração para a seguinte. Mas nem toda informação verbal é uma tradição. Inicialmente, distinguimos o testemunho ocular, que é de grande valor, por se tratar de uma fonte "imediata", não transmitida, de modo que os riscos de distorção do conteúdo são mínimos. Aliás, toda tradição oral legítima deveria, na realidade, fundar-se no relato de um testemunho ocular. O boato deve ser excluído, pois, embora certamente transmita uma mensagem, é resultado, por definição, do ouvir dizer. Ao fim, ele se toma tão distorcido que só pode ter valor como expressão da reação popular diante de um determinado acontecimento, podendo, no entanto, também dar origem a uma tradição, quando é repetido por gerações posteriores. Resta, por fim, a tradição propriamente dita, que transmite evidências para as gerações futuras.
A origem das tradições pode, portanto, repousar num testemunho ocular, num boato ou numa nova criação baseada em diferentes textos orais existentes, combinados e adaptados para criar uma nova mensagem. Mas somente as tradições baseadas em narrativas de testemunhos oculares são realmente válidas, o que os historiadores do Islã compreenderam muito bem. Desenvolveram uma complicada técnica para determinar o valor dos diferentes Hadiths, ou tradições que se pretendiam palavras do Profeta, recolhidas por seus companheiros. Com o tempo, o número de Hadiths tomou-se muito grande, e foi necessário eliminar aqueles para os quais a cadeia de informantes (lsnad) que ligava o erudito que as havia registrado por escrito a um dos companheiros do Profeta não podia ser estabelecida. Para cada ligação, o cronista islâmico determinava critérios de probabilidade e credibilidade idênticos aos empregados na crítica histórica atual. Poderia a testemunha intermediária conhecer a tradição? Poderia compreendê-la? Era seu interesse distorcê-la? Poderia tê-la transmitido? E, se fosse o caso, quando, como e onde?
Notaremos que a definição de tradições apresentada aqui não implica nenhuma limitação, a não ser o verbalismo e a transmissão oral. Inclui, por- tanto, não apenas depoimentos como as crônicas orais de um reino ou as genealogias de uma sociedade segmentária, que conscientemente pretenderam descrever acontecimentos passados, mas também toda uma literatura oral que fornecerá detalhes sobre o passado, muito valiosos por se tratar de testemunhos inconscientes, e, além do mais, fonte importante para a história das idéias, dos valores e da habilidade oral.
As tradições são também obras literárias e deveriam ser estudadas como tal, assim como é necessário estudar o meio social que as cria e transmite e a visão de mundo que sustenta o conteúdo de qualquer expressão de uma determinada cultura. f:. por isso que nas seções seguintes trataremos respectivamente da crítica literária e da questão do ambiente social e cultural, antes de passarmos ao problema cronológico e à avaliação geral das tradições.
A tradição como obra literária
Numa sociedade oral, a maioria das obras literárias são tradições, e todas as tradições conscientes são elocuções orais. Como em todas elocuções, a forma e os critérios literários influenciam o conteúdo da mensagem. Essa é a principal razão das tradições serem colocadas no quadro geral de um estudo de estruturas literárias e serem avaliadas criticamente como tal.
Um primeiro problema é o da forma da mensagem. Há quatro formas básicas, resultantes de uma combinação prática de dois conjuntos de princípios. Em alguns casos, as palavras são decoradas, em outros, a escolha é entregue ao artista. Em alguns casos, uma série de regras formais especiais são sobrepostas à gramática da língua comum, em outros, não existe tal sistema de convenções.




O termo "poema" é apenas um rótulo para todo o material decorado e dotado de uma estrutura específica, incluindo canções. O termo "fórmula" é um rótulo que freqüentemente inclui provérbios, charadas, orações, genealogias, isto é, tudo que é decorado, mas que não está sujeito a regras de composição, a não ser às da gramática corrente. Em ambos os casos, as tradições compreendem não só a mensagem, mas também as próprias palavras que lhe servem de veículo. Teoricamente, portanto, um arquétipo original pode ser reconstruído, exatamente como no caso das fontes escritas. Podem-se construir argumentos históricos sobre as palavras e não apenas sobre o sentido geral da mensagem. Todavia, acontece muitas vezes com as fórmulas, e menos com os poemas, ser impossível reconstruir arquétipos devido ao grande número de interpolações. Por exemplo, quando se reconhece que o lema de um clã é o produto de uma série de empréstimos de outros lemas, sem que se possa identificar aquilo que constituía o enunciado original e específico. Pode-se muito bem compreender por que as fórmulas se prestam tão facilmente à interpolação. Na realidade, não existe nenhuma regra formal que impeça esse processo.
As fontes fixas são, em princípio, as mais valiosas, pois sua transmissão é mais precisa. Na prática, raras são as que têm o propósito consciente de transmitir informações históricas. Além disso, é nesse caso que encontramos arcaísmos por vezes inexplicados. Nas línguas bantu, seu significado pode ser descoberto, pois é grande a probabilidade de uma língua vizinha. ter conservado uma palavra com a mesma raiz que o arcaísmo em questão. Em outros casos, devemos nos conformar com o comentário do informante, que pode repetir um comentário tradicional ou... inventá-lo. Infelizmente, esse tipo de registro oral vem carregado de alusões poéticas, imagens ocultas, jogo de palavras com múltiplos significados. Não só é impossível compreender qualquer coisa dessa elocução "hermética" sem um comentário, mas também, muitas vezes, só o autor conhece todos os aspectos do seu significado. Mas ele não transmite tudo no comentário explicativo, de qualidade variável, que acompanha a transmissão do poema. Essa peculiaridade é bastante comum, especialmente no que se. refere aos poemas ou canções panegíricos da África meridional (Tsuana, Sotho), oriental (a região lacustre), central (Luba, Congo) ou ocidental (Ijo).
A denominação "epopéia" significa que o artista pode escolher próprias palavras dentro de um conjunto estabelecido de regras formais, como as rimas, os padrões tonais, o número de sílabas, etc. Esse caso específico não deve ser confundido com as peças literárias longas, de estilo heróico, como as narrativas de Sundiata, Mwindo (Zaire) e muitas outras. No gênero de que tratamos, a tradição inclui a mensagem e a estrutura formal, nada mais. Muitas vezes, entretanto, encontramos versos característicos, que, servem para preencher espaço ou que simplesmente lembram ao artista o quadro ou a estrutura formal. Alguns desses versos provavelmente datam da criação da epopéia. Tais "epopéias" existem na África? Acreditamos que sim e que algumas formas poéticas, de Ruanda especialmente, assim como as canções-fábulas dos Fang (Camarões-Gabão), pertencem a essa categoria. Devemos notar que não se pode reconstruir um verdadeiro arquétipo para esses poemas épicos porque a escolha das palavras é deixada ao artista. Todavia, é preciso salientar que os requisitos da forma são tais que, provavelmente, todas as versões de uma "epopéia" baseiam-se num único original, o que freqüentemente é demonstrado pelo estudo das variantes.
A última categoria é a das "narrativas", que compreendem a maioria das mensagens históricas conscientes. Nesse caso, a liberdade deixada ao artista permite numerosas combinações, muitas remodelações, reajustes dos episódios, ampliação das descrições, desenvolvimentos, etc. Torna-se, então, difícil reconstruir um arquétipo. O artista é completamente livre, mas somente do ponto de vista literário: o seu meio social pode, às vezes, impor-lhe uma fidelidade rígida às fontes. Apesar dessas dificuldades, é possível descobrir a origem híbrida de uma tradição, pela coleta de todas as suas variantes, inclusive das que não são consideradas históricas, e recorrendo-se às variantes originárias dos povos vizinhos. Assim, pode-se, por vezes, passar imperceptivelmente do mundo da história para o país das maravilhas; por outro lado, eliminam-se as versões orais que não são baseadas em narrativas de testemunho ocular. Essa abordagem crítica é essencial.
Toda literatura oral tem sua própria divisão em gêneros literários. O historiador não só tentará apreender o significado desses gêneros para a cultura que está estudando, mas também colherá ao menos uma amostra representativa de cada um, pois em todos eles pode-se esperar encontrar informações históricas, além do que, as tradições que o interessam particularmente são mais fáceis de se compreender quando analisadas no contexto geral. Já a própria classificação interna fornece indicações valiosas. Assim, podemos descobrir se os transmissores de uma obra literária fazem distinção, por exemplo, entre as narrativas históricas e as de outros tipos.
Os gêneros literários também estão sujeitos a convenções literárias, cujo conhecimento é fundamental para se compreender o verdadeiro sentido da obra. A questão nesse caso não é mais de regras formais, mas de escolha de termos, expressões, prefixos pouco usuais, vários tipos de licença poética. Uma atenção maior deve ser dada às palavras ou expressões que possuem múltiplas reverberações. Além disso, os termos-chave, intimamente ligados à estrutura social, à concepção do mundo, e praticamente intraduzíveis, exigem que se faça uma interpretação à luz do contexto literário no qual aparecem.
É impossível coligir tudo. O historiador vê-se obrigado, portanto, a levar em consideração requisitos práticos e deverá se dar por satisfeito uma vez obtida uma amostra representativa de cada gênero literário.
Somente através da catalogação dos vários tipos de narrativa pertencentes ao grupo étnico em estudo, ou a outros grupos, é possível discernir não só imagens ou expressões favoritas, mas também os episódios estereotipados, Como nas narrativas que se poderia classificar como "lendas migratórias" (Wandersagen). Por exemplo, uma narrativa luba das margens do lago Tanganica conta como um chefe livrou-se de outro, convidando-o a sentar-se num tapete sob o qual havia sido cavado um poço contendo estacas com pontas afiadas. O chefe sentou-se e morreu. O mesmo quadro pode ser encontrado dos grandes lagos até o oceano, e também entre os Peul do Liptako (Alto Volta), os Haussa (Nigéria) e os Mossi de Yatenga (Alto Volta). A importância desses episódios-clichês é óbvia. Infelizmente, não possuímos nenhum livro de referências útil que trate deles, embora H. Baumann mencione muitos temas-clichês que ocorrem em narrativas sobre as origens de diversos povos 1. Já é tempo de se estabelecerem catálogos práticos para a pesquisa desses estereótipos. Os chamados índices de motivos populares (Folk Motiv Index) são de difícil manuseio, e confusos, pois se baseiam em características de menor importância, escolhidas arbitrariamente, enquanto, nas narrativas africanas, o episódio representa uma unidade natural em um catálogo.
Uma vez encontrado um clichê. desse tipo, não é correto rejeitar toda a tradição, ou mesmo a parte que contém essa seqüência de eventos, como destituída de valor. Devemos, sim, explicar por que o clichê foi utilizado. No caso mencionado, ele simplesmente explica que um chefe elimina outro e acrescenta uma descrição de como isso foi feito, que é fictícia mas agrada aos ouvintes. Com mais freqüência, perceberemos que esse tipo de clichê constrói explicações e comentários para dados que podem ser perfeitamente legítimos.
A crítica literária levará em consideração não apenas os significados literal e pretendido de uma tradição, mas também as restrições impostas, para a expressão da mensagem, por requisitos formais e estilísticos. Avaliará o efeito da distorção estética, muito freqüente. Afinal, mesmo as mensagens do passado não devem ser enfadonhas demais! É neste ponto que a observação das representações sociais relativas à tradição é de fundamental importância. Dizemos representação em lugar de reprodução, porque na maioria dos casos está em jogo um elemento estético. Se os critérios estéticos prevalecerem sobre a fidelidade da reprodução, ocorrerá uma forte distorção estética, refletindo o gosto do público e a arte da pessoa que transmite a tradição. Mesmo em outros casos, encontramos arranjos de textos que chegam a vestir as tradições de conteúdo histórico específico com o uniforme dos padrões artísticos correntes. Por exemplo, nas narrativas, uma série de episódios que levam a um clímax formam a trama principal, enquanto outros constituem repetições paralelas sofisticadas e outros, ainda, representam apenas transições de uma etapa da narrativa para outra. Como regra geral, pode-se admitir que, quanto mais uma narrativa se conforma ao modelo-padrão de excelência e quanto mais é admirada pelo público, mais é distorcida. Numa série de variantes, pode-se, às vezes, discernir a variante correta pelo fato de ir contra esses padrões, assim como uma variante que contradiz a função social de uma tradição tem mais probabilidade de ser verdadeira que as outras. Não devemos esquecer, entretanto, que nem todos os artistas da palavra são excelentes. Há os de pouco talento, e suas variantes serão sempre sofríveis. Mas a atitude do púbico, como o cenário de uma representação, não é exclusivamente um fato artístico. É acima de tudo um fato social, e isso nos obriga a considerar a tradição em seu meio social.
Contexto social da tradição
Tudo que uma sociedade considera importante para o perfeito funcionamento de suas instituições, para uma correta compreensão dos vários status sociais e seus respectivos papéis, para os direitos e obrigações de cada um, tudo é cuidadosamente transmitido. Numa sociedade oral isso é feito pela tradição, enquanto numa sociedade que adota a escrita, somente as memórias menos importantes são deixadas à tradição. É esse fato que levou durante muito tempo os historiadores, que vinham de sociedades letradas, a acreditar erroneamente que as tradições eram um tipo de conto de fadas, canção de ninar ou brincadeira de criança.
Toda instituição social, e também todo grupo social, têm uma identidade própria que traz consigo um passado inscrito nas representações coletivas de uma tradição que o explica e o justifica. Por isso, toda tradição terá sua "superfície social", utilizando a expressão empregada por H. Moniot. Sem superfície social, a tradição não seria mais transmitida e, sem função, perderia a razão de existência e seria abandonada pela instituição que a sustenta.
Poderíamos ser tentados a seguir alguns estudiosos que acreditavam poder dizer a priori qual a natureza ou perfil do corpus de tradições históricas de uma determinada sociedade, a partir da classificação das coletividades em tipos como "Estados", "sociedades sem Estado", etc. Embora seja verdade que as diversas sociedades africanas possam ser, grosso modo, classificadas de acordo com tais modelos, é fácil demonstrar que essas tipologias podem se estender ao infinito, pois cada sociedade é diferente, e os critérios utilizados são arbitrários e limitados. Não existem dois Estados idênticos ou mesmo semelhantes nos detalhes. Há imensas diferenças entre as linhas-mestras da organização das sociedades Massai (Quênia- Tanzânia), Embu (Quênia), Meru (Quênia) e Galla (Quênia- Etiópia), embora todas elas possam ser classificadas como sociedades baseadas em classes etárias e estejam situadas na mesma região da África. Se se desejasse examinar um caso de uma sociedade dita simples, sem Estado, composta de pequenos grupos estruturados por múltiplas linhagens, poder-se-ia pensar que os Gouro (Costa do Marfim) constituíssem bom exemplo. Esperando encontrar um perfil de tradições contendo somente histórias de linhagens e genealogias - e realmente o encontramos -, deparamo-nos também com uma história esotérica transmitida por uma sociedade secreta. Tomemos o caso dos Tonga do Zâmbia: encontramos novamente a história da linhagem, mas também histórias de centros rituais animados pelos fazedores de chuva. Não há uma única sociedade desse tipo que não apresente uma instituição importante "inesperada". Entre os Estados, o caso extremo é, certamente, o do reino dos Bateke (Tio), em que a tradição real. não remonta a mais do que duas gerações, embora os reinos devam ter tradições muito antigas. Podemos ir mais longe no tempo coligindo as tradições, dos símbolos mágicos dos nobres do que seguindo as tradições relativas ao símbolo real! Generalizações apressadas sobre o valor das tradições seriam absolutamente despropositadas. O perfil de um determinado corpus de tradições só pode ser determinado a posteriori.
É evidente que as funções preenchidas pelas tradições tendem a distorce-las. É impossível estabelecer uma lista completa dessas. funções, em parte porque uma tradição pode assumir diversas funções e pode desempenhar um papel mais ou menos preciso ou difuso em relação a elas. Mas principalmente porque a palavra "função" é por si só confusa. É utilizada com freqüência para descrever tudo o que serve para fortalecer ou manter a instituição da qual depende. Como a relação não é tangível, a imaginação pode produzir uma lista infinita de funções "a preencher", não sendo possível nenhuma escolha. Entretanto, não é difícil distinguir certos propósitos precisos, manifestos ou latentes, assumidos por algumas tradições. Há, por exemplo, as "cartas míticas", as histórias das dinastias, genealogias, listas de reis, que podem ser consideradas como verdadeiras constituições não-escritas. Podemos ampliar essa categoria pela inclusão de todas as tradições que tratam dos assuntos públicos legais, por exemplo, as que mantêm os direitos públicos sobre a propriedade. Trata-se, geralmente, de tradições oficiais, uma vez que aspiram a uma legitimidade universal para a sociedade. As tradições particulares, associadas a grupos ou instituições incorporados a outros grupos, não serão tão bem conservadas, pois têm menor importância, embora, em geral, estejam mais próximas da verdade que as demais tradições. Todavia, convém destacar que as tradições particulares são oficiais para o grupo que as transmite. Assim, uma história de família é particular em comparação à história de todo um Estado, e o que ela diz sobre o Estado está menos sujeito a controle do Estado que uma tradição pública oficial. Mas dentro da própria família, a tradição particular torna-se oficial. Em tudo o que diz respeito à família, ela deve, portanto, ser tratada como. tal. Compreende-se, assim, por que é tão importante utilizar histórias familiares ou locais para esclarecer questões de história política geral. Seu testemunho está menos sujeito a distorção e pode oferecer uma verificação efetiva das asserções feitas pelas tradições oficiais. Por outro lado, como dizem respeito somente a subgrupos, a profundidade e o cuidado com que são transmitidas são, de modo geral, pouco satisfatórios, como atestam as inúmeras variantes.
Entre outras funções comuns, podemos mencionar sucintamente a religiosa e a litúrgica (como realizar um ritual), as funções jurídicas particulares (precedentes), as estéticas, didáticas e históricas, a função do comentário de um registro oral esotérico e a que os antropólogos chamam de função mítica. As funções e o gênero literário considerados em conjunto podem constituir para o historiador uma tipologia válida, que lhe permitirá fazer uma avaliação geral das prováveis distorções que suas fontes podem ter sofrido, fornecendo-lhe indicações relativas à transmissão. Para tomar apenas os tipos que são obtidos por esse processo de seleção, podemos distinguir os nomes, os títulos, os slogans ou lemas, fórmulas rituais, fórmulas didáticas (provérbios), listas de topônimos, de antropônimos, genealogias, etc. Do ponto de vista da forma básica, podemos classificar todos esses casos como "fórmulas". Poemas históricos, panegíricos, litúrgicos ou cerimoniais, religiosos, pessoais (líricos e outros), canções de todos os tipos (canções de ninar, de trabalho, caça e canoagem, etc.) são "poemas", também do mesmo ponto de vista. A "epopéia" como forma básica é representada por certos poemas que não correspondem ao que o termo normalmente conota. Por último, a "narrativa" inclui a narrativa geral, histórica ou outras, narrativas locais, familiares, épicas, etiológicas, estéticas e memórias pessoais. Devemos também incluir aqui precedentes legais que raramente são transmitidos pela tradição oral, comentários sobre registros orais e as notas ocasionais, que são essencialmente respostas curtas a perguntas do tipo: "Como começamos a cultivar milho?", "De onde veio a máscara de dança?", etc.
Dessa lista pode-se imediatamente observar o que pode ser a ação deformadora de uma instituição em cada um desses tipos. Mas ainda é preciso demonstrar que essa ação realmente ocorreu ou que a probabilidade de distorção é muito grande. Geralmente, é possível mostrar que uma tradição é válida porque não sofreu as distorções esperadas. Por exemplo, um povo diz que é "mais novo" que outro, uma crônica real admite uma derrota, uma fórmula particular que deveria explicar a geografia física e humana de um país não se conforma mais à realidade. Em todos esses casos a análise comprova a validade da tradição, pois esta resistiu ao processo nivelador.
Em seu trabalho sobre o fenômeno da escrita (capacidade de ler e escrever), Goody e Watt afirmam que uma sociedade oral tende, constante e automaticamente, à homeostase, que apaga da memória coletiva - daí a expressão "amnésia estrutural" - qualquer contradição entre a tradição e sua superfície social. Mas os casos mencionados acima mostram que essa homeostase é só parcial. Não se pode negar, portanto, o valor histórico das tradições unicamente por desempenharem certas funções. Segue-se, ainda, que cada tradição deve ser submetida a estrita crítica sociológica. No mesmo trabalho, esses autores afirmam que a cultura de uma sociedade verbal é homogeneizada, isto é, que o conteúdo, em termos de conhecimento, do cérebro de cada adulto é aproximadamente o mesmo. Isso não é totalmente verdadeiro. Especialistas artesãos, políticos, legistas e religiosos sabem muitas coisas que seus contemporâneos do mesmo grupo étnico desconhecem. Cada grupo étnico tem seus pensadores. Entre os Kuba (Zaire), por exemplo, encontramos três homens que, com base num mesmo sistema de símbolos, haviam estabelecido três filosofias diferentes, e supomos que o mesmo se dá entre os Dogon. Quanto às tradições, observamos que em muitos grupos há tradições esotéricas secretas, que são privilégio de um grupo restrito, e tradições exotéricas públicas. Por exemplo, a família real ashanti sabia a história secreta de sua origem, enquanto o grande público conhecia somente a versão oficial. Em Ruanda, somente os especialistas biiru conheciam os rituais da realeza, e, mesmo assim, eles só os conheciam na sua totalidade quando estavam todos juntos, já que cada grupo de biiru tinha conhecimento apenas de uma parte deles. Em quase todos os rituais de entronização na Africa encontramos práticas e tradições secretas. Isso significaria que a tradição esotérica é necessariamente mais acurada que a tradição exotérica? Depende do contexto. Afinal, as tradições esotéricas também podem ser distorcidas por razões imperativas, que serão ainda mais imperativas se o colégio que possui o segredo foi um grupo-chave da sociedade. Devemos ressaltar que, empiricamente, conhecemos até agora muito poucas tradições esotéricas, e porque a antiga ordem em que têm suas raÍzes não desapareceu por completo. As que conhecemos provêm de sociedades que têm sofrido importantes transformações, e muitas tradições sem dúvida desaparecerão sem deixar registro. Todavia, a partir de fragmentos que possuímos, podemos afirmar que certas tradições ogboni da nação Ioruba têm sido tão distorcidas que não mais constituem mensagens válidas no que diz respeito às origens do ogboni, enquanto as tradições biiru, por exemplo, parecem ter maior validade. Isso se deve não ao caráter esotérico, mas ao propósito dessas tradições: as primeiras legitimam um poder forte detido por um pequeno grupo de homens, enquanto as segundas são apenas a memorização de um ritual prático.
Cada tradição tem sua própria superfície social. Para encontrar as tradições e analisar a qualidade de sua transmissão, o historiador deve, portanto, conhecer, o mais detalhadamente possível, o tipo de sociedade que está estudando. Deve examinar todas as suas instituições para isolar as tradições, e também esmiuçar todos os gêneros literários para obter informações históricas. É o grupo dirigente de uma sociedade que retém a posse das tradições oficiais, e sua transmissão é geralmente realizada por especialistas, que utilizam meios mnemotécnicos (geralmente canções) para reter os textos. Às vezes há o controle de colegas em ensaios privados ou na representação pública associada a uma cerimônia importante. Os especialistas, entretanto, nem sempre estão ligados ao poder. É o caso dos genealogistas, dos tamborileiros de chefes ou de reis, dos guardas de túmulos 2 e dos pregadores de religiões nacionais. Mas há também especialistas em outros níveis. Entre os Xhosa (África do Sul), há mulheres especializadas na arte de representar histórias engraçadas, ntsomi. Há também outros que sabem fazê-lo, mas não se especializam nisso. Estes geralmente tomam parte em espetáculos populares. Alguns celebrantes de ritos religiosos também são especialistas em tradições orais: os guardas dos mhondoro shona (Zimbabwe) conhecem a história dos espíritos confiados à sua guarda. Alguns, como os griots, são trovadores que reúnem tradições em todos os níveis e representam os textos convencionados, diante de uma audiência apropriada, em certas ocasiões - casamento, morte, festa na residência de um chefe, etc. É raro não haver especialização, mesmo no nível da história da terra ou da família. Sempre há indivíduos socialmente superiores (os abashinga ntabe do Burundi para questões de terra, por exemplo) ou de maior aptidão encarregados da memorização e transmissão das tradições. Enfim, uma última categoria de pessoas bem-informadas (para as quais dificilmente podemos aplicar o termo especialista) é constituída por indivíduos que vivem perto de lugares históricos importantes. Nesse caso, o fato de se viver exatamente no local, por exemplo, onde uma batalha foi travada, atua como meio mnemotécnico no registro da tradição.
Um exame da "superfície social" torna possível, portanto, descobrir tradições existentes, colocá-las em seu contexto, achar especialistas responsáveis por elas e estudar as transmissões. Esse exame também toma possível descobrir indicações valiosas sobre a freqüência e a forma das próprias representações. A freqüência é um indicador da fidelidade da transmissão. Entre os Dogon (Mali), o ritual do Sigi é transmitido somente uma vez a cada sessenta anos aproximadamente. Isso favorece o esquecimento; são muito raros os que já viram dois Sigi e apreenderam o suficiente na primeira representação para serem capazes de dirigir a segunda. Somente as pessoas com 75 anos, pelo menos, podem fazê-lo. Podemos supor que o conteúdo do Sigi e a informação fornecida variarão mais radicalmente que uma forma de tradição como a de um festival no sul da Nigéria que é repetido todo ano. Mas, por outro lado, uma freqüência elevada de representações não significa necessariamente uma fidelidade acentuada na transmissão. Isso vai depender da sociedade em questão. Se a sociedade necessita de uma fidelidade estrita, a freqüência ajudará a mantê-la. E o caso das fórmulas mágicas, como, por exemplo, certas fórmulas para exorcizar a bruxaria. Explica-se, assim, porque algumas fórmulas mboon (Zaire) para fazer parar a chuva situam-se num contexto geográfico tão arcaico que nenhum dos elementos mencionados pode ser encontrado na região Mboon atual. Por outro lado, se a sociedade não atribui nenhuma importância à fidelidade da transmissão, a grande freqüência da representação altera a transmissão mais rapidamente do que uma freqüência menor. Temos, por exemplo, o caso das canções à moda e especialmente das narrativas populares mais apreciadas. Tudo isso pode e, de fato, deve ser verificado pelo estudo das variantes coletadas. Seu número é um reflexo direto da fidelidade da transmissão.
Ao que parece, as alterações tendem invariavelmente a aumentar a homeostase entre a instituição e a tradição que a acompanha; nesse ponto Goody e Watt têm certa razão. Se as variantes existem e mostram uma tendência bem definida, podemos deduzir que as menos conformistas em relação aos objetivos e funções da instituição são as mais válidas. Além disso, é possível, por vezes, mostrar que uma tradição não é válida, seja em caso de ausência de variantes, quando a tradição tornou-se um clichê do tipo: "Viemos todos de X", X correspondendo perfeitamente às necessidades da sociedade; seja quando, como na narrativa popular, as variantes são tão divergentes que é quase impossível reconhecer o que constitui uma tradição e a separa das outras. Nesse caso, torna-se evidente que a maioria das versões são elaborações mais ou menos recentes, que têm por base outras narrativas populares. Nesses dois casos extremos, entretanto, é preciso poder demonstrar que a ausência de variantes realmente corresponde a uma forte motivação da sociedade, assim como a proliferação de variantes corresponde a considerações estéticas ou a uma necessidade de divertimento que suplanta qualquer outra consideração. Ou, então, deve-se poder demonstrar que os postulados inconscientes da civilização homogeneizaram a tradição de maneira tal que esta se tornou um clichê sem variantes. E precisamente essa influência da civilização que deve ser examinada agora, feita a crítica sociológica.
Estrutura mental da tradição
Por estrutura mental entendemos as representações coletivas inconscientes de uma civilização, que influenciam todas as suas formas de expressão e ao mesmo tempo constituem sua concepção do mundo. Essa estrutura mental varia de uma sociedade para outra. A nível superficial, é relativamente fácil descobrir parte dessa estrutura, através da aplicação de técnicas clássicas da crítica literária ao conteúdo de todo o corpus de tradições e da comparação desse corpus com outras manifestações, sobretudo as simbólicas, da civilização. A tradição sempre idealiza; especialmente no caso de poemas e narrativas. Ela cria estereótipos populares. Toda história tende a tornar-se paradigmática e, conseqüentemente, mítica, seja o seu conteúdo "verdadeiro" ou não. Assim, encontramos modelos de comportamentos ideais e de valores. Nas tradições de reis, os personagens tomam-se estereotipados, como num western, e, portanto, facilmente identificáveis. Um rei é o "mágico", um outro governante é o "justo", outra pessoa é o "guerreiro". Mas isso distorce a informação; algumas guerras, por exemplo, são atribuídas ao rei guerreiro, quando as campanhas foram de fato conduzidas por outrem. Além disso, todos os reis possuem, em comum, características que refletem uma noção idealizada da realeza. Também não é difícil encontrar estereótipos de diferentes personagens, especialmente de líderes, em outras sociedades. É o caso do "herói cultural", freqüentemente encontrado, que transforma o caos numa sociedade bem ordenada. A noção estereotipada de caos é, no caso, a descrição de um mundo literalmente às avessas. Encontramos também mais de um estereótipo do herói fundador. Entre os Igala (Nigéria), alguns fundadores são caçadores, outros são descendentes de reis. Os primeiros representam um status adquirido, os últimos, um status hereditário (atribuído). Na tentativa de explicar por que há dois tipos de status, sugeriu-se que o primeiro estereótipo oculta a ascensão ao poder de novos grupos e que os dois estereótipos refletem duas situações históricas bastante diferentes.
Uma explicação verdadeiramente satisfatória deveria, entretanto, revelar o sistema completo de valores e ideais relacionados a status e papéis sociais, que constituem a própria base de toda ação social e de todo sistema global. Isso só foi possível recentemente, quando McGaffey descobriu que os Kongo (Zaire, República Popular do Congo) possuem um sistema estereotipado simples de quatro status ideais - feiticeiro, adivinho, chefe, profeta - que são complementares. É fácil descobrir um valor geral positivo ou negativo: a apreciação da generosidade, a rejeição da inveja como sinal de feitiçaria, ou o papel do destino - são todos valores imediatamente observáveis nas tradições do golfo de Benin e da região interlacustre. Mas os valores são descobertos um por um e não como sistema coerente que compreende todas as representações coletivas, pois valores e ideais descrevem somente as normas para um comportamento ideal ou por vezes cinicamente realista, que devem guiar o comportamento real e os papéis esperados de cada um. Os papéis estão relacionados às posições sociais, e estas às instituições, e o conjunto constitui a sociedade. Teoricamente, portanto, é preciso "desmontar" uma sociedade para encontrar seus modelos de ação, seus ideais e valores. Em geral, o historiador faz isso inconscientemente e de modo superficial. Evita as armadilhas evidentes, mas involuntariamente tende a adotar as premissas impostas pelo sistema como um todo. Não consegue separar suas fontes do meio que as envolve. Falamos por experiência própria, após ter passado dezoito anos tentando detectar relações desse tipo na distorção das tradições de origem kuba (Zaire)!
Entre as representações coletivas que mais influenciam a tradição, notaremos sobretudo uma série de categorias de base que precedem a experiência dos sentidos. São as do tempo, do espaço, da verdade histórica, da causalidade. Há outras de menor importância como, por exemplo, a divisão do espectro em cores. Todo povo divide o tempo em unidades, baseando-se em atividades humanas ligadas à ecologia ou em atividades sociais periódicas (tempo estrutural). As duas formas de tempo são utilizadas em toda parte. O dia é separado da noite; é dividido em partes que correspondem ao trabalho ou refeições, e as atividades são relacionadas com a altura do sol, a voz de certos animais (para dividir as horas da noite), etc. Os meses (lunares), as estações e o ano são geralmente definidos pelo ambiente e as atividades que dele dependem, mas, além disso, deve-se contá-los em unidades de tempo estrutural.. Mesmo nesse caso, a semana é determinada por um ritmo social, como, por exemplo, a periodicidade dos mercados, que também é associada, em muitos casos, a uma periodicidade religiosa.
Períodos mais longos que o ano são contados pela iniciação a um culto, a um grupo de idade, por reinos ou gerações. A história das famílias pode ser estabelecida com base nos nascimentos, que constituem um calendário biológico. Fazem-se referências a acontecimentos excepcionais, como grandes fomes, grandes deflagrações de doença animal, ou epidemias, cometas, pragas de gafanhotos, mas esse calendário de catástrofes é forçosamente vago e irregular. À primeira vista, esse tipo de computação parece ser de pouca utilidade para a cronologia, enquanto os acontecimentos recorrentes parecem possibilitar a conversão da cronologia relativa em cronologia absoluta, uma vez conhecida a freqüência das genealogias, grupos de idade, reinos, etc. Voltaremos a esse assunto posteriormente.
A profundidade temporal máxima alcançada pela memória social depende diretamente da instituição que está ligada à tradição. Cada instituição tem sua própria profundidade temporal. A história da família não remonta à um passado muito distante porque esta conta apenas três gerações, e porque, de modo geral, há pouco interesse em lembrar acontecimentos anteriores. Portanto, as instituições que englobam maior número de pessoas se prestam melhor a nos fazer mergulhar mais fundo no tempo. Isso se verifica para o clã, a linhagem máxima de descendência, o grupo de idade do tipo massai e a realeza. Na savana sudanesa, as tradições dos reinos e impérios de Tecrur, Gana e Mali, retomadas por autores árabes e sudaneses, remontam ao século XI. Às vezes, entretanto, todas as instituições são limitadas pela mesma concepção da profundidade do tempo como, por exemplo, entre os Bateke (República Popular do Congo), onde tudo é remetido à geração do pai ou do avô. Tudo, inclusive a história da família real, é dividido entre par e ímpar, o ímpar pertencendo ao tempo dos "pais", e o par, ao dos "avós".
Esse exemplo mostra que a noção da forma do tempo é muito importante. Na região interlacustre, há casos em que o tempo é visto como um cIclo. Mas, como os ciclos se sucedem, o conceito vai dar numa espiral. Numa outra perspectiva, para as mesmas sociedades, distinguem-se eras, principalmente a era do caos e a era histórica. Para outras, como entre os Bateke, o tempo não é linear: oscila entre gerações alternadas. As conseqüências sobre o modo como se apresentam as tradições são evidentes.
Já não é tão óbvio que a noção de espaço seja de interesse nesse contexto. Mas há uma tendência geral a situar a origem de um povo num lugar ou direção de prestígio: direção "sagrada" ou "profana" de acordo com o pensamento de que o homem evolui do sagrado para o profano ou vice-versa. Cada povo impôs um sistema de direções à sua geografia. São geralmente os rios que dão o eixo das direções cardinais. A maioria das sociedades então fixa a direção de suas aldeias, às vezes de seus campos (Kukuya, República Popular do Congo), segundo esse sistema de eixos, que utilizam também para orientar seus túmulos. As conseqüências são às vezes inesperadas. Um espaço ordenado segundo um único eixo que faz parte do relevo muda com a disposição relativa dos elementos do relevo. Aqui, a jusante é a oeste, ali, a norte; aqui, ir em direção ao cume é ir para leste, ali, para oeste. Não só observamos que as migrações podem vir de direções privilegiadas, como é o caso dos Kuba (Zaire) ou dos Kaguru (Tanzânia), e que a narrativa correspondente é mais uma cosmologia que uma história, como também chegamos a encontrar variações nos pontos de origem dependendo dos acidentes do relevo geográfico. Somente as sociedades que se baseiam nos movimentos do sol para determinar o eixo do espaço podem dar informação exata a respeito dos movimentos migratórios gerais; esses povos infelizmente são uma minoria, exceto talvez na África ocidental, onde a maioria refere-se ao leste como seu lugar de origem.
A noção de causa está implícita em toda tradição oral. Geralmente, é apresentada na forma de causa imediata. e separada para cada fenômeno. Cada coisa tem uma origem, que se situa diretamente no início dos tempos. Pode-se compreender melhor o que é a causalidade examinando-se as causas atribuídas ao mal. Muito freqüentem ente elas têm relação direta com a feitiçaria, os ancestrais, etc., e a relação é imediata. Resulta desse tipo de causalidade que a mudança é percebida sobretudo em alguns campos claramente definidos, como a guerra, sucessão real, etc., em que os estereótipos intervêm. Para terminar, salientamos que esse esboço da noção de causa é muito sumário e deve ser complementado por noções de causa mais complexas mas paralelas a estas e que afetam somente instituições sociais menores.
Quanto à verdade histórica, está sempre estreitamente ligada à fidelidade do registro oral transmitido. Assim, ela pode ser ou o consenso dos governantes (Idoma, Nigéria), ou a constatação de que a tradição está em conformidade com o que disse a geração anterior.
As categorias cognitivas combinam-se e unem-se a expressões simbólicas de valor, para produzir um registro que os antropólogos qualificam de "mito". As tradições mais sujeitas a uma reestruturação mítica são as que descrevem a origem e, conseqüentemente, a essência, a razão de ser de um povo. Assim, um grande número de complexas narrativas kuba, que tratam da origem desse povo e descrevem migrações em canoas, pôde finalmente ser explIcado com a descoberta de um conceito latente de migração: para o povo Kuba, a migração se faz em canoas, da jusante (sagrado) para o montante (profano). Da mesma forma se explicaram nomes de migrações e de regiões de origem apresentados em termos de cosmogonia. Na narrativa kuba a correlação não estava clara, mas em muitos outros grupos étnicos, aparece explicitamente. É assim que muitos etnólogos, seguindo infelizmente o exemplo de Beidelman, estruturalistas ou sociólogos funcionalistas terminaram por negar qualquer valor às tradições narrativas porque, dizem eles, são a expressão das estruturas cognitivas do mundo, que sustentam todo o pensamento a priori, como categorias imperativas. O mesmo julgamento deveria então ser aplicado ao texto que você está lendo ou ao do próprio Beidelman... Obviamente, esses antropólogos exageram. Além disso, muitas de suas interpretações parecem hipotéticas. O historiador deve lembrar que, para cada caso particular, é preciso especificar as razões que se tem para rejeitar ou questionar uma tradição. Só se pode rejeitar uma tradição quando a probabilidade de uma criação de significado puramente simbólico é realmente forte e se possa provar. Pois, em geral, as tradições refletem tanto um "mito", no sentido antropológico do termo, como informações históricas. Nessas circunstâncias, os manuais de história são textos de mitologia, já que todo estereótipo que se origina de um sistema de valores e interesses é não só uma mensagem mítica, mas também um código secreto histórico à espera de decifração.
A cronologia
Sem cronologia, não há história, pois não se pode distinguir o que precede do que sucede. A tradição oral sempre apresenta uma cronologia relativa, expressa em listas ou em gerações. Em geral, essa cronologia permite situar todo o conjunto de tradições da região em estudo no quadro da genealogia ou da lista de reis ou de grupos de idade que abrange a mais ampla área geográfica, mas não permite estabelecer a seqüência relativa aos acontecimentos exteriores àquela região particular. Grandes movimentos históricos e mesmo certas evoluções locais passam despercebidos ou restam duvidosos, porque a unidade disponível para a cronologia é geograficamente muito restrita. A genealogia familiar é válida apenas para determinada família e para a aldeia ou aldeias que ela habita. A cronologia dos Embu (Quênia), por exemplo, é baseada em grupos de idade que cobrem apenas uma diminuta área territorial, na qual os jovens são iniciados ao mesmo tempo. As cronologias relativas devem, portanto, ser associadas e, se possível, convertidas em cronologias absolutas. Mas antes há um outro problema a ser resolvido: o de se assegurar que as informações utilizadas cor respondem a uma realidade não distorcida pelo tempo.
Torna-se cada vez mais claro que a cronologia oral está sujeita a processos de distorção concomitantes e que agem em sentidos opostos: às vezes encurtam e às vezes prolongam a verdadeira duração dos acontecimentos passados. Há também uma tendência a regularizar as genealogias, as sucessões e a seqüência de grupos de idade, para conformá-las às normas ideais da sociedade no momento. Do contrário, os dados forneceriam precedentes para litígios de todo tipo. O processo homeostático é bastante real. Em certos casos especiais, como em Ruanda, por exemplo, a tarefa de gerir a tradição recai sobre um complexo grupo de especialistas, cujas afirmações têm sido corroboradas por escavações arqueológicas.
Etnólogos mostraram que as sociedades chamadas segmentárias tendem a eliminar ancestrais "inúteis", isto é, os que não deixaram descendentes que ainda vivam e constituam um grupo separado. Isso explica por que a profundidade genealógica de cada grupo numa determinada sociedade tende a permanecer constante. Somente os ancestrais "úteis" são utilizados para explicar o presente. Isso leva, por vezes, a uma grande condensação da profundidade genealógica. Além do mais, acidentes demográficos às vezes reduzem um ramo de descendentes a um número tão pequeno, em comparação com outros ramos descendentes dos irmãos e irmãs do fundador do primeiro ramo, que este não pode mais existir paralelamente aos grandes grupos vizinhos, sendo então absorvido por um deles. A genealogia será reajustada, e o fundador do grupo pequeno substituído pelo do grupo maior (que o absorve). A genealogia é, assim, simplificada. A identidade de um grupo étnico em geral é expressa por um único ancestral colocado na origem de uma genealogia. e, o "primeiro homem", um herói fundador, etc. Será o pai ou a mãe do primeiro ancestral "útil". Desse modo, a lacuna entre a origem e a história consciente fica escamoteada. A operação de todo esse processo infelizmente levou, muitas vezes, a uma situação em que é praticamente impossível remontar, com segurança, a mais do que umas poucas gerações. Acreditava-se que muitas sociedades africanas, e especialmente as monarquias, tivessem escapado a esse processo. Não havia razão para que a lista de sucessão dos reis estivesse incorreta, que sua genealogia fosse duvidosa, exceto que, algumas vezes, era falsificada quando uma dinastia substituía outra e se apoderava da genealogia da precedente a fim de se legitimar. O número de reis e gerações continuava aparentemente correto. Estudos recentes, mais detalhados, mostram que essa posição não se justifica inteiramente. Os processos de condensação, alongamento e regularização podem afetar as tradições dinásticas tanto quanto as outras. Em listas de reis, por exemplo, os nomes de usurpadores, isto é, os que são considerados usurpadores naquele momento, ou em qualquer época após seu reinado, são às vezes omitidos, assim como os de muitos reis que não passaram por todas as cerimônias de iniciação que, em geral, são muito longas. O reinado de um rei que abdica e em seguida retoma ao poder é às vezes contado como um único governo. Tudo isso encurta o processo histórico.
Onde a sucessão é patrilinear e primogenitiva, como na região interlacustre, a tendência à regularização dos fatos resultou num surpreendente número de sucessões regulares - isto é, o filho sucedendo ao pai -, que ultrapassa de muito a média, e mesmo os recordes observados em outras partes do mundo. Esse processo de regularização produziu uma genealogia típica, retilínea, desde os mais antigos tempos até o século XIX aproximadamente, quando se tomou arborescente. O resultado é o alongamento da dinastia pelo aumento do número de gerações, uma vez que os colaterais são apresentados como pais e filhos. A confusão entre homônimos e entre nome de reino ou título e nome pessoal, assim como outros detalhes desse tipo, pode estender ou encurtar a lista. Como, durante os tempos coloniais, especialmente em regiões sob administração indireta, era forte a pressão para alongar as dinastias (pois as sociedades européias - como muitas africanas - têm um grande respeito pela antiguidade), empregaram-se todos os meios possíveis. mesmo ambíguos, com aquela finalidade. Todos os nomes foram, então, utilizados; ciclos de nomes reais foram desdobrados, se necessário, ou agrupados; podaram-se os ramos colaterais a fim de alongar-se o tronco.
Por último, e sempre no caso dos reinos, encontram-se comum ente lacunas entre o herói fundador, que pertence à cosmogonia, e o primeiro rei histórico "útil". Somente uma investigação muito cuidadosa pode determinar se nesses casos particulares os processos descritos realmente ocorreram. A esse respeito, a presença de irregularidades na sucessão e nas genealogias é a melhor garantia de autenticidade, pois denota uma resistência ao nivela- mento homeostático.
Sociedades de classes de idade ainda não foram submetidas a esse tipo de exame sistemático. Alguns casos mostram que os processos de regularização intervêm para organizar os ciclos ou para reduzir a confusão produzida pelos homônimos. Mas os diferentes tipos de sucessão de classes de idade ainda têm que ser estudadas. Não podemos generalizar, exceto para dizer que o problema suscitado é a análogo ao das genealogias, porque também aqui a geração é a unidade.
Um estudo estatístico completo, que forneceu grande parte das informações acima mencionadas, constatou que a duração média de uma geração dinástica está entre 26 e 32 anos. A amostra era principalmente patrilinear, mas as dinastias matrilineares não se agrupam, por exemplo, no segmento inferior da distribuição estatística, e a informação, portanto, seria válida para elas também. A duração média dos reinados varia tanto com o sistema de sucessão que nenhuma informação genérica de valor pode ser fornecida. Mesmo no caso de tipos idênticos de sucessão, são encontradas divergências consideráveis entre diferentes dinastias.
Com base nas informações acima expostas, pode-se converter uma cronologia relativa de gerações em cronologia absoluta, a menos que a distorção genealógica seja tal que torne o exercício inútil. Primeiramente, calcula-se a média entre a primeira referência cronológica absoluta fornecida por uma data escrita e o presente e projeta-se essa média no passado caso ela se situe entre 26 e 32 anos. No entanto, médias são apenas médias. Sua probabilidade aumenta com o número de gerações envolvidas, e o cálculo só fornece datas razoáveis para os inícios de seqüências ou, quando muito, uma vez por século. Qualquer precisão maior cria um erro. De todo modo, datas absolutas calculadas dessa maneira devem ser precedidas por uma sigla para indicar o fato. Assim, T 1635 para a fundação do Reino Kuba indicaria que a data foi calculada com base em genealogias e listas de reis.
O mesmo procedimento pode ser aplicado para determinar a duração média de um reinado. Mostrou-se por que essa média é menos válida que a medIa das gerações. Uma das razões é que, ao se projetar a média no passado, pressupõe-se que não houve mudança nos sistemas de sucessão. Ora, estes podem ter mudado ao longo dos anos. Certamente sofreram mudanças desde a fundação da dinastia, porque fundar é inovar, e as sucessões sem dúvida levaram algum tempo para se normalizarem. Além disso, devemos considerar as mudanças que podem ter ocorrido na esperança de vida. Já que a margem de erro é maior, será particularmente útil dispor de datas absolutas, determinadas por documentos escritos ou por outros meios que remontem a um passado longínquo.
Todavia, continuando no campo da cronologia relativa, é possível tentar coordenar diferentes seqüências vizinhas, separadas e relacionadas, pelo estudo dos sincronismos. Uma batalha entre dois reis citados fornece um sincronismo. Torna possível harmonizar as duas cronologias relativas em questão, e combiná-las em uma. Demonstrou-se empiricamente que sincronismos entre mais de três unidades isoladas não mais são válidos. Pode-se mostrar que A e B viveram na mesma época, ou que A e C viveram na mesma época, porque ambos conheceram B. Portanto, A = B = C, mas não podemos ir além disso.
O fato dos encontros de A e C com B poderem ter ocorrido em qualquer época durante a vida ativa de B explica por que A = C é o limite. Estudos sobre a cronologia do antigo Oriente Médio provaram empiricamente esse ponto. No entanto, utilizando prudentemente os sincronismos, podemos reconstruir campos únicos razoavelmente grandes com uma cronologia relativa comum.
Após o exame dos dados geneal6gicos, pode-se obter uma data absoluta se a tradição mencionar um eclipse do sol. Se há mais de uma data possível para o eclipse, deve-se mostrar qual é a mais provável. Podemos proceder do mesmo modo com outros fenômenos astronômicos ou climáticos extraordinários que tenham causado catástrofes. A certeza é menor nesse caso do que no dos eclipses solares, porque há, por exemplo, mais fomes na África oriental que eclipses do sol. Com exceção dos eclipses solares, outras informações desse tipo são úteis principalmente para os últimos dois séculos, ainda que poucos povos tenham preservado a memória de eclipses muito mais antigos.
Avaliação das tradições orais
Uma vez submetidas a minuciosa crítica, literária e sociológica, podemos atribuir às fontes um grau de probabilidade. Essa apreciação não pode ser quantificada, mas não é, por isso, menos real. A veracidade de uma tradição será mais facilmente constatada se a informação que contém puder ser comparada com a informação fornecida por outras tradições independentes ou por outras fontes. Duas fontes independentes concordantes trans- formam uma probabilidade em algo mais próximo da certeza. Mas deve-se comprovar a independência das fontes. Infelizmente, contudo, tem-se constatado uma tendência muito grande em acreditar na pureza e estanquidade inequívocas da transmissão de um grupo étnico para outro. Na prática, caravanas de comerciantes, como as dos Imbangala de Angola, ou talvez as dos Diula e dos Haussa, podem ter levado consigo fragmentos de história, que foram incorporados à história local por encontrar terreno apropriado. No início do período colonial estabeleceram-se vínculos entre representantes de diferentes grupos, que trocaram informações a respeito de suas tradições. Esse é notadamente o caso nas regiões sob administração indireta, onde interesses de ordem prática encorajavam especialmente os reinos a produzirem suas histórias. Além disso, todas essas histórias foram influenciadas pelos primeiros modelos escritos por africanos, como o livro de Johnson sobre o Reino Oyo (Nigéria) ou o de Kaggwa (Uganda) para Buganda. Deu-se uma contaminação geral de todas as histórias tardiamente colocadas em forma escrita no país Ioruba e na região interlacustre de fala inglesa, com tentativas de sincronização visando forçar as listas dinásticas a se igualarem, em extensão, às dos modelos. Esses dois exemplos mostram o quanto se deve ser prudente ao afirmar que as tradições são realmente independentes. Deve-se pesquisar os arquivos, estudar os contatos pré-coloniais e ponderar tudo cuidadosamente, antes de se fazer qualquer julgamento.
A comparação com dados escritos ou arqueológicos pode fornecer a confirmação de independência desejada. Mas, ainda neste caso, é preciso que a independência seja comprovada. O fato de autóctones atribuírem tradicionalmente um sítio visível aos primeiros habitantes do país, devido à presença no local de traços de ocupação humana muito diferentes dos deixados pelos habitantes atuais, não significa que se possa automaticamente fazer a mesma atribuição. As fontes não são independentes pois o sítio é atribuído a essas populações por um processo lógico e apriorístico. É um caso de iconatrofia. Essa constatação dá origem a Interessantes especulações, especialmente no que diz respeito aos chamados vestígios de Tellem do país Dogon (Mali) assim como aos sítios Sirikwa (Quênia) , para citar somente dois exemplos bem conhecidos. Contudo, os casos famosos dos sítios de Kumbi Saleh (Mauritânia) e do lago Kisale (Zaire) mostram que a arqueologia pode, às vezes, fornecer provas surpreendentes da validade de uma tradição oral.
Geralmente, estabelecer uma concordância entre fonte oral e escrita fica difícil porque tratam de coisas diferentes. Um estrangeiro que escreve sobre um país habitualmente se restringe a fatos econômicos e políticos, muitas vezes ainda mal compreendidos. A fonte oral voltada para o interior menciona os estrangeiros apenas de passarem; quando o faz. Assim sendo, em muitos casos as duas fontes não têm nada em comum, ainda que se refiram ao mesmo período. Casos de concordância, cronológica principalmente, são encontrados em locais onde os estrangeiros se estabeleceram por tempo suficientemente longo para se interessarem pela política local e entendê-la. Tem-se um exemplo disso no vale do Senegal a partir do século XVIII.
Em caso de contradição entre fontes orais, deve-se escolher a mais provável. A prática, muito difundida, de tentar encontrar um acordo, não faz sentido. Uma contradição flagrante entre uma fonte oral e uma fonte arqueológica se resolve em favor da última, se esta for um dado imediato, isto é, se a fonte for um objeto e não uma inferência, pois neste caso a probabilidade da fonte oral pode ser maior. Um conflito entre uma fonte escrita e uma oral se resolve exatamente como se se tratasse de duas fontes orais. Devemos ter em mente que a informação quantitativa escrita, de modo geral, é mais dIgna de confiança, mas que a informação oral relativa aos motivos é geralmente mais precisa que a das fontes escritas. Por fim, cabe ao historiador tentar estabelecer o que é mais provável. Num caso extremo, se dispomos de apenas uma fonte oral, cujas prováveis deformações pudemos demonstrar, devemos interpretá-la tendo em conta as deformações e utilizá-la.
Enfim, acontece freqüentem ente de o historiador não se sentir satisfeito com as informações orais de que dispõe. Pode registrar o seu descrédito em relação à validade das informações, mas, na falta de algo melhor, é obrigado a utilizá-las, enquanto outras fontes não forem descobertas.
Coletânea e publicação
Conclui-se de tudo que foi dito acima que todos os elementos que permitiam aplicar a crítica histórica às tradições devem ser reunidos em campo. Isso implica num bom conhecimento da cultura, sociedade e língua ou línguas envolvidas. O historiador pode adquirir esse conhecimento ou solicitar a ajuda de especialistas. Mas, mesmo nesse caso, ele deve realmente absorver todas as informações oferecidas pelo etnólogo, pelo lingüista e pelo tradutor que o estão ajudando. Por último, é preciso adotar urna atitude sistemática diante das fontes, das quais devem ser recolhidas todas as variantes. Tudo isso implica numa longa permanência em campo, que será tanto mais demorada quanto menor for a familiaridade do historiador com a cultura em questão. Devemos destacar que o conhecimento instintivo de alguém que estuda a história de sua própria sociedade não é suficiente. A reflexão sociológica é indispensável. O historiador deve redescobrir sua própria cultura. A experiência lingüística; mostrou que, às vezes, mesmo sendo um nativo do país, o historiador não compreende facilmente certos registros, corno os poemas panegíricos, ou encontra dificuldade porque as pessoas falam um dialeto diferente do seu. Além do mais, é aconselhável que ao menos parte das transcrições feitas em seu dialeto materno seja examinada por um lingüista, para se assegurar que a transcrição comporta todos os sinais necessários à compreensão da narrativa, incluindo-se aí, por exemplo, os tons. A coleta das tradições requer, portanto, muito tempo, paciência e reflexão. Depois de um período inicial de experiência, é preciso estabelecer um plano racional de trabAlho, que leve em consideração as características particulares de cada caso. De qualquer forma, devemos visitar os sítios associados aos processos históricos em estudo. Às vezes, será necessário utilizar uma amostragem de fontes populares, mas uma amostra não pode ser utilizada; casualmente. Devemos estudar, numa área restrita, quais as regras que determinam o nascimento de variantes e estabelecer, a partir delas, os princípios da amostragem a serem adotados. Coletar urna vasta quantidade de material de forma indiscriminada não pode produzir o mesmo resultado, ainda que se possa trabalhar mais rapidamente. O pesquisador deve ter cuidado ao estudar a transmissão. É cada vez mais comum encontrar informantes que adquiriram seu conhecimento a partir de trabalhos publicados sobre a história da região: livros escolares, jornais ou publicações científicas; assim corno podem tê-lo adquirido em conferências transmitidas pelo rádio ou pela televisão. O problema acentuar-se-á, inevitavelmente, com a ampliação da pesquisa.
Hoje em dia percebe-se que existe urna contaminação mais sutil. Alguns manuscritos, às vezes muito velhos, e especialmente relatórios dos primeiros tempos da administração colonial foram tornados pela tradição corno verdades "ancestrais". Fontes arquivísticas devem, portanto, ser cuidadosamente examinadas, assim corno a possível influência de trabalhos científicos, livros escolares, transmissões de rádio, etc. Pois, se o fato é verificado em campo, pode-se freqüentemente corrigir esses dados insidiosos buscando-se outras versões e explicando-se aos informantes que o livro ou o rádio não estão necessariamente certos no que diz respeito àquele assunto. Mas, uma vez longe do campo, será tarde demais.
É preciso estruturar a pesquisa de acordo com uma nítida tomada de consciência histórica. Não é possível recolher "todas as tradições"; tentar fazê-lo só nos levaria a uma massa confusa de informações. É necessário primeiramente saber quais os problemas históricos que se quer estudar e então procurar as fontes correspondentes. Ao eleger um objeto de estudo, o pesquisador deve, evidentemente, ter interiorizado a cultura em questão. Ele pode, então, como acontece freqüentemente, voltar seu interesse para a história política. Mas pode também optar por questões da história social, econômica, religiosa, cultural ou artística, etc. Para cada caso, a estratégia utilizada na coleta da tradição será diferente. A maior deficiência das pesquisas que se fazem atualmente é a falta de consciência histórica. Há uma forte tendência em se deixar guiar pelo que se encontra.
Falta de paciência é outro perigo. Reputa-se, por vezes, necessário dar conta o mais depressa possível de uma grande parte do trabalho. Nessas circunstâncias, as fontes coletadas são difíceis de se avaliar; apresentam-se discrepantes e incompletas; faltam variantes; há pouca informação sobre a transformação de uma fonte, sua representação, sua transmissão. O trabalho é malfeito. Uma conseqüência particularmente nefasta é a impressão criada entre outros pesquisadores de que essa "área" já foi estudada, o que diminui a probabilidade de se fazer uma pesquisa melhor no futuro. Não se deve esquecer que as tradições orais desaparecem, embora felizmente com menos rapidez do que se costuma pensar. A urgência da tarefa não é razão para atamancá-la. Pode-se replicar, como tem ocorrido, que o que advogamos aqui é utopia, perfeccionismo, coisa impossível. Contudo, é o único modo de se fazer um bom trabalho com os meios disponíveis num determinado lapso de tempo. Não há atalhos. Se acreditamos que, em alguns casos, todo esse trabalho produz somente uma safra muito pobre para a história, não percebemos que contribui para enriquecer, ao mesmo tempo, o conhecimento geral da língua, da literatura, do pensamento coletivo e das estruturas sociais da civilização estudada.
A menos que seja publicado, o trabalho não estará completo, por não se encontrar disponível para a comunidade dos estudiosos. Deve-se ter em vista pelo menos uma classificação das fontes investigadas, com introdução, notas e índice, que constitua um arquivo aberto a todos. Muitas vezes, o trabalho é combinado com a publicação de um estudo baseado, em parte ou completamente, nesse corpus. Nenhum editor publicaria todo o material, variantes inclusive, e a interpretação dos dados. Além disso, uma síntese não comporta uma vasta massa de documentos em bruto. Assim, cada trabalho deverá explicar como as tradições foram coletadas e fornecer uma breve lista de fontes e informantes, que possibilitará ao leitor formar uma opinião sobre a qualidade da coleta e compreender por que o autor escolheu uma determinada fonte em vez de outra. Pela mesma razão, cada fonte oral deve ser citada separadamente no trabalho. O trabalho que diz "A tradição conta que..." faz uma generalização perigosa.
Resta um tipo especializado de publicação: as edições de textos. Neste caso, seguimos as mesmas normas utilizadas na publicação de manuscritos. Na prática, isso geralmente conduz a uma colaboração entre vários especialistas. Nem todo pesquisador é, ao mesmo tempo, historiador, lingüista e etnólogo. De fato, as melhores edições de textos disponíveis até agora são quase todas trabalhos interdisciplinares de colaboradores, dos quais ao menos um é lingüista. A edição de textos é uma tarefa árdua e ingrata, o que explica por que há tão poucos publicados. Entretanto, seu número vem aumentando, graças à colaboração de especialistas em literatura oral africana.
Conclusão
Atualmente a coleta de tradições orais está se processando em todos os países africanos. A massa de dados recolhidos refere-se principalmente ao século XIX e é somente uma das fontes para a reconstrução histórica, sendo a outra principal fonte para esse período os documentos históricos. Há cinco ou seis trabalhos, a cada ano, apresentando estudos baseados quase inteiramente em tradições. Tipologicamente, eles tratam, sobretudo, da história política e da história dos reinos, e, no que diz respeito à geografia, estão concentrados principalmente na África oriental, central e equatorial, onde as tradições, freqüentemente, são as únicas fontes. As cronologias remontam raramente além de 1700; se anteriores a essa data, tornam-se duvidosas. Entretanto, o conhecimento cada vez mais aprofundado da natureza das tradições permite avaliar melhor as que foram recolhidas em épocas anteriores. Assim, a exploração das tradições registradas por Cavazzi no século XVII só se tornou possível após o estudo em campo realizado em 1970!
Além das tradições recentes, existe um vasto corpo de informações literárias, como as narrativas épicas, e de dados cosmogônicos, que podem ocultar informações históricas às vezes relativas a épocas bastante remotas. A epopéia de Sundiata é um exemplo. A tradição, por si mesma, não permite estabelecer datas. Por exemplo, a memória deformada relativa a certos sítios históricos na região interlacustre conservou uma lembrança que data dos primeiros séculos, ou mesmo de antes da Era Cristã. Mas a fonte oral nada diz quanto à data. Somente a arqueologia foi capaz de solucionar o problema. Assim também as tradições de Cavazzi, às quais acabamos de nos referir, parecem conter um sedimento histórico que é do maior interesse para o passado dos povos de Angola. Há referências sucintas a dinastias que se sucederam, a formas de governo que se seguiram; em resumo, sumarizam, para a região do Alto Cuango, mudanças sócio-políticas que podem datar de vários séculos ou até de um milênio antes dê 1500. Mas não há nenhuma data como ponto de referência para essa perspectiva.
Existe uma última armadilha a ser notada. Muito freqüentemente a coleta de tradições ainda parece superficial, e sua interpretação muito literal, muito "colada" à cultura em questão. Esse fenômeno vem reforçar a imagem de uma África cuja história consiste apenas em origens e migrações, o que, sabemos, não é verdade. Mas devemos admitir que essa é a imagem refletida pelas tradições que procuram estabelecer uma "identidade". A superficialidade da interpretação e a coleta pouco sistemática de material, além do mais, dão margem à maioria das críticas dirigidas contra a utilização das tradições orais, especialmente entre os etnólogos.
A experiência prática provou que o valor maior das tradições reside em sua explicação das mudanças históricas no interior de uma civilização. Isso é tão verdadeiro que, como se pode comprovar em quase toda parte, apesar da abundância de fontes escritas relativas ao período colonial, temos de recorrer constantemente aos testemunhos oculares ou à tradição para completá-Ias, a fim de tornar inteligível a evolução do povo. Mas constatamos também que as tradições são geralmente enganadoras no que diz respeito à cronologia. e aos dados quantitativos. Além disso, qualquer mudança inconsciente, porque lenta demais - uma mutação associada a uma ideologia religiosa, por exemplo - escapa à memória da sociedade. Podemos encontrar apenas indicações fragmentárias de mudanças nos registros que não tratam explicitamente da história e, ainda assim, através de um complicado exercício de interpretação. Isso mostra que a tradição oral não é uma panacéia para todos os males. Mas, na prática, ela se revela uma fonte de primeira ordem para os últimos séculos. Para um período anterior, seu papel se reduz, tornando-se mais uma ciência auxiliar da arqueologia. Em relação às fontes lingüísticas e etnográficas, ainda não foi suficientemente explorada, embora em princípio esses três tipos de fontes devessem, em conjunto, trazer importante contribuição ao nosso conhecimento da África antiga, assim como faz a arqueologia. As tradições têm comprovado seu valor insubstituível. Não é mais necessário convencer os estudiosos de que as tradições podem ser fontes úteis de informação. Todo historiador está ciente disso. O que devemos fazer agora é melhorar nossas técnicas de modo a extrair das fontes toda a sua riqueza potencial. Essa é a tarefa que nos espera.
Notas
1 BAUMANN, H., 1936.
2 Em alguns países, essas pessoas fazem parte da classe governante; é o caso, por exemplo, do Bend-naba (chefe dos tambores) dos Mossi.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

MAGIA:



A RELIGIÃO DO “OUTRO”
Francisco Santos Silva
Centro de História da Cultura, Faculdade De Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa

Resumo: Este artigo procura explorar a palavra “magia” no contexto do estudo científico da religião e, mais geralmente, no contexto das ciências sociais e humanas. Como tal, é procurado, neste artigo, fazer uma pequena história do uso do termo, de forma a compreender a sua carga política, social e histórica. Como se verá ao longo do artigo, o termo “magia” tem sido utilizado historicamente quase sempre de forma pejorativa de forma a descrever a “religião dos outros”. Esta carga xenófoba, bem como o fato de aquilo que é descrito como “magia” poder ser facilmente integrável dentro do fenômeno geralmente descrito como religião, leva à conclusão de que o termo “magia” é um termo sem utilidade ética no estudo do fenômeno religioso.

Quando o antropólogo Bronislaw Malinowski escreveu o ensaio "Magic, Science and Religion"2, em 1925, estes três termos - Magia, Ciência e Religião - parecem ser possuídos de uma identidade própria e estanque. No entanto, este nem sempre foi o caso - não o era quando da escrita de Malinowski, nem o é hoje. A distinção entre ciência e religião, bem como entre ciência e magia parece, pelo menos na modernidade, ser pouco contenciosa; a ciência trata do mundo físico e natural, enquanto os outros dois termos se interessam pelo metafísico e sobrenatural. Esta é uma distinção bastante recente na história da humanidade, visto que no período pré-iluminismo as ideias de ciência e religião estavam bastante misturadas. No período do Renascimento, a ciência estava também bastante unida à chamada "magia natural", ou seja, a utilização de processos naturais para fins mágicos, no qual se incluem ideias hoje vistas como "mágicas" cva cristã, desenhar um círculo no chão e queimar incenso, de forma a contatar com anjos ou deus é uma prática mágica, enquanto ajoelhar, juntar as mãos e rezar para o mesmo fim é uma prática religiosa. No mesmo princípio, a transmutação do chumbo em ouro é magia, enquanto que a transmutação de pão e vinho em carne e sangue é religião. Este último exemplo levou, de fato, durante a reforma protestante, a acusações pela parte de alguns protestantes de práticas mágicas pela Igreja Católica. Como mencionado em cima, é uma questão de perspectiva.
Não é a intenção deste artigo minimizar a religião ou a magia, mas, sim, colocar a questão de se existe de fato a necessidade desta distinção entre magia e religião. Será uma distinção útil? Devemos manter distinções que servem como acusação, sendo o termo “magia” utilizado quase como insulto para práticas pela parte daqueles que não compreendem ou desaprovam do ato a que chamam “mágico”? De forma a podermos dar uma resposta a estas perguntas teremos de começar por analisar como as relações entre a religião, e aquilo a que se escolheu chamar “magia”, num contexto histórico, tanto no período pré-moderno como na época moderna e contemporânea. Seguidamente, veremos como as ideias de religião e magia foram distinguidas no contexto acadêmico no séculos XIX e XX, e, por último, determinar como a utilização destes termos foi usada como uma ferramenta de poder cultural social e político. Apenas após examinarmos estes fatores poderemos chegar a uma conclusão, no que respeita à utilidade da palavra “magia” como a descrição de qualquer fenômeno independente ou até se este fenômeno sequer existe como algo independente da religião.
Relação entre magia e religião: Antiguidade ao séc. XVII
Desde a antiguidade clássica, que os termos “magia”, para a prática, ou “mago”, para o praticante, se referem a práticas religiosas realizadas por outros que não aqueles que utilizam o termo. O termo tem origens Persas e refere-se às práticas Zoroastrianas da Pérsia Antiga, e é portanto um termo utilizado pelos gregos como forma de descrever as práticas de alguém que é visto como “outro”. A palavra é utilizada na Grécia Antiga como designação de ritos cuja “legitimidade era contestada e, frequentemente, pelo menos em alturas posteriores, marginalizada e proibida”4. É, portanto, uma palavra que demonstra um certo desprezo pela atividade religiosa do “outro” – os gregos defendem a sua superioridade espiritual definindo as religiões não gregas como magia. Outro termo com o mesmo significado, tanto denotativo como conotativo, é o termo chaldaioi/chaldaei que, tendo o mesmo significado de magia e mago, se refere neste caso aos caldeus, sendo outra vez um termo que revela uma xenofobia religiosa pela parte dos gregos antigos. É interessante ver como esta utilização do termo é semelhante à forma como ele será utilizado ao longo da história, tanto pelas religiões dominantes como pelos poderes coloniais. O termo “magia” revela, então, desde a sua origem, uma afinidade com um desprezo pela religião ou práticas daqueles que são considerados estrangeiros ou “outros” pela cultura dominante. Rapidamente, o termo “magia” deixa de ser especificamente descritivo de práticas de outros povos para passar a designar práticas religiosas dentro das próprias culturas greco-latinas que não se coadunam com a perspectiva da maioria culturalmente dominante. Aparecem, então, na Grécia os termos goétia, para descrever a arte de se comunicar com os mortos (e, mais tarde, demônios), e pharmakeútria, que descreve “uma mulher que usa ervas e drogas”. No latim, os termos saga (bruxa), veneficus (pessoa que usa venenos) e, mais tarde, maleficus (pessoa que faz o mal) servem ao mesmo propósito de descrição de práticas não reconhecidas pela maioria culturalmente dominante5.
Poder-se-ia dizer que, na Era Medieval, o “feitiço volta-se contra o feiticeiro” e é, principalmente, no ataque pela parte de cristãos aos resquícios do paganismo clássico que o termo magia é utilizado. O mesmo paganismo clássico que utilizou o termo como descrição de religiões estrangeiras é agora sujeito à acusação de magia por um novo paradigma cultural representado pelo cristianismo. Santo Agostinho é um dos mais influentes expoentes das ideias anti-magia; no livro X da Cidade De Deus, o próprio Agostinho fala sobre a utilização do termo magia quando descreve os pensadores neoplatônicos:

[...]pois eles desejam diferenciar entre aqueles a que as pessoas chamam magos, que praticam necromancia, e estão viciados em artes ilícitas e condenados, e aqueles outros que parecem ser dignos de elogio pela sua prática de teurgia, – a verdade, no entanto, sendo que ambas as classes são escravas dos ritos enganadores dos demônios que invocam sob o nome de anjos.6
Agostinho reforça então a perspectiva de que a atribuição da etiqueta “magia” é dependente do ponto de vista do escritor - para Agostinho, como cristão, a teurgia é também magia, tal como a necromancia, pois não está inserida no contexto cristão e, logo, as práticas utilizam forças demoníacas. Outra contribuição importante de Santo Agostinho, para a definição daquilo que veio a ser visto como magia, está na sua associação da magia à “teoria dos sinais” no texto De Doctrina Christiana no qual associa a Magia à idolatria e demonolatria:
devido ao uso de sinais direcionados ambiguamente, que demônios podem manipular e usar para enganar humanos, a magia pode ser vista como uma espécie de linguagem que os humanos e demônios têm em comum7.
Nasce aqui, então, a ideia estereotipada do mago como aquele que faz sinais misteriosos de forma a contatar seres sobrenaturais, uma ideia que informa as percepções de magia até aos dias de hoje e que leva a grande parte das distinções entre o que é religião e magia. É, no entanto, no fim da época medieval e no Renascimento, que começam a aparecer perspectivas mais positivas no que diz respeito à magia, e isto sucede devido a criação de uma nova subdivisão dentro do campo chamado de “magia” - para além da “magia ritual” de que Agostinho fala, desenvolvem-se teorias agora respeitantes à “magia natural”. Esta “magia natural” não utiliza a mediação de seres sobrenaturais como a ritual, mas, sim, as propriedades ocultas no mundo físico. Bons exemplos desta “magia natural” estão presentes em fenómenos como a astrologia, alquimia e também certas formas de medicina. Estas ideias supõem uma relação de correspondência e inter-relação entre elementos naturais, o ser humano, e o mundo metafísico, mas não dependem da intervenção direta do sobrenatural. Nesta perspectiva, a “magia” torna-se quase uma ponte entre a religião e a ciência, utilizando métodos que mais tarde se tornarão parte integrante do método científico, mas a cuja eficácia subjazem teorias derivadas do hermetismo e neoplatonismo pagão, no que respeita à interligação dos vários planos de existência (o que justifica até aos dias de hoje, por exemplo, as influências planetárias nas vidas humanas, segundo os crentes nas ideias astrológicas). O Renascimento é uma época em que muitos dos textos da Antiguidade Clássica são redescobertos pelos europeus, levando a um ressurgimento das ideias herméticas e neoplatônicas que garantem essa justificação à nova “magia natural”. É, também nesta época, que os primeiros estudos sistemáticos daquilo a que se chama magia começam a surgir abertamente na Europa, como a De Occulta Philosophia Libri Tres de Cornelius Agrippa ou a Magia Naturalis de Giambattista della Porta, mostrando uma maior abertura cultural e social a novas ideias relacionadas com a “magia”, que pela primeira vez deixa de ter um sentido completamente pejorativo, passando também a ser associada ao renascimento das ideias clássicas.
Relação entre magia e religião: séc. XVIII a XXI
A modernidade herda do renascimento as várias ideias de magia desenvolvidas anteriormente, agora, já com uma forte distinção entre a “magia sobrenatural” e a “magia natural”, que passa a ser vista como uma proto-ciência, visto que, a partir da Idade Média e até à Modernidade foi-se, progressivamente, afastando da “magia ritual” ou sobrenatural. No entanto, a noção de magia como a “superstição dos outros” continua bem firme; na Encyclopédie de Diderot e d'Alembert publicada em 1765, a definição de magia inclui o seguinte excerto:
Como uma ciência negra, é honrada em países onde o barbarismo e a rudeza governam. Os Lapões e, em geral, os povos selvagens cultivam a magia, e têm-na em grande consideração8.
Os editores da Encyclopédie dividem a ideia de “magia” em três grupos:
- Primeiro, “magia divina”, que consiste de revelações divinas ao homem santo, vista de forma positiva se bem que levantando grandes dúvidas aos editores da Encyclopédie;
- Segundo, “magia natural”, que é vista também de forma positiva, como tendo trazido avanços inestimáveis à humanidade através do estudo aprofundado da natureza e que consideram estar a ser, corretamente, substituída pela ciência, e que os cientistas de hoje (séc. XVIII) irão também parecer magos para sociedades mais avançadas no futuro (note-se que a ideia de mago aqui implica atraso).
- Terceiro, “magia sobrenatural”, a que se chama propriamente magia. Esta última merece ter a sua definição extensamente citada de forma a compreendermos a perspectiva iluminista em relação à magia:
Esta magia negra, que ofende sempre, que leva ao orgulho, ignorância e à rejeição da ciência; é esta que Agrippa incluiu sob as etiquetas “celestial” e “cerimonial” [ou ritual]. Não é ciência se não no nome e não é nada se não um amontoado confuso de princípios obscuros, ambíguos e inconclusivos, práticas que eram geralmente arbitrárias e infantis, a inutilidade das quais é demonstrada pela natureza das coisas.
Agrippa que era também um filósofo para além de mago, utilizou o termo “magia celestial” para descrever a astrologia judiciária que atribuía a espíritos algum domínio sobre os planetas, e aos planetas algum domínio sobre os homens. Também afirmou que as diferentes constelações influenciavam as tendências, destino e boa ou má fortuna dos homens. Baseado nestas fracas fundações, construiu um sistema ridículo, que não se atreve a aparecer hoje em dia exceto no “Almanaque de Liége” e outros livros similares. Estas patéticas coleções de material alimentam preconceitos e erros populares9.
Nessa citação, quase se ouvem os ecos distantes dos argumentos anti-religião utilizados por escritores contemporâneos do séc. XX e XXI como Richard Dawkins. A visão da magia como entrave à ciência e como algo que alimenta erros e preconceitos nas mentes populares foi hoje substituída, numa época mais permissiva, pelas mesmas ideias aplicadas à religião em vez da magia.
É, no entanto, na fase pós-iluminismo, particularmente, a partir da segunda metade do séc. XIX, que surgem autores e grupos organizados que se começam a definir como sendo magos ou praticando magia, frequentemente, como forma complementar à religião ou, mais raramente, como reação à religião imposta. Um dos primeiros exemplos desta reabilitação da magia como sistema está presente no escritor francês Eliphas Lévi (1810-1875), que através das suas obras desenvolve uma ideia coerente de magia em que a força de vontade do homem tem o poder de alterar o mundo, baseado em ideias de microcosmo e macrocosmo que advêm do hermetismo dos primeiros séculos da nossa era, e filtradas pelo Renascimento. Será este mesmo Eliphas Lévi a influenciar tremendamente a primeira ordem secreta que se intitula de ordem magica, a Aurora Dourada ou Golden Dawn inglesa; o fundador da ordem, Samuel Mathers, era um profundo admirador de Lévi, como se pode ver pelas introduções das suas obras, que citam Lévi frequentemente. Vários membros da ordem, que terão um impacto forte no desenvolvimento das ideias de magia no séc. XX e XXI, são também admiradores de Lévi. A.E.Waite, escritor e co-criador do baralho de tarot Raider-Waite traduziu uma grande parte dos livros de Lévi para inglês e um dos mais famosos membros da ordem da Golden Dawn, Aleister Crowley, acreditava ser uma reencarnação de Lévi. Mas se Lévi influenciou a Golden Dawn e o seu currículo mágico, a própria Golden Dawn foi ainda substancialmente mais influente do que os escritos de Eliphas Lévi, como afirma Hanegraaff:
A “Hermetic Order of the Golden Dawn” [Ordem Hermética da Aurora Dourada] é uma ordem ocultista do virar do século [XIX para XX]. Todos os grupos que praticam magia ritual no séc. XX são dependentes do impressionante sistema de rituais que foi desenvolvido pelo seu membro mais criativo, Samuel Liddell McGregor Mathers11.
O que esta afirmação implica é uma dívida pela parte de grupos religiosos Neo-Pagãos, Wiccans, membros de grupos de Magia Cerimonial, Thelemitas, entre outros, à Golden Dawn devido à sua cristalização do ritual mágico no contexto desta ordem. Estas práticas continuam a ser populares hoje, e, desde o advento da Internet, estes grupos religiosos/mágicos têm-se espalhado a um ritmo bastante rápido.
Deparamo-nos aqui com uma questão nova no caso da relação entre religião e magia. Neste caso, temos grupos que se auto identificam, orgulhosamente, com a magia, em vez de a palavra ser um termo pejorativo dado por outros. Este fenômeno é, de certa forma, semelhante ao que acontece com a palavra “pagão”, também adotada pelos Neo-Pagãos, e que tem uma história semelhante de uso pejorativo, quando aplicada, por exemplo, pela maioria cristã. Em ambos os casos, existe um elemento de “recuperação” de palavras que foram feitas impuras pela forma como foram utilizadas, bem como um elemento de distanciamento da maioria culturalmente dominante - um certo elemento de “choque”. Não deixa, no entanto, de ser um termo  êmico, aplicado pelos praticantes àquilo que eles próprios praticam, e que, por isso, deve ser respeitado. Isto, no entanto, não implica a sua distinção do conceito de religião, visto que Neo-Pagãos, Wiccans e Thelemitas se considerariam membros de religiões que expressam a sua religião através de práticas mágicas. O mesmo não acontece quando, por exemplo, no contexto de estudos antropológicos, se aplica o termo “magia” a povos que não utilizam esse mesmo termo para definir as suas práticas religiosas. Veremos alguns exemplos disto na secção seguinte.
Como o mundo acadêmico tem visto a distinção entre magia e religião
No seu artigo introdutório sobre “Magia”, no Dictionary of Gnosis and Western Esotericism, Wouter Hanegraaff divide as perspectivas que levaram ao conceito de magia utilizado correntemente no mundo académico em três teorias12. A primeira destas teorias é representada por E.B. Tylor (1832-1917) e J.G. Frazer (1854-1941), tendo Tylor desenvolvido uma teoria “evolucionista” da sociedade humana, segundo a qual o homem evoluiria de um estado animista, para um estado politeísta, monoteísta e por fim culminaria no triunfo da ciência. A prática de magia estaria então relacionada com os dois primeiros estados da humanidade (animismo e politeísmo). No entanto, para Tylor, “magia” é independente da religião, sendo vista mais como “má ciência” do que como “má religião”, como se pode ver pela seguinte descrição da “ciência oculta” da astrologia:
[…] a astrologia depende de um erro da primeira ordem, o erro de confundir uma analogia ideal com uma relação real. A astrologia, pela imensidão da sua influência ilusória na humanidade, e pelo período relativamente moderno até ao qual se manteve como um ramo honrado da filosofia, pode-se arrogar do lugar mais elevado entre as ciências ocultas. Não pertence aos níveis mais baixos de civilização, apesar de um dos seus conceitos fundamentais, a das almas ou inteligências animadas dos corpos celestiais, estar enraizado no mais profundo da vida selvagem13.
Mais uma vez, a “ciência oculta” e, por analogia, a magia, estão associadas a processos mentais “selvagens”. Frazer viria a simplificar as ideias de Tylor criando um ciclo evolutivo com três passos: magia-religião-ciência. A humanidade, no seu estado mais primitivo, pratica magia; no seu estado intermédio, segue a religião e, num estado mais evoluído, seguirá a ciência. No entanto, nunca é dada uma distinção satisfatória entre religião e magia; para Frazer, a magia é distinta da religião devido à ideia de “simpatia” ou seja, que existem correspondências entre coisas semelhantes e que, afetando umas, as outras serão também afetadas (um exemplo simples seria espetar agulhas num boneco de forma a afectar uma pessoa). Isto não explica, no entanto, como pode, então, ser considerada religião o rezar perante uma imagem da divindade, por exemplo, sendo a imagem também um caso de processo simpático, um crucifixo sendo uma imagem daquilo que se pretende contatar, algo semelhante ou “simpático” ao alvo da oração.
Uma segunda teoria da magia discutida por Hanegraaff no artigo acima mencionado foi desenvolvida por Marcel Mauss (1872-1950) e Émile Durkheim (1858-1917). Em oposição a Frazer e Tylor, Mauss define magia não como simplesmente a ação “simpática”, mas, sim, como o ato ritual privado:
um rito mágico é qualquer rito que não faça parte do culto organizado – é privado, secreto, misterioso e aproxima-se dos limites do rito proibido.
Esta teoria, que é depois suportada por Durkheim, parece, à primeira vista, evitar alguns dos problemas de eurocentrismo presentes na teoria Tylor/Frazer. No entanto, parece ter pouca base empírica, como escreve Hanegraaff:
(…) as premissas básicas para a sua teoria [de Mauss] são de facto derivadas inteiramente das categorias tradicionais da heresiologia Cristã: sendo adotados, de forma acrítica, preconceitos paranoicos em relação à magia como as práticas do “outro” não-socializado, como fundação para um estudo supostamente acadêmico daquilo que a magia é.
Conseguimos ver, então, como a teoria de Mauss/Durkheim cai, não só no mesmo erro que Tylor/Frazer, mas também nos mesmos preconceitos de S. Agostinho e de Diderot - a magia é a “crença ilógica do outro” seja o outro o “selvagem” ou “primitivo” ou, no caso de Mauss/Durkheim, o que existe nas margens da sociedade e da instituição religiosa. Este princípio parece ser aceite, tacitamente, sem uma discussão convincente ou profunda que defina a magia em oposição à religião através de conceitos externos ou éticos16 à própria religião dominante.
A terceira teoria da magia tem as suas origens em Lévy-Bruhl e na ideia de “participação”, uma ideia que Lévy-Bruhl associa à mente Pré-Moderna em que causas e efeitos estão, de tal forma associados, que são vistos como idênticos e consubstanciais, logo participando um do outro. Apesar de Lévy-Bruhl não ter desenvolvido esta teoria com a ideia de magia em mente, foi, no entanto, adaptada por outros escritores, como Malinowski, de forma a identificar “participação” com “magia”, de certa forma, voltando à ideia de Frazer da magia como um processo de “simpatia”. A identificação de magia com processos mentais pré-modernos reforça a ideia evolucionária, que põe a magia num ponto evolutivo anterior ao do homem moderno, bem como os seus praticantes num ponto inferior ao “homem moderno”. A força política desta ideia foi de grande utilidade para as potências coloniais e para a sua “missão civilizadora”: o colonialista que define a si próprio como mais evoluído é justificado através destas definições na conversão e controle daquilo a que chamavam povos “primitivos”, pois a sua ação é benéfica para os colonizados. Note-se, também, que todas estas teorias são desenvolvidas por pensadores oriundos de países colonizadores, seja o Reino Unido ou a França, dos quais as teorias irradiaram para o resto da Europa colonialista durante a primeira metade do séc. XX. Não é, até ao início do séc. XXI, que a aceitação tácita da dicotomia magia/religião começa a ser seriamente posta em causa, visto que nenhuma das teorias, anteriormente desenvolvidas, é intelectualmente satisfatória no que diz respeito à distinção magia/religião. Hanegraaff
16 Ético é aqui utilizado no sentido da dicotomia êmico/ético, ou "insider/outsider", um conceito êmico sendo um conceito que tem as suas origens dentro da própria perspectiva religiosa e um conceito ético sendo um conceito externo à concepção religiosa. Para a religião ser analisada de um ponto de vista das ciências humanas os conceitos devem então ser éticos de forma a não estarem comprometidos com nenhuma perspectiva religiosa.
faz uma boa síntese desta nova perspectiva, neste caso, em relação à ideia de magia num contexto ocidental, mas que é igualmente aplicável a povos não ocidentais:
Uma abordagem mais consistente e historicamente mais produtiva seria começar por reconhecer o pluralismo religioso que sempre caracterizou a cultura ocidental, e analisar a magia como um conceito em grande parte polemico, que tem sido usado por vários grupos comprometidos religiosamente ou para descrever as suas próprias crenças e práticas religiosas, ou – mais frequentemente – para desacreditar as dos outros.
A utilidade da palavra magia resume-se então à utilidade de um termo émico, que apenas faz sentido no contexto do discurso de um grupo religioso, e não como categoria de analise acadêmica. É no fundo uma palavra que define uma opinião teológica sobre as práticas dos outros, ou em casos particulares (como Neo-Paganismo, Wicca ou Thelema por exemplo) sobre suas próprias práticas. Na secção seguinte, analisaremos, então, as razões para rejeitar a palavra “magia” como termo ético independente do termo “religião”.
Como utilizar a palavra “magia”
Como temos visto, ao longo de todo este artigo, a palavra “magia” apresenta-se, quase sempre, como uma palavra problemática utilizada como munição teológica ou política seja pela religião instituída ou pelo poder político dominante (como no caso dos poderes coloniais, ou até governos centrais, como forma de atacar ou negar a validade das crenças de minorias). Como vimos acima, é, também, por vezes, utilizada como um termo de auto-descrição por religiões minoritárias no mundo ocidental, muitas das quais têm uma ideia de contra-cultura como uma das fundações do seu pensamento, fazendo então sentido a utilização de termos que são desprezados pela cultura dominante (compare-se o termo “magia” aos termos “pagão” e “bruxa” ou “bruxaria”, termos com histórias e conotações semelhantes e utilizados por estes mesmos grupos). Torna-se, então, aparente a dificuldade na utilização da palavra “magia”, como um termo de utilidade descritiva no estudo científico da religião ou a sua utilização em qualquer ciência social e humana. Não se trata, sequer, de uma questão sobre o fato de a magia ser ou não independente da religião como conceito, ou se deve ser vista como uma sub-divisão do fenômeno religioso. De facto, a palavra “magia”, como é geralmente utilizada, não pode ser vista senão como religião ou ritual religioso, ou seja, deve ser completamente fundida dentro do termo “religião”. Mesmo quando descrita pelos praticantes como “magia”, tal termo deve ser visto como um descritor émico, ou seja, uma descrição que o grupo faz de si próprio, mas não um termo de utilidade categorizante e descritiva do ponto de vista científico, tal como um grupo que se descreve como o “verdadeiro cristianismo”, por exemplo, deve ser visto como um grupo que êmicamente se descreve como tal, sem que isto implique que a categoria e descrição científica do grupo seja realmente a do “verdadeiro cristianismo”. O termo “magia” pode então ser tratado como qualquer outro termo que descreva um juízo de valor, importante quando da análise do discurso êmico, mas irrelevante para a descrição acadêmica.
Outro elemento importante, que leva ao descarte da palavra “magia”, como termo útil à descrição analítica, é a própria metodologia moderna para o estudo do fenômeno religioso. O estudioso acadêmico que adota uma posição ética (externa ou de “outsider”), de forma a ser o mais imparcial possível na sua análise do fenômeno religioso, não se pode identificar pessoalmente com o seu objeto de estudo. Em vez disso, o estudioso tenta chegar a conclusões que sejam tanto quanto possível “científicas”, ou seja, observáveis e falseáveis18. Por esta mesma razão, o estudioso ético não deve fazer julgamentos de valor, no que diz respeito à verdade ou inverdade de afirmações metafísicas, sendo estas afirmações que não podem, pela sua própria natureza, nem ser observadas nem falseadas por outros estudiosos. Como tal, a realidade dessas afirmações pode ser um assunto para o discurso êmico, mas não é passível de ser resolvido através da discussão acadêmica. O estudo científico da religião procura estudar aquilo que é determinável, através dos meios disponíveis ao cientista neste mundo e não fazer conjecturas sobre o “outro mundo”. Isto leva a que a atitude adotada, geralmente para o estudo da religião, seja uma de agnosticismo metodológico, ou seja, a suspensão do julgamento pessoal do estudioso sobre um fenômeno religioso, enquanto está no seu papel de estudioso. É importante, também, notar que a palavra, aqui utilizada, é “agnosticismo” e não “ateísmo”, não implicando portanto uma atitude hostil em relação à religião, apenas numa suspensão do julgamento sobre aquilo que é impossível de provar ou “desaprovar”. A ideia, que subjaz ao termo “magia”, depende, sempre, de um julgamento de valor sobre a validade da prática religiosa e como tal é incompatível com a perspectiva do agnosticismo metodológico; quando o estudioso utiliza a palavra magia para descrever um fenômeno está a fazer um julgamento de valor, mesmo que inconsciente, em relação à efetividade metafísica do ato mágico. Do ponto de vista do agnosticismo metodológico a prática, dita mágica, ou, por exemplo, o ritual praticado no contexto da eucaristia cristã tem igual validade, pois a diferença que faz de um magia e do outro religião, é uma diferença ao nível metafísico e, logo, não mensurável de um ponto de vista científico.
Para além destes problemas metodológicos, existe também uma carga histórica e política do termo, que leva a que seja preferível para o estudioso pô-lo de parte, de forma a não ser associado não só às atitudes xenófobas que levaram à origem e utilização do termo desde a Grécia Antiga até ao Período Colonial, mas também às próprias políticas de diferenciação e de justificação da “missão civilizadora” utilizadas pelos poderes coloniais. O termo “magia”, que historicamente pode ser definido como “a religião dos outros”, é sempre politicamente incorreto, a não ser quando este é utilizado em relação aos grupos que utilizam o termo para se descrever a si próprios.
Por último, surge-nos a particularidade daquilo a que se chamou “magia natural”, sendo um conjunto de sistemas do período medieval tardio e do Renascimento que, segundo os seus defensores, não utilizava métodos sobrenaturais para os seus resultados efetivos. No entanto, esta “magia natural” não é também um termo independente, visto que em certos casos (astrologia, por exemplo), dependia de ideias neoplatônicas e herméticas que eram, sem dúvida, religiosas e, em outros casos (alguns resultados alquímicos e medicinais), eram proto-científicas, sendo muitas vezes resultados que mais tarde vieram a ser codificados e explicados através da ciência. Ao invés da magia, no seu sentido mais amplo, a “magia natural” dissolve-se não só na religião, mas também na ciência.
Conclusão
Toda a carga política, social e cultural da palavra "magia", acima discutida, leva à conclusão que, embora seja uma palavra que tem de ser reconhecida como fazendo parte integrante do discurso êmico sobre religião e, logo, é um sujeito de análise como tal para o estudioso das religiões, não pode ser vista como uma categoria com existência independente da religião. De fato, podemos facilmente chegar à conclusão que toda a "magia" que lida com elementos sobrenaturais é, de fato, motivada pelo sentimento religioso e, como tal, é parte integrante do largo e variado fenômeno da religião. Como vimos, também acima, existem alguns casos em que algo que se descreve como "magia" não lida com esses elementos sobrenaturais, sejam alguns elementos da "magia natural", que podem ser considerados como proto-ciência ou até a própria magia como arte de palco ou ilusionismo. Esta ideia da magia, como ilusionismo no contexto de palco, ajuda também a ilustrar a forma como a palavra foi historicamente usada. Neste caso, não estritamente como "a religião do outro", mas como ilusão, a realização de falsos milagres para o entretenimento de um público. Esta ideia de falsos milagres, ou falsa religião é uma ideia que esteve sempre colada à etiqueta "magia", sendo portanto uma palavra que descreve um ponto de vista teologicamente informado que só faz sentido na perspectiva do crente, na separação que faz entre a sua religião e o que lhe é estranho, ou "mágico". Para um investigador que tente ser isento na sua apreciação do fenômeno religioso, adotando o agnosticismo metodológico, esta distinção deixa rapidamente de fazer qualquer sentido, quando separada da perspectiva teológica que lhe é associada. A verdade é que acabamos por não ter uma definição abrangente e não pautada por perspectivas teológicas que se aplique ao fenômeno de "magia" como algo realmente distinto do fenômeno religioso em geral. A única definição constante para o fenômeno de magia, desde a Grécia Antiga até ao séc. XX, parece ser a expressão religiosa daqueles que se encontram à margem da sociedade culturalmente dominante, sejam estes os persas ou caldeus em relação aos gregos, os povos colonizados em relação a
Inglaterra, França ou Portugal, a religião popular das mezinhas e remédios tradicionais em relação à elite cultural, ou mais recentemente a autodescrição da expressão religiosa daqueles que se consideram a si próprios como existindo nas margens da cultura dominante (Pagãos, Wiccans, Thelemitas, praticantes de Magia Ritual entre outros). É a religião à margem daqueles que escrevem a história, é a religião dos outros.

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