segunda-feira, 30 de abril de 2012

Mito e razão: “a porta para o logos”




Contribuições clássicas
O histórico da busca de uma realidade inteligível, “a porta para o logos”, é envolvida pelo mito. Desde o século VI a.C., os gregos da Jônia estavam a procura de uma substância primária, de um material básico do qual, segundo argumentavam, todas as coisas haviam se desenvolvido. Três homens, todos de Mileto e todos astrônomos e matemáticos, tinham suas teorias a esse respeito. Tales opinava que o material básico era um liquido claro; Anaxímenes pensava que era um gás incolor e Anaxímandro julgava que fosse alguma substância indeterminada, ilimitada e imperecível. Ao mesmo tempo, outro grupo de homens jônicos fazia especulações sobre a natureza da própria vida. Procuravam, estes grandes pensadores, um princípio único e unificador que explicasse porque as coisas são que
 o são (4).
Um desses homens era Heráclito, que vivia em Éfeso. Heráclito acreditava que a condição essencial da própria vida era o “fluxo”, isto é, o fato de que nada era absoluto e tudo mudava. Pitágoras, que nasceu em Samos, mas residiu a maior parte de sua vida na colônia grega de Crotona, Itália, acreditava que o universo era ordenado por um sistema harmonioso de números. Desses conceitos nasceu o Teorema de Pitágoras.
O terceiro desses primitivos filósofos foi Xenófanes, que, forçado a sair de sua terra na Jônia por uma invasão persa, estabeleceu-se em Eléia, na Itália. Xenófanes fundou uma escola filosófica, onde ensinava que o universo era ordenado por um ser único, supremo e divino, que agia exclusivamente por meio do pensamento (5).
Embora esses primeiros cientistas e filósofos dessem a maior importância ao seu trabalho e não hesitassem em rejeitar os velhos mitos sobre os deuses, se os mesmos estivessem em desacordo com suas teorias, ainda acreditavam em alguma direção divina do mundo. Se tivessem que desacreditar no velho mito criariam um novo para lhe tomar o lugar. Não se pode denominar esses métodos de científicos. Trabalhando no próprio alvorecer da Ciência, agiam principalmente por meios de rasgos de intuição e de inspiradas conjecturas. Não obstante, alguma das suas conclusões são espantosas. Anaxímandro, por exemplo, afirmou que o mundo era apenas uma série interminável de mundos; Xenófanes declarou que o homem tinha saído originalmente do mar e apresentou fósseis como prova. Xenófanes, foi, desse modo, um precursor da moderna afirmação científica sobre o assunto (6).
Entre os gregos, a procura do conhecimento científico dava tanto prazer como a apreciação das artes. Não faziam distinção entre o amor da beleza e o amor da verdade. A ideia de beleza é densa (Kalos, Kaloi) = Belo – Bem – Verdadeiro, supõe a busca contínua pela perfeição. O mito fornece a tônica das relações entre deuses e homens e do entendimento da harmonia das formas, a busca determinante pelo equilíbrio. Essa busca está presente, principalmente entre os séculos V e IV a.C. na construção dos templos, no teatro, na poesia, nas artes de modo geral. Esse sentido reflete a obrigação do homem de tirar o máximo proveito de seus dons naturais: “tudo o que valia a pena fazer, devia ser bem feito” (7) e, assim, até mesmo os vasos mais simples têm um notável toque de distinção. Até objetos utilitários, como moedas, são pequenas obras-primas em relevo em ouro e prata. Nesse contexto, visão científica ou filosófica, relações diretas (uma ponte) entre Arte e Vida estavam em conexão.
Na escultura, esse sentido de fina execução era inspirado e reforçado por algo mais sublime. A escultura grega tinha de ser digna dos deuses e estar inserida nas proposições mitológicas. Deveria também ser vista nos lugares, públicos sobretudo nos templos. Era preciso que tivesse nobreza e dignidade, sem contudo distanciar-se das coisas do cotidiano; acreditava-se que os deuses estavam, com frequência, intervindo nas mesmas. Tudo isso explica porque a Arte Grega, em seu maior brilho, evitava efeitos violentos e grosseiros. Ao contrário, mostra os homens em pleno vigor de seus corpos ágeis e musculosos, e mulheres envoltas nas ondulantes roupagens dos seus mais finos vestidos.
Os gregos, povo despido de inibições ao falar de si mesmo, sentiam prazer nas palavras. Possuíam à sua disposição uma língua sutil, expressiva e adaptável, da qual faziam pleno uso. Como se deu com muitos outros povos, além da profusão de personagem mitológicos, a poesia chegaria a ser quase “uma segunda religião”. Havia na sua criação, todo o cuidado e penetração que se aplicavam as artes visuais. Os poetas eram muito prezados – um poeta, para o filósofo Sócrates, era uma “coisa luminosa, alada e sagrada” (8). Escreviam sobre toda espécie de temas: agricultura, costumes locais, mitologia. Um homem, qualquer homem, quando tinha algo importante para dizer, quase sempre se expressava em verso – cantando ou declamando – nos primeiros tempos, com o acompanhamento de música.
A poesia era a reação imediata dos gregos a um amplo campo de buscas e experiências. Como reflexo dessa variedade, criaram ou aperfeiçoaram formas poéticas conhecidas até hoje. É possível que tenham começado com a epopéia heróica, que é a narração, em versos, de acontecimentos empolgantes, trágicos, povoados de heróis, deuses e mortais comuns. Continuaram com uma poesia mais pessoal e sentimental, cantada ao som da lira e que é, por isso, chamada lírica. No seu apogeu os gregos inventaram a Tragédia e a Comédia: a primeira tratava obscuras e difíceis relações entre os deuses e os homens, e a segunda apresentava, em linguagem picante e burlesca, toda sorte de fraqueza humana.
O apogeu dessa tradição criadora, alimentada pela Mitologia, foi atingido na última parte do século VIII a. C., na pessoa de Homero. Pouco se sabe de Homero. Julga-se que viveu em Esmirna ou na Ilha Quios. Suas obras-primas marcam o amanhecer da literatura européia. As epopéias anteriores deram a Homero um material narrativo e uma forma métrica que posteriormente se tornou o metro da poesia épica grega, o hexâmetro dactílico (9).
Porém, os poemas homéricos são muito mais que magnífica poesia. A Ilíada e a Odisséia tornaram-se os livros fundamentais da cultura grega e Homero foi considerado posteriormente pelos gregos um dos fundadores de sua história, filosofia, drama, poesia e ciência. Os seus temas foram uma fonte inesgotável de inspiração para artistas e oradores gregos. Hoje, ele constitui documento fascinante de informações sobre o mundo grego, como era no seu tempo e o mundo como ele pensava que fora nos tempos micênicos.
Embora tivesse aproveitado os mitos que lhe haviam chegado através dos séculos, Homero acrescentou muito do que era propriamente seu. Tomou as histórias primitivas de monstros canibais e riscos desesperados e animou-as com uma generosa e delicada ou rica visão da vida. Entre as antigas narrativas existe uma homem errante que é arremessado à costa pelo mar, sendo salvo por uma princesa com quem se casa. Ulisses, o homem errante de Homero, é salvo por uma encantadora princesa, Nausica, mas não se casa com ela. Ulisses tem uma esposa na pátria e, desse modo, em vez de casamento, desenvolve-se uma comovente amizade entre o acossado marinheiro e a jovem princesa.
Os seus ouvintes, provavelmente, não queriam se não histórias de heroísmo. Mas Homero lhes dava uma visão completa do mundo, de deuses nas suas tarefas determinadas, de homens e mulheres em marcha para os seus destinos, de todas as atitudes da vingança sinistra à farsa hilariante, de palácios e jardins, de ilhas remotas e praias rochosas. Por trás de todas as referências mitológicas, a sua imaginação está em ação, procurando ver os seres humanos como realmente são, compreendendo por que fazem o que fazem; retratando-os com profundeza mesmo quando são maus com calor e afeição (10).
Portanto, para Homero o mito franqueava inteligibilidade, conhecimentos: era “porta para o logos”.
Os mitos continuam sendo “a porta para o logos”?
E “os mitos contemporâneos” como atuam?
Hoje, observa-se que a retomada de Homero vem acompanhada de registros que, cada vez mais, estão sendo comprovados. É notório que Homero usa exemplos míticos para todas a situações imagináveis da vida em que o homem pode estar na presença de outro, para aconselhar, advertir, admoestar. Tais exemplos não se encontram de ordinário, na narração, mas sim nos discursos dos personagens épicos. O mito serve sempre de instância normativa para a qual apela o orador. Não tem caráter meramente fictício, dá margem a fantasia criadora, à sensibilidade estética. Há no seu âmago uma validade universal (11).
Atualmente, a pesquisa científica das diversas áreas continua reexaminando não apenas os épicos de Homero, porém o grande acervo clássico como um todo. Ao lado do saber proporcionado pelos cientistas, filósofos, dramaturgos e a beleza das obras-primas, tem-se como certo de que as citações épicas vão além do mito. Dados e novas descobertas que se somam, vão tirando personagens do anonimato, ou confirmando lugares de suas presenças. Tem-se, por exemplo, mais de vinte mil personagens com registros em fragmentos de cerâmicas (ostraka). Ao lado de figura ilustres como Péricles, Aristídes, surgem novas, com freqüência (12).
Essas sinalizações motivam contínuas retomadas das questões inseridas na força de mitos primordiais que traçaram a fisionomia de homens e povos. Pensadores contemporâneos, correntes psicanalíticas, estudiosos da astrofísica, momentos artísticos diversos não se furtam a esse acervo. Entre os séculos XVIII e XIX, ingleses e franceses, depois de saques, aumentam as coleções de seus museus “com deuses e deusas”. Esses inspiraram reformulações urbanísticas e obras artísticas. Pensadores como Goethe e Hegel aprofundaram suas ideias através desse referencial. Já no século XX, Freud vasculha a emergência do mito, incluindo a sua força simbólica.
Dessa forma, pode-se indagar: a passagem de uma consciência mítica para o logos continua envolvendo a todos? Onde começa a diversidade entre os homens? Onde terminam as questões de identidade? O que há de comum e de diverso entre gregos e romanos; entre orientais e ocidentais; latinos e saxões, ou entre latinos americanos do sul e do norte? Por que, no encontro de culturas diversas, uma absorve a outra, impondo-se como única de ser, agir, ou de entender estilos e a própria visão do mundo ou do cosmo? Nos campos da Ciência e da Arte, o acervo primordial ainda faz sentido como referencial?
As questões podem continuar a serem levantadas: o mundo que se informatiza gesta novos mitos? O mundo vitrini e a realidade virtual criam novos personagens? As pesquisas bio-tecnológicas, clonagem, a robótica não estão criando “novos heróis, deuses e semi-deuses”? Décadas atrás, a pop art referia-se aos novos mitos que emergiam da sociedade de eletrodomésticos e da publicidade como os “novos barroquismos urbanos” (13). Tendências pós-modernas assinalam a presença do mito clássico, como “saudade do lar distante” ou de antigos lugares do mediterrâneo. Naturalmente, os mitos assumem novas configurações e sentidos. No contexto atual, quais aspectos podem ser assinalados? Quais as possibilidades emergentes de conectá-los com Arte e Ciência?

Notas:
1. JENCKS, Charles. Post-modernism – the new classiscism in art and architeture.London Academy, 1987, p. 33 e seguintes
2. CRIPPA, Adolpho. Mito e Cultura. São Paulo, Convívio, 1975, p. 15 e seguintes
3. JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo, Martins Fontes, 1979, p. 179 e seguintes
4. PESSANHA, José Américo Mota (cons.). Os pré-socráticos vida e obra (Col. Os Pensadores), São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 14.
5. Idem, p. 23 e seguintes.
6. Ibidem, p. 25 e seguintes.
7. BAYER, Raymond. Historia de la estetica, México, Fondo de Cultura, 1965, p. 222 e seguintes.
8. PESSANHA, José Américo Mota. In: Sócrates (Coleção Pensadores) São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 10 e seguintes.
9. JAEGER, Werner. Op. cit., p. 34 e seguintes.
10. Idem, p. 62 e seguintes.
11. CAMPBELL, Joseph (org.) Mitos, sonhos e religião – nas artes, na filosofia e na vida contemporânea. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001, p. 139 e seguintes.
12. BOWRA, Maurice. Grécia Clássica, Rio de Janeiro, José Olympio, 1969, p. 11 e seguintes.
13. ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p 265 e seguintes.
Bibliografia:
CAILLOIS, Roger. O Mito e o Homem, Lisboa, Edição 70, 1979.
CRIPPA, Adolpho. Mito e Cultura, São Paulo, Convívio, 1975.
DORFLES,Gillo. Novos Ritos, novos mitos, Lisboa, Edições 70, 1965.
CAMPBELL, Joseph. com BILL MOYERS; FLOWES (BETTYSVE org.) O poder do mito, São Paulo. Palas Athenas, 1996.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado, Lisboa, Edições 70, 1979.
JENCKS, Charles. Post-modernism – the new classiscism in art and architeture.London Academy, 1987.
CRIPPA, Adolpho. Mito e Cultura. São Paulo, Convívio, 1975.
JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo, Martins Fontes, 1979.
PESSANHA, José Américo Mota (consultoria). Os pré-socráticos vida e obra (Coleção Os Pensadores), São Paulo, Nova Cultural, 1996.
BAYER, Raymond. Historia de la estetica, México, Fondo de Cultura, 1965.
PESSANHA, José Américo Mota. In: Sócrates (Coleção Pensadores) São Paulo, Nova Cultural, 1996.
CAMPBELL, Joseph (org.) Mitos, sonhos e religião – nas artes, na filosofia e na vida contemporânea. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001.
BOWRA, Maurice. Grécia Clássica, Rio de Janeiro, José Olympio, 1969.
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1998.
WILSON, Simon. Arte pop, Barceolona: Labor, 1995.
Lealcy B. Junior