sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A verdade e as versões





Este texto foi dado para análise e posterior considerações por um professor de meu mestrado e compartilho com os amigos do blog no intuito apenas de levar  o conhecimento aos que  assim  desejam, vale a pena conferir e  fazer reflexões a respeito.

A verdade e as versões
Luiz Carlos Susin
Que é a verdade?” (Pilatos)
 “Não há fatos, só há interpretações”: esta afirmação de Nietzsche profetiza o que marcaria o último século não apenas a respeito dos fatos, mas da verdade dos fatos: não haveria propriamente “a verdade” – sobretudo assim, dita no singular – pois o que há, de fato, são muitas interpretações, muitas versões reais ou possíveis. Então, quanto muito se pode conceder que haja “verdades”, no plural. Tantas haveria quantas versões? Seria demasiado, mas esse “excesso” - excesso de versões - faz parte de nosso tempo pluralista, época da informação, da notícia, da interpretação dos fatos e até da sua mercantilização. Não é de estranhar que acabem se desencadeando guerras entre as versões: elas são normalmente movidas por conflitos de interesses. Nesse caso, a primeira vítima é a própria verdade. Foi o caso de Jesus.  
A pergunta de Pilatos a Jesus – “que é a verdade?” – pairou no ar. Jesus acabara de fazer uma provocação: “Para isto eu nasci e para isto eu vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Quem é da verdade escuta a minha voz”. Pilatos então retrucou com sua pergunta – “que é a verdade?” - mas não esperou resposta alguma: “tendo dito isto, foi ao encontro dos judeus...”(Cf. Jo 18, 37-38). Pode-se suspeitar seriamente que Pilatos ironizava, pois já tinha a sua versão. Como os chefes de Jerusalém também tinham a sua versão. O testemunho de Jesus a respeito da verdade seria mais uma versão, certamente a menos interessante para Pilatos. O que parece confirmar a conclusão de Nietzsche: “Não há fatos, só há interpretações”. É dele também a conclusão de que só é verdadeiro o que interessa para a vida.
Em tempos que são chamados “pós-metafísicos”, dos quais Nietzsche é um profeta que causa vertigens, parece, de fato, que não se consegue pensar em uma verdade transcendente acima da multiplicidade e da dispersão das interpretações e dos interesses, nem estabelecer a verdade de modo definitivo, eterno e imortal, como aspiravam os grandes filósofos gregos e os primeiros teólogos do cristianismo. Em tempos pos-modernos só se consegue permanecer numa paisagem “meteorológica” da verdade, paisagem com pouca estabilidade e muita surpresa. É sintomático que a meteorologia tenha se transformado em uma notícia diária cheia de charme, um verdadeiro “paradigma” tecido de possibilidades contínuas de variações.
Dessa forma, o caminho a percorrer neste capítulo já está sugerido: vamos passear pela paisagem posmoderna das versões mesmo que não se consiga atingir os fatos, e vamos em busca da verdade por clareiras que esperamos serem cada vez maiores até chegarmos a uma paisagem que descortine a amplidão imensa da verdade e suas fontes e a complexidade de sua comunicação.  

<!--[if !supportLists]-->1.      <!--[endif]-->O coração na pele e a revelação na máscara.
“O mais profundo é a pele” (Gilles Deleuze) é algo tão verdadeiro como a constatação de que a intimidade está no corpo mais do que na alma. Por isso a violação da pele é a violação da intimidade, e a revelação ou o recolhimento da intimidade coincide com o desnudamento ou o encobrimento da pele. Vamos usar aqui a pele como uma metáfora, uma figura que pode nos dizer algo mais. Não é “sob” a pele, numa interioridade ou num alem dela que se encontra a verdade de alguém que a pele protegeria. De fato, a pele marca o “dentro” e o “fora”, o corpo e o além do corpo. Mas ela é também o lugar de comunicação e de transparência ao mesmo tempo em que é revestimento de pudor e recolhimento do que está dentro. Assim como é lugar de sensibilização e de comunhão em relação ao que está fora ao mesmo tempo em que é lugar de distanciamento e defesa do que está dentro. A pele é lugar de toque e de reação ao toque. A pele respira, palpita, é lugar de nutrição e de excreção. A novidade posmoderna é que o coração, o centro, o mistério, a interioridade, a profundidade, tudo isso foi parar na pela, está nesta ambivalência da pele. Nela está a ambigüidade de notícia e verdade, nela as versões que se desdobram e a realidade que dá sustento às versões, se fundem: O que aparece, é! Se não fosse, não apareceria. É fácil constatar que as coisas mais profundas que a palavra não consegue pronunciar, a cor da pele revela, às vezes até precipitadamente.<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]-->
Sem palavras ainda, a pele é fonte de ambigüidades. Que aumenta se a pele se comunica revestida de máscaras. A máscara é outra poderosa metáfora de comunicação ambivalente, colada à pele.
A máscara pode ser compreendida a partir de dois usos: a máscara de carnaval e a máscara ritual. A máscara de carnaval é utilizada, ao menos conforme o antigo uso dos bailes de máscara, para esconder. Permite, assim, o jogo das identidades e das relações ambíguas sob a proteção da verdade mascarada. Portanto, sua primeira função é esconder a verdade, introduzir a fantasia e a ilusão que deixam a verdade à mercê da ambiguidade. Mas justamente em pleno carnaval, a máscara pode ter a função oposta, a de revelar e expressar quem realmente se é e o que realmente se sente. Assim, por exemplo, a moça que trabalha o ano inteiro como faxineira, sob o peso de uma máscara cotidiana de gata borralheira, quando põe seus enfeites de porta-estandarte ou de princesa do Congo, permite vir à tona o que ficou escondido todos os outros dias do ano e pode finalmente se revelar em sua verdade mais íntima: a princesa sob a espessura da empregada doméstica. E isso nos remete à função ritual da máscara nos ritos de muitos povos tradicionais: elas são usadas como expressão simbólica de uma identidade profunda, revelação de realidades que permanecem ocultas ao cotidiano e que só se expressam em tempos especiais. Nesse sentido, a máscara, que pode ser uma simulação, também pode ser um rosto mais profundo e mais autêntico.
Os nossos tempos posmodernos, em que as imagens ultrapassam as palavras, parecem exigir máscaras cada vez mais sofisticadas e continuadas, num carnaval cada vez mais extenso e intenso: é a comunicação exasperada por imagens que melhorem o cotidiano. Um pequeno exemplo, contado no opúsculo O que é o posmoderno<!--[if !supportFootnotes]-->[3]<!--[endif]--> ajuda a compreender: Uma senhora encontra sua amiga levando pela mão a própria filha e a elogia – “como está linda a sua filha!” – e a outra retruca: “Isso não é nada, precisa ver as fotografias dela!”. Portanto, a menina é mais bonita em um book de fotos do que em carne e osso, a fotografia esteticamente mais real do que a brutal realidade do cotidiano, a imagem ou a cópia melhor do que a realidade que lhe corresponde. Que as fotos sejam hoje mais bonitas do que a realidade de uma paisagem ou de um rosto, é algo que assimilamos com ingênua euforia. Afinal, as ferramentas do Fotoshop são para melhorar a imagem da realidade dura de nossos rostos enrugados e estressados ou de nossas paisagens suburbanas devastadas. Nessas imagens ainda se revela a nossa verdade? Até onde a máscara ainda exerce a sua boa função de revelação profunda? Em sua versão atual, ela é simulacro
Simulacros são signos ou imagens que só se referem a si mesmos. Afastaram-se tão distantes do real de onde partiram que já não remetem mais a realidade alguma além de si, sem referência ao modelo originário. Por isso todo simulacro tem o poder – a sua “virtualidade”, ou seja, força – de inverter a relação e se tornar “mais real do que a realidade”, mais ou menos como alguns casos de personagens de telenovela que se tornam critérios para julgar a verdade do cotidiano fora da tela. Não é mais a arte que imita a realidade, mas a realidade que imita - ou deve imitar – a arte. E isso nos lembra Platão. O filósofo grego advertia que a imitação – a mímisis, de onde provém a mímica – é como as representações no fundo da parede da caverna: não são meras cópias, pois tem poder de substituir a verdadeira realidade e se tornam a fonte da confusão e da violência entre os escravos da caverna. O que diria ele do mundo de imagens do grande espetáculo que se tornou a cultura posmoderna? Nessa sofisticada caverna de altas doses de imagens “virtuais” – com força de fascinação prometendo realidades mais reais do que a realidade de carne e osso - a primeira vítima é a verdade.
Em termos de luz e sombra, ficando ainda com Platão, é como se as sombras tivessem absorvido tanta luz a ponto de a luz se tornar sombra. Na caverna, a luz estaria colocada por trás dos escravos e o que eles viam parede – na tela – eram suas próprias imagens e as tomavam como sendo reais, um espelhamento sombrio. Mas também espelhamento em que o espelho “toma vida” e se torna senhor da realidade. Tornou-se freqüente, em nossos tempos, a patologia chamada transtorno disfórmico corporal (TDC): adolescentes que internalizaram forte juízo negativo a respeito de seus corpos olham-se no espelho e se vêem com toda certeza mais gordas do que realmente são. Tornam-se anoréxicas sem conseguir modificar a imagem de si que vêem no espelho e que continua a julgá-las severamente. Já a própria anorexia passou a ser o desejo freqüente de adolescentes que sonham atingir as passarelas, como se precisassem desaparecer como pessoas reais para se tornarem puros cabides de roupas de luxo: as roupas (luxuosas), então, valem mais do que o corpo, valem o sacrifício do corpo, ao inverso do dito de Jesus que exortava à confiança: “não é o corpo mais que a roupa?”(Mt 6,25b). A passarela, com seus holofotes, tornou-se um dos símbolos da posmodernidade contemporânea: lugar em que o espetáculo julga, inspira, ordena a realidade, lugar de heróis e heroinas voluntariamente sacrificadas por anorexia para se tornarem as deusas fashion que movem a realidade. Pedro Bial, da Rede Globo, saudou os fantásticos globais confinados na “casa-passarela” do Big Brother como “nossos heróis” – homenagem perfeita, segundo a teoria sacrificialista de René Girard: os melhores vão sendo provados e sacrificados na “casa-altar”: passam para a glória sem nenhuma razão anterior a não ser exatamente essa: a imolação aos olhos deslumbrados de uma nação inteira de fieis. Para o espanto ético de Platão.
É que Platão pensou que uma sociedade somente seria possível se houvesse a anterioridade de valores e formas de vida – os arquétipos, as “idéias” modelares, formadoras – para inspirarem e atuarem nas formas concretas de existir no mundo. Sua teoria das formas ou, mais popularmente, seu “mundo das idéias”, com uma anterioridade lógica e performativa sobre as realidades concretas deste mundo, tinha um objetivo ético parecido com as Constituições de um país, anterior e superior a tudo e a todos, como uma lei geral à qual estão todos submetidos sem exceção. Todos sob os mesmos arquétipos como sob as mesmas leis. Esta seria a forma – assim pensava Platão – de dar um ponto final no círculo bárbaro de ídolos e sacrifícios, de fascínio e confusão de imagens e de relações fetichistas com imitações de realidade. Em sua tentativa de implantar a República Platão fracassou, como Jesus foi sacrificado. E nos assombram ainda a fascinação dos ídolos e o frenesi dos sacrifícios.   
Entre as “idéias” do mundo platônico e os “ídolos” dos quais ele pretendia, na esteira de Sócrates, libertar com ética e razão, há uma relação íntima mas em desnível, em decadência. Idéia e ídolo têm a mesma estrutura, o “eidos”, a imagem, a forma, como produção e projeção mental. Há um salmo bíblico que descreve precisamente esta relação:
Os ídolos das nações são prata e ouro,
Obras de mãos humanas:
Tem boca, mas não falam;
Tem olhos, mas não vêem;
Tem ouvidos, mas não ouvem;
Não há sopro sequer em sua boca.
Os que os fazem ficam como eles,
Todos aqueles que neles confiam (Sl 135, 16-18).
Essa identificação entre os ídolos e os que os fazem é reveladora: por um lado, os ídolos, mesmo os que tem seus méritos como grandes artistas ou esportistas, etc, enquanto “ídolos” são uma produção coletiva do desejo que se projeta neles, e, por outro lado, os que projetam neles seus desejos poderão encontrar neles não as qualidades reais que sempre estão acompanhadas de defeitos reais, mas simplesmente, de novo, os seus desejos, o que leva da exaltação ao linchamento do ídolo. Seja em termos posmodernos e secularizados, seja em termos religiosos, os ídolos são um produto do desejo que se erige em simulacro no lugar da realidade ausente, e só pode levar à frustração. É inteiramente comparável à pornografia: nela, o desejo, ao invés de ir ao encontro da realidade, se dirige ao simulacro e busca satisfação com uma fascinante imagem que dá o golpe no final: é vazia e abandona à frustração e à solidão. Constatar que estamos num tempo de exacerbação da imagem a ponto de se tornar um simulacro é também constatar que são tempos de altas doses de idolatria e pornografia – onde a verdade é a primeira vítima.    

<!--[if !supportLists]-->2.      <!--[endif]-->O nome da rosa e as rosas sem nome
O jornalismo investigativo é um gênero de jornalismo relativamente recente. O repórter que investiga busca a verificação da notícia, a apuração do fato. Apurar significa frequentemente também depurar, separar o fato de aparências, de interpretações que despistam a sua verdade, de corrupções e de violências que vitimam a verdade, o que torna o jornalismo investigativo uma missão ética e perigosa. Nesse sentido, num mundo de muita imagem, de muita linguagem, de generalizações e de sistemas cada vez mais virtuais, um amplo caminho de investigação é o de apurar a realidade singular, o fato originário e a sua verdade.
Umberto Eco, filósofo e semiólogo italiano, criou uma situação exemplar desta busca em O nome da Rosa. No seu mais celebrado romance, ambientado no final da Idade Média, mais precisamente em 1325, a trama se desenrola em torno de um franciscano que tem o mesmo nome do mais conhecido representante do nominalismo radical e irônico, Guilherme de Ockam. Ele é chamado a investigar uma grande abadia envolvida em acontecimentos nebulosos, com um encadear-se de sinais premonitórios e de suspense. Em meio à perplexidade e à desconfiança geral, a verdade vai se desvendando muito gradativamente, como entre nuvens que vão se dissipando. O que parecia um grande e firme sistema de verdades é que está ameaçado pelo descontrole e pela crueza de assassinatos em série. O que fugiu de controle? Quem está matando? Quais as razões? Frei Guilherme, com seu jovem discípulo, deve buscar o “furo”, romper a cortina para verificar a realidade sob sintomas contraditórios e despistantes. É uma investigação ao mesmo tempo jornalística, policial, filosófica e, finalmente, teológica. No coração da abadia está uma biblioteca, e no recanto mais escondido da biblioteca está um livro que não pode ser aberto e lido, sob pena de se desmoronar todo o sistema de valores da inteira abadia e até do cristianismo. E, enfim, o responsável pelo desencadear-se da violência que, de qualquer forma abala e faz desmoronar tudo, é justamente o que menos se podia pensar, o mais zeloso dos monges – o guardião daquele livro perigoso e subversivo. Esta verdade singular, neste caso uma verdade trágica, põe em chamas um sistema de acobertamento de verdades e de violências.
O nosso personagem, Frei Guilherme, como de fato ocorreu com o movimento nominalista, buscava a verdade dos fatos singulares e reais – que causam inclusive mortes - sob o manto de um sistema de instituições de consagração universal, sustentado por verdades com pretensão de universalidade, que criam as condições para o assassinato e o escondem. O romance, cujo autor participa da aventura posmoderna de desvendar algo de verdade na linguagem e nas múltiplas interpretações, toma partido pelo nominalismo: sob os nomes gerais, universais, como também sob os sistemas sofisticados que construíram grandes e fascinantes sumas e catedrais, só há o nada: nomina nuda tenemus – nós temos apenas nomes, nomes nus.
Umberto Eco escolhe uma direção na investigação da verdade: a verdade singular, irredutível a um sistema de explicações, aquela que é a verdade de cada um, de cada fato, sem generalizações. É a verdade que se desvenda descendo do universal e do sistema, da instituição e dos códigos estabelecidos, ao singular. Mas na história do Ocidente, esta foi normalmente uma reação à outra direção da investigação sobre a verdade, aquela que busca estabelecer cada ser e cada verdade singular num quadro cada vez mais geral e coerente de sistemas. Tal percurso é feito através de classificações, de analogias, de hierarquias, enfim de uma totalidade. A verdade inteira só pode se dar no todo, no universal e, finalmente, no transcendental.
Para os nominalistas, tais verdades e tal linguagem universal eram apenas “nomes” e “sons de garganta”. Quanto muito, realidades “de razão”, que estão apenas na mente e na funcionalidade da linguagem. Frequentemente decaem em meras produções mentais – mentiras sofisticadas, sofismas. Mas não são mentiras inocentes: elas escondem interesses de poder e por isso oprimem e mandam à fogueira quem não se submete a elas. Os nominalistas medievais, mal vistos pelos representantes das instituições, tinham algo dos “cínicos” gregos, cuja figura mais popular é Diógenes: eles corroíam a linguagem dos sofistas revelando o quanto eram jogos de palavras, retórica sem real conteúdo e encobrimento de interesses. É o que hoje chamaríamos de ideologias. Voltando aos nominalistas: o que conta é a experiência singular, a verdade singular, a linguagem que diz cada coisa por seu nome.
No entanto, os “universalistas” medievais, como os gregos que aspiravam conceitos e teorias claras e bem estabelecidas, também tinham boas razões para tomarem esta direção toda vez que buscavam a verdade: se permanecemos simplesmente na singularidade e na originalidade, os fenômenos não ganham nem lógica e nem coerência, nem se explicam e nem se expressam, ficam afinal sem nome algum – “rosas sem nome”. Somente em quadros mais gerais, em paradigmas, em contextos, é possível conhecer com coerência a verdade de cada fato e cada ser singular. Em última análise, somente à luz de uma verdade transcendental é possível reverter a disseminação e a nebulosa de verdades múltiplas que se perderiam sem significado estável num relativismo cada vez mais aniquilador de qualquer verdade. O que adiantaria, então, investigar os fatos se não fosse possível compreende-los à luz de valores universais e de um horizonte mais amplo que lhes dá significado, seja para celebrar seja para lamentar ou mesmo punir? Que adiantaria, por exemplo, investigar e chegar ao autor exato de um crime de assassinato se não houvesse um código válido para uma inteira sociedade estabelecendo que assassinato é um crime? Portanto, investigar fatos singulares supõe ter referências gerais para reconhecê-los, avaliá-los, e coloca-los à disposição em uma notícia adequada. Não é possível emitir juízos de valor tendo apenas fatos singulares.  
Se um dia formos repórteres de jornalismo investigativo, deveríamos considerar, como em círculo, em uma dialética, esses dois pólos em que se manifesta a verdade: na sua singularidade e na sua referência a valores ou princípios ou ainda constituições de caráter universal. Só assim será possível “compreender” a verdade, compreender em duplo sentido: aclarar intelectualmente e também acolher eticamente. Por um lado, a singularidade do fato, a sua intrigante e original qualidade ou monstruosidade. E, por outro lado, o seu contexto mais global em que se pode ter uma luz mais justa para apreciar a sua verdade e compreende-la melhor. Um exemplo? Algo contemporâneo muito parecido com o exemplo do romance de Umberto Eco: em nosso tempo, a verdade de um crime em que a mãe acabou matando o filho adolescente com a arma do marido é algo tão monstruosamente singular que parece ultrapassar qualquer medida, qualquer contexto, qualquer referência. Por outro lado, como atenuante dessa singular monstruosidade sem explicação, está o fato de um filho adolescente viciado sem medida em crack que maltrata a ponto de enlouquecer a própria mãe. O crack, no entanto, é um contexto, uma contaminação em rede, em sistema, inclusive econômico e financeiro, que compõe hoje o paradigma do desejo sem limite, da fascinação e da pornografia generalizada de nosso tempo, e que tornou o jovem e a sua mãe antes vítimas e depois enredados em um assassinato. É nessa polarização que se pode compreender o nome de cada ator desta tragédia e compreender de modo justo, intelectualmente e éticamente, o triste acontecimento.         

<!--[if !supportLists]-->3.      <!--[endif]-->O poder e o encanto da verdade e a beleza da integridade.
A mais clássica das definições de verdade, desde Aristóteles, o filósofo que ficou com a fama de pai da lógica e da ciência, é que a verdade é uma relação de adequação da mente que conhece com a realidade conhecida. Se a minha mente tem uma noção adequada da mesa que está diante de mim, eu possuo a verdade da cadeira em minha mente. Se eu tenho as informações exatas de um fato eu posso comunicar estas informações para que outros também compartilhem comigo o conhecimento do fato. Isso é conhecer, ter, informar a verdade. Ter verdades, nesse caso, é ter um certo cabedal, é possuir uma riqueza que pode ser ainda mais enriquecida com novos conhecimentos, e, finalmente, é ter um poder.
É nesse sentido que “saber é poder”, embora Aristóteles pensasse somente em um poder ético, o de ter condições de, com informações justas, praticar atos justos. Foi Francis Bacon, nos inícios da modernidade, que pensou a verdade como um poder de domínio e de controle sobre o mundo. Com isso, fizemos progresso, mas este mesmo progresso esteve na raiz de todas as guerras modernas e agora está na raiz de nossa incansável guerra contra o equilíbrio feito de recursos limitados da terra. A verdade como “adequação” de nossa mente e de nossos conhecimentos à realidade que está fora de nós precisa urgentemente voltar à intenção original, a de ter informações seguras para agir com sabedoria e frear a loucura de um sistema de vida em que o conhecimento e as informações se tornaram propriedades intelectuais e produtos de mercado.
Heidegger, um dos mais representativos filósofos do século XX, chamou a atenção para uma fonte mais antiga e mais humana da verdade: a verdade como “manifestação” dos seres, antes e sem nos importarmos com a apropriação de informações. Em grego, a verdade podia ser chamada como aletheia. Mergulhando em sua etimologia, descobrimos em seu subterrâneo um eco mítico, a narrativa da passagem dos mortos pelo rio lethes, o rio do “esquecimento”. Segundo a narrativa, o escorrer das águas do rio sobre os pés dos mortos levavam consigo, aos poucos, todas as lembranças, e acumulava estas lembranças do outro lado, de tal forma que os vivos, como herdeiros de suas memórias, poderiam ainda se beneficiar dos saberes dos mortos. Por isso, a verdade como a-letheia é este des-velamento, a retirada do véu do esquecimento e a manifestação do que estava oculto. Há, então, um encantamento, uma maravilha, uma alegria, na descoberta da verdade, no saber que devolve à fonte, ao original. O trabalho de investigar, de desvendar, de comunicar, se torna um respeitoso “deixar ser” ou deixar aparecer a epifania luminosa de cada acontecimento. É acolher e comunicar para que outros participem do mesmo deslumbramento. Ou quando o que se desvela é doloroso e trágico, o acolhimento desta verdade e a sua comunicação criam compaixão e solidariedade. Não há neutralidade na comunicação da aletheia: a verdade, nesta altura, só pode ser compreendida numa relação de disposição e de simpatia, de envolvimento e afinação poética, mesmo quando a poesia é dura. Um bom jornalismo contém algo de poesia.
A verdade é criação: este é o sentido da verdade que ultrapassa a adequação da mente e a apropriação da informação. Em latim, a raiz ver que origina a ver-dade, significa em primeiro lugar “primavera”, o primeiro verde que eclode como nova criação depois do ocultamento incolor do inverno. O verde da primavera se manifesta irrompendo, se impondo de forma luxuriante e contagiante. Podemos imaginar o nosso filósofo Heidegger em seus passeios pela Floresta Negra em plena primavera meditando este fenômeno, o aparecer da verdade na paisagem. De fato, toda verdade, mesmo as verdades sofridas, fazem nascer sempre de novo a esperança e a confiança no futuro: a verdade tem força, tem vitalidade, e “o que deve ser, será”.
A verdade não permanece apenas em uma ecologia primaveril que reage a uma paisagem amortecida e devastada. Ela tem um fundo ético, é uma experiência de criação de espaços de vida humana, reportagem de esforços humanos que, através da solidariedade dos dons, criam futuro onde não mais parecia haver, como as tantas iniciativas junto aos jovens envolvidos em delinqüência ou perdidos em drogas, aos pobres em periferias, etc. Este tipo de reportagem é contagiante, é conspiradora e co-criadora, traz à tona a verdade “autêntica”, como o caso da faxineira que no carnaval revela a princesa que carrega dentro de si o seu eu mais autêntico. Este é um jornalismo poético, criador, que faz bem.
Nesse processo da verdade criativa, como a verdade da semente lançada à terra que já traz em si a verdade futura dos frutos, pode-se entender retamente a verdade da técnica. Os gregos avizinhavam poiesis e tecne, filhas e testemunhas da capacidade de criar. A tecnologia não é necessariamente um destino que nos joga em excessos de artificialidade e em perigo de escorregarmos para o “pós-humano” comandado por ciborgues. A tecnologia é criação e linguagem nossa, “filha” da nossa capacidade procriativa, e isso pode - e deve - ser pensado eticamente: criar com sabedoria, com intenção e finalidade ética, com medida eticamente traçada. Inclusive sabendo o que vale a pena criar e o que não vale a pena criar: em termos de procriação tecnológica - usando uma analogia - é necessário ter paternidade responsável e controle de natalidade. Um jornalismo atento ajuda a discernir, mostrando as boas experiências criadoras e seus benefícios, e denunciando as criações da tecnocracia louca. Afinal, em nome do humano, nem tudo o que é tecnicamente possível é eticamente permitido.     
Há também uma experiência importante da verdade ligada ao princípio de coerência e integridade, ou seja, de “não contradição”. Disse no início que vivemos num tempo de versões, de muitas interpretações. E o mais notável é que experimentamos diariamente versões contraditórias. O “contraditório”, os pontos de vista contrários, são uma verdadeira ferramenta da imprensa, no exercício da livre expressão e do debate em clima de democracia. Não há porque temer o contraditório dos pontos de vista no debate. Mas isso não significa que podemos aceitar uma disseminação de verdades contraditórias a ponto de chegarmos a uma insustentabilidade social. Aqui, de novo, nos ajuda uma interessante experiência medieval, antes do dilema de Galileu com as autoridades da Igreja de seu tempo. Averróis, filósofo árabe, não via como conciliar as verdades da filosofia de Aristóteles com as verdades dos textos sagrados. Hipotizou, então, a possibilidade de “verdades paralelas”: o que é verdade em um campo de conhecimento não é necessariamente verdade em outro. Tomás de Aquino, que também examinou o pensamento de Aristóteles e acreditava nas verdades bíblicas, percebeu o perigo de mundos paralelos cada vez mais contraditórios, e trabalhou no sentido de aproximar as diferentes verdades, confrontá-las, estabelecer relações ou ao menos níveis entre elas e não apenas respeitá-las em suas diferenças. É o que ele chamou de “mútua excitação” entre verdades da razão e verdades da fé. Ele permaneceu, assim, na tradição de Agostinho, de Anselmo e de tantos outros que acreditavam no diálogo entre razão e fé em vista da verdade. Mas não só da verdade: é o amor que tudo une e compreende, na preciosa lição de Agostinho. Galileu não teve a mesma sorte, e depois dele, por muito tempo, explorou-se o conflito e a pretensão de ter toda verdade do próprio lado. Hoje, além da aceitação da interdisciplinaridade, quando pontos de vista contrastantes são colocados sobre a mesma mesa, quando interlocutores com convicções diferentes aceitam dialogar, se está assumindo a postura de Tomás de Aquino e as discussões escolásticas, com a vantagem de se fazer um trabalho democrático que ultrapassa as paredes da academia.
Em última análise, a integridade e a unidade da verdade, sem falsidade e sem contradições, é um caminho e um horizonte para o qual se orienta o debate em busca da verdade. Toda vez que se consegue, há uma experiência de harmonia ética, portanto de beleza e de gratidão. Mas é necessário confessar com humildade que esta harmonia e esta integridade, em sua inteireza, é um horizonte último vislumbrado na esperança. Pode ser antecipado, porém, toda vez que fazemos um passo a mais no debate em torno da verdade e no respeito a quem tem informações e análises e inclusive convicções diferentes. Antecipa-se a harmonia da verdade na harmonia da convivência pacífica.    

4. É verdadeiro o que é bom - mas só é bom o que é verdadeiro
Nietzsche, a esfinge de nosso tempo, afirma sem rodeios que a verdade é, afinal, uma questão de afirmação daquilo que ajuda a humanidade. É verdadeiro aquilo que ajuda a viver, a ser feliz, a ser saudável, e deixa de ser verdadeiro aquilo que nos prejudica e nos desvitaliza. Ele consagra assim certo “pragmatismo” como critério de verdade. Qual é a religião verdadeira ou mais verdadeira? Aquela que ajuda a ser mais humano, mais justo, mais livre, mais compassivo. Como poderia ser verdadeira uma religião que gerasse angustia e fantasmas em nós? Há uma grande dose de razão nesse critério de verdade. Pois a verdade, como a bondade, deve repousar em alguma experiência conseqüente, um fim intrínseco.
Aristóteles consagrou a felicidade como finalidade do ser humano. É a eudemonía – bom espírito – a exaltação última do humano, de certa forma a sua verdade última. Já para os teólogos cristãos como Santo Agostinho e Duns Scotus, a bem-aventurança ou beatitude, portanto a felicidade, é tanto o destino último do humano como a razão de ser da graça e da comunhão divina. Kant, em tempos de afirmação do sujeito humano, insiste que o humano é fim em si mesmo, antecipando-se em contradizer a tendência moderna e posmoderna de transformar o humano em mão de obra e terminal de consumo. Esta situação oprime a verdade do ser humano.
É ilustrativo, aqui, um novo passeio pelo mundo medieval. Duas escolas se batiam fervorosamente no século XIII na escolha da precedência entre verdade e bondade – ou o “bem”, que, pela palavra latina cáritas, podia ser entendido também como “amor” e inclusive como “vontade”, pois o amor se manifesta na liberdade, na livre vontade. Os seguidores do dominicano Tomás de Aquino mostravam que era necessário primeiro conhecer para depois querer e amar: não se quer e não se ama o que não se conhece, e só se ama bem o que se conhece bem. Portanto, há uma precedência do conhecimento sobre o amor e sobre a vontade. Mas os seguidores do franciscano Duns Scotus retrucavam invertendo: não se conhece o que não se ama, e só se conhece bem o que se ama bem, na liberdade do querer. Portanto, há uma precedência do amor e da vontade sobre o conhecimento. Pois, acrescentavam os franciscanos, conhecimento sem amor é vaidade - é vazio. Hoje diríamos que conhecimento sem ética é um grande perigo. Pode-se pensar, nesse debate de escolas, que a questão parece aquela da galinha e do ovo: quem vem antes? Não se deveria pensar em círculo, simplesmente? O verdadeiro conhecimento é conduzido pelo amor e faz crescer o amor, e o verdadeiro amor é conduzido por um verdadeiro conhecimento e aprofunda o conhecimento.
O nosso tempo parece se guiar pela prioridade do “bem”, daquilo que faz bem, do que é bom: é verdadeiro o que é bom! Mas a confusão de bem com um hedonismo desbragado e com um individualismo feroz – antes de tudo o “meu” bem - ou simplesmente o frio pragmatismo que decide o bem e a verdade por eficácia ou por interesses, é necessário afirmar não apenas que é verdadeiro o que é bom e o que é prático, concordando de certa maneira com os franciscanos e com Nietzsche, mas também que, para saber realmente o que é bom, o que pode dar uma felicidade mais profunda e mais duradoura, o que pode dar mais vida, é necessário afirmar o contrário: é bom o que é verdadeiro, mesmo um remédio amargo. Donde aprender, então, o que é verdadeiro? É o que vai nos ocupar em seguida.  
 
5. O mágico e o vendedor de abóboras
Entre os mágicos em geral e os magos em particular, e entre os que praticam rituais, parece haver algo em comum: a criação de algo que a razão comum não explica. Trata-se de um conjunto de técnicas intrigantes, uma tecnologia que ultrapassa nossa compreensão, como, por exemplo, a de retirar coelhos de uma cartola que estava vazia. A Bíblia judaico-cristã é severa para com a magia, essa estranha tecnologia, e exige muita pureza de intenção dos que praticam rituais. A razão é simples: a prática mágica seria uma tentativa de imitação da criação divina, um simulacro da ação criadora que só a Deus compete, pois pretende criar a partir do nada, só com a palavra ou com o gesto leve, sem esforço e sem trabalho, sem o preço do suor e do tempo. Só Deus cria assim, e imitar a criação do nada é enganoso e coisa do demônio. O mágico só cria um “falso”, como certas obras que podem se parecer fantasticamente com o original mas não são autênticas.
O mágico é também um ilusionista, e por isso ele diverte, se torna figura de entretenimento, de circo. Os mestres do Talmud<!--[if !supportFootnotes]-->[4]<!--[endif]--> fazem distinções sobre o grau de gravidade na prática da magia. Se o mágico cria falsas abóboras porque é um ilusionista e diverte o público, não há gravidade nisso. Pelo contrário, há leveza e cumplicidade. A gravidade está no experto que aproveita as falsas abóboras e as coloca no mercado para obter poder e riquezas vendendo abóboras ilusórias. O ilusionismo perde a graça e resvala para o engano com prejuízos aos outros. No mercado de obras de arte há quem pague bom preço por “falsos”, mas sabe que está comprando falsos. Mas pagar bom preço por um engano é sentir-se roubado pela corrupção de um mercado que promete felicidade e abandona à frustração.
O filósofo judeu Emmanuel Levinas, que comenta os mestres do Talmud, pergunta sobre a ética das tecnologias cada vez mais complexas e sofisticadas, e junta imediatamente a elas a ética do marketing, que nos envolve e assedia insistentemente com promessas de felicidade através da propaganda de produtos, esta “alma do negócio”. Negócio de ilusões? A serpente do jardim do Éden foi grande marqueteira: fez a Eva a publicidade de um fruto “de bom aspecto”, mas depois do primeiro bocado nem Eva e nem Adão foram os mesmos, e até hoje se discute se foi para bem ou para mal, porque eles ficaram sabendo o que não sabiam: que eram mortais.  A publicidade e a tecnologia vendida e consumida são boas ou más? O critério mais disponível para um bom juízo está nas conseqüências, nos frutos.  Por exemplo, quando alguns ganham muito sem esforço correspondente e outros os pagam e não colhem a realização das promessas correspondentes, temos um problema com abóboras ilusórias no mercado. A criação de necessidades de consumo, a cultura da compulsão ao consumo, a necessidade de “ir às compras” para ter um êxtase de felicidade, tudo isso leva à sensação de se estar preso a uma cultura saturada de “falso”: falsa tecnologia, falsos produtos, falsa publicidade. Onde aconteceu o desvio? Quando as coisas substituíram as pessoas, quando, mais especificamente, as relações com as coisas substituíram as relações com os outros.   É aqui, de novo, que a primeira vítima é a verdade.
Como a tecnologia se tornou não apenas um instrumento mas um ambiente que nos envolve de tal forma que não distinguimos mais real e virtual, também não reconhecemos com facilidade a verdade das coisas, dos fatos e das conseqüências. Desde os materiais sintéticos até a multimídia, estamos plenos de um mundo criado por nós mesmos e por nossos ou alheios interesses. Como saber a verdade a respeito de sua real natureza e de suas conseqüências em nossas vidas? Podemos ter a sensação de estar imersos numa realidade surreal na qual flutuamos. Há um personagem de Dostoievski, em Irmãos Karamazov, que começa a sentir vertigens e aproximação da loucura na solidão de seu quarto, entregue sem controle às suas imaginações cada vez mais intensas e nebulosas, num crescendo exasperante, até que alguém bate à porta e lhe grita o nome: “Aliocha!”. Esta intervenção de outro o redime, desanuvia seus fantasmas e o devolve à realidade. Os outros devolvem à realidade dura, objetiva, sem ilusões, de apelo ético.  

6 A verdade entre discípulos e mestres: profecia, ensinamento e fidelidade.
Podemos, a esta altura, introduzir o que há de mais real e mais sublime na verdade, na busca e na comunicação da verdade: a relação que nos é oferecida pelos outros, por quem nos chama pelo nome, nos puxa pela manga, nos exige um ouvido e uma palavra: a verdade se dá, se revela, no relacionamento, no diálogo, na presença do outro. A verdade é um dom que se troca na conversação e no exercício de comunicação verdadeira. Na Escritura judaico-cristã, a verdade tem um caráter profético e um caráter de ensinamento. Enquanto profecia, a verdade é uma experiência divina que o profeta sente como o rugido de um leão (Amós, 3,8), ou seja, o próprio profeta não tem controle sobre ela, precisa comunicar com tremor e urgência. Mas é uma verdade “extraordinária”, em tempos e em situações extremas. No cotidiano dos dias, a verdade é um ensinamento, está disponível na relação de aprendizado entre mestres e discípulos.
Depois das lições de pedagogia de Paulo Freire não se pode mais permitir que alguém pense que há uma classe privilegiada de mestres que seria possuidora da verdade e uma classe de discípulos que nada sabe e deve se submeter aos mestres. Todos tem alguma verdade e algum saber, todos podem ensinar algo, e todos são discípulos, todos aprendem uns dos outros, inclusive entre gerações. Aqui está um dos aspectos mais interessantes do Talmud e do ensinamento judaico: o Talmud é um livro composto por uma infinidade de diálogos de mestres que buscam a verdade. Todos são mestres e citam, para seus ensinamentos, a autoridade de seus próprios mestres, ou seja, todos sabem que são também discípulos – “o mestre tal levantou-se e falou em nome do mestre tal...”. Aliás, a posição inicial e básica de cada um não é de mestre, mas de discípulo que cita seu mestre: é como discípulo que se aprende e se exercita o caminho da verdade, é como discípulo que se aprende também a ser portador da verdade, mestre em nome de outro mestre, sem cair na tentação da arrogância de se achar dono da verdade, mas simples servidor daquilo que se recebeu como verdadeiro.
Um profeta ou um mestre solitário, isolado, é criticado pelos mestres do Talmud como um “traficante de mentiras”. Sozinho, um mestre confundiria a verdade com a sua imaginação, e o que ele comunicaria seria um produto da sua mente – uma “mentira”. Somente em uma comunidade de ensinamento, de discípulos e mestres ao mesmo tempo, amadurece uma verdadeira linguagem e se atinge um conteúdo substancial e provado de verdade. Talvez seja este o segredo do sucesso dos “simpósios” filosóficos, nos diálogos de Platão em torno de seu mestre Sócrates. Esta é também a raiz antropológica da existência de um magistério exercido em comunidade. E justamente em tempos de ciências, metodologicamente e culturalmente avessas a todo autoritarismo que confunde verdade com poder, há lugares comuns de autoridade e magistério em torno de alguma verdade científica que está em debate: uma famosa equipe de pesquisa, uma famosa revista científica, uma comunidade científica, uma importante universidade.     
Tente-se imaginar Jesus aos doze anos, conforme Lucas 2, 46: estava entretido com o círculo dos mestres em Jerusalém, aprendendo, interrogando e respondendo. Todo bom discípulo é aquele que entra no círculo dos mestres. Assim ele permaneceu até o fim: como testemunha da verdade, não somente pela palavra, mas pagando o preço de seu testemunho da verdade com sua própria vida. A credibilidade ou autoridade da verdade está na fidelidade que se mantém inclusive quando se sofre e, eventualmente, se morre, pela verdade. A palavra que os cristãos deram a este testemunho radical é martírio, palavra grega que significa justamente testemunho – com a própria vida, com a própria morte.
A palavra “fidelidade”, nas Escrituras judaico-cristãs, é praticamente um sinônimo de verdade. A fidelidade é a consistência, e finalmente a prova da verdade. É o que dura contra o que há de mais corrosivo para a verdade: o tempo e o contratempo. Fidelidade é permanência na verdade. E verdade é, depois de um tempo, só o que permanece na fidelidade. É que a verdade, como relação, é um laço de fé – fides -  não apenas um ato pontual de fé, mas um ato contínuo - fidelidade. Viver na verdade é viver da fé e da fidelidade. Como os bens transcendentais, também as virtudes fundamentais tem um fundo comum: a verdade, a liberdade, a fé, a esperança, o amor, tem raízes comuns e conexões comuns. Por isso “a verdade vos libertará” (Jo 8,32) assim como somente na liberdade é possível ser verdadeiro. Da mesma forma, é na fé, na esperança e no amor que a verdade se “verifica”, se torna veraz, operativa, libertadora. Enfim, porque a verdade se dá em relações, em comunidade, é o amor o caminho régio da verdade. Somente uma postura amorosa comunica bem a verdade, mesmo a mais crua e dura. Isso é eficaz nos círculos familiares e de amizade como na pedagogia e no jornalismo: somente no amor há comunicação adequada da verdade.

7. Todos tem direito à verdade, todos tem dever para com a verdade.
A verdade prospera onde há democracia e também a democracia prospera onde há verdade, a partir da informação. Assim se compreende porque a imprensa tem crescido em importância em nossas sociedades. Contra uma imprensa submetida à censura de poderes totalitários e ideológicos, a liberdade de imprensa é vital para a democracia. A liberdade de circulação de informações garante o direito de todos à informação e também o cumprimento do dever de todos de buscar, de saber e de dizer a verdade. A constatação de perseguição, inclusive com mortes, de jornalistas em meio a conflitos ao redor do mundo, reforça a necessidade de saber a verdade e de zelar por ela porque com a verdade estão em jogo os bens maiores da democracia, que são a justiça e a paz. Mais uma vez, há equivalências aqui: a verdade e a justiça. Trabalhar com amor pela verdade é trabalhar para que aconteçam a justiça e a paz. Há algo de messiânico nisso, como canta o salmo: “Amor e Verdade se encontram, Justiça e Paz se abraçam; da terra germinará a Verdade, e a Justiça se inclinará do céu!” (Sl 85, 11-12).
No entanto, para que a verdade e a inocência não sejam vítimas de precipitações, nossos códigos de direito prevêem investigações que devam ocorrer “sob segredo de justiça”. Em termos sociais, a presunção de inocência de todo cidadão até que não se prove o contrário é vital inclusive para a democracia. Por isso as suspeitas e os inquéritos devem seguir um caminho de discrição sem confundir indícios com verdade. Os danos morais por juízos precipitados podem afetar tanto réus como vítimas e todos os seus entornos, transformando inocentes em vítimas expiatórias. O complicador é que a transformação de um réu em vítima expiatória impede a objetividade de sua verdade e leva à convicção em torno de uma verdade adulterada difícil de desmascarar, a do funcionamento da vítima expiatória como descarga das frustrações mais gerais de uma sociedade. A tarefa de quem passa informações e comenta os fatos com suas interpretações se torna, neste ponto, uma tremenda responsabilidade ética: até onde, e como, sem omissão mas sem distorção, se deve passar as informações que comovem uma sociedade inteira? Um critério de verificação de uma boa informação é o bem comum, novamente a justiça e a paz social. E um critério operativo, é o trabalho de informação em equipe.
Já em termos pessoais, o “segredo” a respeito da verdade é ainda mais delicado. Cada pessoa é um abismo, um mistério que nem ela mesma abarca inteiramente, como uma aventura a ser percorrida para se compreender melhor. O respeito aos seus segredos, às suas dores e à sua história, aos seus processos de libertação e de revelação sem coação, o direito a não sofrer nenhum tipo de tortura para dar informações e, mais ainda, para se revelar, é um teste muito grande à democracia e à justiça. O nosso mundo, globalizado com o imperialismo de sistemas de controle e ao mesmo tempo com o surgimento do terrorismo globalizado que se rebela, está criando tensões crescentes em torno do “biopoder” e da tecnologia cada vez mais sofisticada em torno do controle de indivíduos. Novamente, a imprensa pode estar de um lado ou de outro, e tem uma responsabilidade crescente do ponto de vista ético. E também aqui se aplicam os mesmos critérios de verificação: os bens de justiça e paz, incluindo no bem comum o bem de cada cidadão e de cada pessoa em seu inalcançável e inefável mistério.     

Em conclusão, a verdade transcendente e universal, é um horizonte último de uma realidade histórica de caminhos de investigação, de provação, de fidelidade, de testemunho. Os filósofos posmodernos preferem dizer que as interpretações são um caminho plural e sem fim. Umberto Eco, comentando seu romance de sabor nominalista O nome da rosa, lembra que boa atitude é sorrir da busca insana da verdade e aceitar a precariedade de nossas pequenas verdades. No entanto, há muita vida em jogo quando se busca a verdade, e ela não é apenas um jogo intelectual, mas uma busca ética, de justiça e de paz. Por isso, parafraseando o profeta Isaias, como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a felicidade, que traz boas notícias e anuncia libertação (Is 52,7), mesmo na precariedade e na parcialidade de suas possibilidades. Pois a verdade é um dom irrecusável que dá sustento à liberdade, é uma busca comum, uma peregrinação e uma aventura percorrida em comum. Em termos bíblicos, a verdade é tecida nas relações humanas, é saboreada na palavra das testemunhas, em palavras e atos. Assim, as testemunhas são reconhecidas e veneradas como mestres, como profetas e também como mártires. Foi o caso de Jesus.  Em última análise, o que é verdadeiro, bom, amoroso, justo, belo, pacífico, comunicável, transparente, livre, provém de uma experiência que une o humano e o divino. Ensaiando uma resposta a Pilatos – que é a verdade? - tomamos a liberdade de cantar parafraseando Paulo na primeira carta aos coríntios:
A verdade é paciente,
A verdade é prestativa,
Não é invejosa, não se ostenta,
Não se incha de orgulho,
Nada diz de inconveniente,
Não procura seu próprio interesse,
Não se irrita, não guarda rancor,
Não se alegra com a injustiça,
Mas se regozija sendo verdade,
Tudo desculpa, tudo crê,
Tudo espera, tudo suporta,
Porque é a verdade. (Cf. 1Cor, 13, 4-7)



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<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]--> Capuchinho, natural de Caxias do Sul-RS, nascido em 1949, com formação em licenciatura em filosofia e doutorado em teologia,atualmente professor de teologia sistemática na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. É membro do Comitê Editorial da Revista Internacional de Teologia Concilium e Secretário Geral do fórum Mundial de Teologia e Libertação.
<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]--> Atribui-se a Freud a afirmação de que, caso o paciente não fale com palavras, fala com os dedos.
<!--[if !supportFootnotes]-->[3]<!--[endif]--> SANTOS Jair Ferreira dos, O que é o pos moderno. Coleção Prime iros Passos, 165. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986.
<!--[if !supportFootnotes]-->[4]<!--[endif]--> O Talmud é a reunião dos comentários rabínicos à Escritura, livro de grande importância na tradição judaica pós-bíblica.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Uma façanha prometéica...




Conta a lenda que Prometeu conseguiu
roubar o fogo do Olimpo para entregá-lo aos mortais.
Dominando o fogo, os homens tornar-se-iam possuidores de uma
prerrogativa divina, o governo da natureza.

A história nos ensina que alguns escultores como Fídias, Policleto e outros, 
procuravam somente mudar os acidentes, volume e  forma do mineral que
iria compor suas esculturas (mármore), pois sabiam que não poderiam modificá-lo substancialmente.
Tinham compreensão que agindo desta maneira conseguiam acondicionar e 
humanizar a natureza, fazendo dela, uma obra de arte.
Da mesma forma, cada qual de nós dentro de nossas possibilidades, buscamos amoldar a natureza que está a nossa volta, em busca de tornar o 
ambiente externo, aprazível e útil.
Isto nos trouxe facilidades e conforto,  más, também, ilusão e dor .
Ilusão e dor, porque nos distanciamos da natureza interna e confundimos com o passar do tempo, realidade, com o que nos parecia real.
Pensamos que mudar a natureza, seria apenas agir sobre os elementos da mesma, e na verdade o que se preconizava da lenda de Prometeu era o governo da natureza interna de cada um.
Somos possuidores da prerrogativa divina de volição sim, mas ainda não conseguimos transformar o caos interior em cosmos, e esta, com certeza, não é uma simples façanha.
Creio ser agora o momento mais que oportuno, para alterarmos o rumo desta grande massa que se mostra crítica, e assim  trazer novas posturas espirituais, políticas e sociais.
Quando vejo as atividades da FTU- Faculdade de Teologia Umbandista, sinto-me imensamente feliz por que a nossa tão vilipendiada religião Afro-brasileira, vem ressurgindo forte, fazendo com que  teoria floresça em prática e assim vamos construindo um novo homem.
O mundo espera estes novos tempos a milhares de anos e somos responsáveis em concretizá-lo para nós mesmos e as civilizações futuras.
Afinal já estamos cansados de ver, cenários diferentes com os mesmos artistas a contracenarem, ora drama, ora comédia.
Estamos cansados de ver, supostos dirigentes espirituais a querer criar kits de doutrina, títulos, cartilhas de condutas e usar de palavras de efeito, com o intuito apenas de sugestionar mentes, levando-as por caminhos que eles próprios nunca trilharam.
Precisamos de  mãos que façam e não somente de bocas que falem.
Precisamos de dirigentes que ofereçam respostas condizentes com a lógica dos dias atuais ou seja, a volta do ser espiritual a unidade.
Nesta época que antecede as eleições, precisamos de políticos que saibam que estão comprometidos com a verdade, com a ética, com a interdependência de  todos os seres, e definitivamente façam-se ferramentas dos desejos da população mais carente.
Enfim a nossa natureza é com certeza sagrada, e devemos prestar atenção à ela com o devido respeito, pois a todos foi dado o direito de iluminação, e assim deveríamos caminhar...

Ygbere
Discípulo de Mestre Arhapiagha - Pai Rivas