A Mitologia de um Antropólogo
Entrevista de Victor Aiello Tsu com Clifford Geertz
originalmente publicado na Folha de São Paulo de 18 de fevereiro de 2001
O aumento na quantidade de comunicações e a maior integração entre os
seres humanos não necessariamente tornou a vida mais fácil. Para o antropólogo
norte-americano Clifford Geertz, 74, um dos principais deveres dos antropólogos
(e do cientista social de maneira geral) neste início de século é tentar fazer
com que as diversas sociedades (que são cada vez mais complexas e envolvem cada
vez mais pessoas) sejam capazes de atingir algum entendimento entre si. Essa é
uma das mais relevantes lições do autor de "Nova Luz sobre a Antropologia",
livro que está sendo lançado no Brasil nesta semana pela editora Jorge Zahar e
reúne desde ensaios críticos à antropologia contemporânea até reflexões
autobiográficas.
Com 18 livros publicados, Clifford Geertz é, depois de Claude
Lévi-Strauss, provavelmente o antropólogo cujas idéias causaram maior impacto
após a segunda metade do século 20, não apenas para a própria teoria e prática
antropológicas, mas também fora de sua área, em disciplinas como a psicologia,
a história e a teoria literária. Ele é considerado o fundador de
uma das vertentes da antropologia contemporânea a chamada antropologia
hermenêutica ou interpretativa. Para o autor (que se graduou em filosofia e
inglês antes de decidir ser antropólogo) este volume é uma oportunidade de, no
fim de sua carreira, "montar sua própria lenda antes que outros o
façam". Clifford Geertz obteve seu PhD em antropologia em 1956 e desde
então conduziu extensas pesquisas de campo que deram origem a livros escritos
essencialmente sob a forma de ensaio. Suas pesquisas ocorreram na Indonésia e no
Marrocos. Foi o descontentamento com a metodologia antropológica disponível à
época de seu estudo, que lhe parecia excessivamente abstrata e de certa forma
distanciada da realidade que encontrou em campo, que o levou a elaborar um
método novo de análise das
informações obtidas entre as sociedades que estudava. Seu primeiro
estudo tinha por objetivo entender a religião em Java. No final, foi incapaz de
se restringir a apenas um aspecto daquela sociedade _que ele achava que não
poderia ser extirpado e analisado separadamente do resto, desconsiderando,
entre outras coisas, a própria passagem do tempo. Foi assim que ele chegou ao
que depois foi apelidado de antropologia hermenêutica.
Essa vertente, crucial para o desenvolvimento da contemporânea _e às
vezes chamada pós-moderna antropologia de matriz norte-americana, é um estudo
que pretende entender "quem as pessoas de determinada formação cultural
acham que são, o que elas fazem e por que razões elas crêem que fazem o que
fazem". Uma das metáforas preferidas para definir o que faz a antropologia
interpretativa é a da leitura das sociedades como textos ou como análogas a
textos. A interpretação se dá em todos os momentos do estudo, da leitura do
"texto" cheio de significados que é a sociedade à escritura do
texto/ensaio do antropólogo, interpretado por sua vez por aqueles que não
passaram pelas experiências do autor do texto escrito.
Na entrevista a seguir, Geertz fala do panorama da antropologia atual,
daquilo que ele vê como o dever do antropólogo tanto hoje quanto no futuro, dos
limites da interpretação e de como a onda de globalização estaria afetando as
diversas culturas.
O que o sr. acha que o futuro reserva aos antropólogos? Na introdução de
seu livro, o sr. diz que está cada vez mais difícil sobreviver à base de
antropologia, as coisas não são mais como eram. Qual é o campo de trabalho da
antropologia?
Bem, não é bem que não dá para sobreviver com a antropologia, acho que
os antropólogos estão sobrevivendo bem, mas está ficando mais difícil porque
tudo está ficando mais complicado. Nós lidamos com uma gama maior de
sociedades, não apenas as chamadas sociedades simples. Lidamos com sociedades
grandes, como a Índia, o Brasil, o que torna as coisas mais complexas do que
quando nós ficávamos restritos a apenas povos tribais.
Em segundo lugar, o mundo é agora muito mais integrado e desenvolvido,
logo tudo é conectado a tudo o mais de forma bastante complicada. Além disso,
há muito mais pessoas trabalhando nessas áreas, em que antes costumávamos
trabalhar sozinhos. Ninguém mais estava muito interessado nos povos que
estudávamos, mas hoje todos estão. Isso faz com que a antropologia seja muito
mais do que a soma das coisas, em um sentido, mas muito mais difícil de buscar
realizar, em outro. Mas qual seria o dever dos antropólogos?
Não creio que possamos fazer muito mais do que seguir do jeito que
estamos e continuar a pensar no que estamos fazendo e qual a nossa contribuição
particular_o tipo de contribuição que a antropologia pode de fato dar eficazmente.
A antropologia não pode mais ser uma ciência completamente geral, que estuda
tudo, que diz estudar o "Homem". Ela tem que perceber qual é, em um
lugar como a Índia, ou a Indonésia, ou o Marrocos, ou o Brasil,
o seu papel particular em interpretar o que ocorre _isso ao lado de
outras disciplinas, como economia, política, história, literatura. Tudo isso
deve ser levado em consideração, e a antropologia deve encontrar seu lugar e
sua contribuição em meio a esses outros campos.
Como o sr. se envolveu com a antropologia?
Eu fiz faculdade depois da guerra, depois da Segunda Guerra Mundial, e
estudei inglês e filosofia por uns tempos. E então, quando decidi fazer a
pós-graduação, um de meus professores sugeriu que eu poderia me interessar por
antropologia, em particular a que estava então sendo ensinada em Harvard,
porque em Harvard estava sendo ensinada como parte de um departamento
multidisciplinar, chamado relações sociais. Nesse departamento,
estavam reunidas as disciplinas de antropologia, sociologia, psicologia
social e psicologia.
Então eu fiz isso e foi assim que entrei para a antropologia.
O sr. acredita que a antropologia cultural, a chamada antropologia
hermenêutica, pode ser considerada uma ciência?
Claude Lévi-Strauss diria que o tipo de antropologia praticada pelo sr.
não é antropologia, e sim etnografia.
Devo dizer que não sou da mesma categoria que Claude, mas não acho essa
questão particularmente importante. Não me importa se ele a chama de ciência ou
não, eu mesmo acredito que seja, mas isso depende do que significa
"ciência". Lévi-Strauss certamente está certo ao dizer que a
antropologia cultural não segue o mesmo modelo que as ciências naturais, mas eu
acredito que seja empírica, sistemática, tente desenvolver argumentos que possam
ser ao menos confrontados com provas. Ela vai atrás de um objetivo mais ou
menos específico... Por isso não vejo motivo para não chamá-la de ciência, mas
concordo que não como a física ou a química etc. Porém não vejo por que
compará-la à física. Eu mesmo não acho que a questão de como chamá-la seja tão
importante. Então, para ela ser vista como ciência, não é necessário que a
chamemos de ciência. Suponho que não. É, não precisa. Eu costumo fazê-lo, bem,
por questões políticas.
Parafraseando Max Weber, a antropologia, tanto em campo quanto na academia,
é uma vocação?
Com certeza é uma vocação para mim, tem sido assim nos últimos 50 anos.
Espero que continue a ser, sim, é um compromisso, é mais do que um simples
trabalho ou um lugar para se receber um salário. Eu tento, suponho, melhorar as
comunicações entre as pessoas, a compreensão entre as pessoas. Portanto
acredito que seja uma vocação. Nem todos na antropologia estão comprometidos
com ela como se fosse uma vocação, mas os melhores
estão. Quais são os limites da interpretação? Se a cultura é um texto
_ou análoga a um texto, e o antropólogo escreve um texto, e o leitor lê
o texto e o interpreta também e isso vai em frente... Quais são os
limites?
Bem, não sei, acho que você pára de interpretar quando não tem mais o
que dizer. Por exemplo, eu vou e escrevo sobre Bali ou Java, talvez você leia,
pense sobre o que significa no contexto daquilo que você está fazendo. E, após
um tempo, não há muito mais a ser dito, quer dizer, nada muito mais
interessante aparece, você pega o que pode e então segue em frente. Acho que a
corrente de texto depois de um tempo se entrega, porque tudo o que
sabemos de importante ou interessante já foi dito, ao menos naquela
linha em particular, não como um todo, mas nessa linha, sim. Então as coisas
são abordadas de modo diferente, e vai-se em frente com isso. Não creio que
haja um ponto final óbvio que diga exatamente onde é o fim da interpretação,
mas, depois de um tempo, depois de 4.000 discussões acerca da briga de galos,
quem sabe baste.
Mas é interessante, porque um estudante de antropologia brasileiro,
lendo o ensaio sobre a briga de galos balinesa, terá uma visão completamente
diferente da de um estudante de antropologia balinês, que terá uma visão
diferente da do sr. quando escreveu o ensaio. Cada um está fazendo a sua
própria interpretação. Bem, mas a decisão é pessoal. Uma coisa interessante a
fazer seria confrontar as leituras balinesas do texto com as brasileiras.
Poderia nos ser útil, na verdade não faço idéia, depende do que sairia
disso. Mas costumo adotar uma visão a posteriori das coisas. Deve-se tentar
primeiro e depois ver se vale a pena. Não podemos prever o que será útil e o
que não o será.
Como se pode escapar do niilismo na interpretação?
Eu não vejo qual é o papel do niilismo. Se você fosse niilista, nem
começaria a interpretar.
Não tentaria ao menos começar a entender os outros. Acho que há uma
diferença entre o niilismo e uma simples ausência de certeza. É verdade que
quase todas as interpretações antropológicas tenham por fim um resíduo de
incerteza, de vagueza, indeterminação, contingência. Mas isso não é niilismo,
isso é o modo como o mundo é. Se você for realmente um niilista, não se importará
com nada, não tentará buscar compreender nada, não interpretará nada. Não
escreveria _ao menos eu não vejo razão para que escrevesse_
um longo livro sobre coisa nenhuma.
Seu novo livro tem um capítulo intitulado "Anti
Anti-Relativismo". Diante das duas atitudes dominantes na antropologia
_defesa de um relativismo quase absoluto e defesa de uma moral ou
"natureza humana anterior a qualquer análise antropológica", onde
exatamente o sr. se situa?
Como eu disse, sou um anti anti-relativista, mas acredito que essa
posição seja mais comum aqui nos Estados Unidos do que imagino que seja no
Brasil, embora eu não tenha certeza.
Aqui nos EUA faz parte do movimento neoconservador puxar a carta do
relativismo contra, bem, essencialmente contra a esquerda, contra liberais etc.
O que dizem é que, a menos que você se agarre a certas verdades absolutas, de
certo tipo, você não pode acreditar em nada, não pode fazer nada, agir etc., e
eu obviamente me oponho a essa visão. Acho que é possível agir sob a incerteza,
é possível agir sob o indeterminável, porque este é o modo
como todos nós vivemos.
Qual é a sua perspectiva quanto aos rumos atuais da globalização, essa
moda de
globalização que está tomando conta do mundo? Como isso afeta as
culturas?
Nos últimos capítulos do meu livro eu falo sobre o que é o padrão, ao
menos o que acredito que seja um padrão. Ao mesmo tempo em que há muita comunicação
e integração em nível
mundial e uma ordem neoliberal geral, simultaneamente ocorre uma reação
contra isso, que busca aumentar auto-expressões culturais. Acho que devemos
usar esse paradoxo para entender exatamente o que acontece. Não me parece que
nem a idéia de o mundo inteiro estar meio que subsumido em uma única hegemonia
nem a noção de "cada um é seu próprio eu" se imporão. Não sei bem o
que dizer sobre a globalização como processo, a globalização é um fato, está
ocorrendo, o gado atravessa o mundo, há muita comunicação
etc., mas não acho que isso ocorra sem paralelos, sem outros movimentos
em direções opostas.
Então o sr. não concorda que a globalização seja um movimento
avassalador de culturas "menores"?
Não, na verdade, não concordo. Bem, não sei como tudo isso terminará
quem é que sabe isso? Mas o que eu sinto é que essas culturas são realmente
fortes e, em certo grau, são estimuladas pela própria globalização a se
tornarem ainda mais fortes. Não creio que elas serão esmagadas, embora muita
gente ache que sim.
O sr. tem uma visão otimista do futuro...
Não diria que é uma visão otimista, mas que ao menos esse tipo de pessimismo
não é omeu. Tenho meu próprio tipo de pessimismo, que não é esse.
E qual é o seu tipo de pessimismo?
Eu não tenho, estava brincando. Eu não acho que o mundo esteja prestes a
se tornar, por completo, um tipo de hegemonia neoliberal baseada nos Estados
Unidos. Há certamente pessoas que querem isso e alguns cientistas em alguns
lugares que dizem que isso acontecerá, mas creio que há vários motivos para
questionar isso. Não acredito que o neoliberalismo vá subjugar todo o mundo.
Bem, temos que ver, temos que esperar a história e ver.
Existe algum episódio de seu trabalho de campo que o sr. recorde como
particularmente interessante?
Fiz muito trabalho de campo e sempre me diverti muito com ele. O
primeiro de todos, ir por dois anos e meio a Java, foi bem excitante. Depois
fui para Bali por um ano e depois para o Marrocos por vários anos. E então
estive de volta a Java, a Bali, ao Marrocos... O trabalho de campo foi
seguramente um dos pontos altos da minha vida.
Gostaria que o sr. contasse um caso específico, uma história
anedótica...
Escrevi sobre praticamente todos os eventos anedóticos que me
aconteceram, é difícil me lembrar de algum específico agora. O trabalho, depois
de feito, quando olhamos para ele, é semi-autobiográfico, ao menos em parte. E
no meu trabalho eu já contei uma série de histórias, coisas que me aconteceram:
ter sido surpreendido em plena guerra civil na Sumatra, ter-me envolvido com
certas pessoas no Marrocos...
Até que ponto a sociedade a que se pertence e aquela na qual se faz o
trabalho de campo influem no trabalho dos antropólogos?
Não há dúvida quanto a isso, todos nós somos, como se diz hoje,
"observadores situados".
A única coisa que se pode fazer a respeito é ter a maior consciência
possível desse fato e pensar nisso, não assumir que o modo como vemos as coisas
é o modo como as coisas simplesmente são, mas entender. Sim, obviamente, um
antropólogo norte-americano ou um brasileiro ou um francês verão as coisas de
uma maneira algo diferente, e uma das razões é o contexto cultural do qual eles
vêm, do qual extraem suas percepções e seus princípios.
Não há nada de errado nisso, é inevitável, o erro ocorre quando as
pessoas não se conscientizam disso e simplesmente assumem que qualquer sensação
que têm não precisa ser confrontada com a realidade. Claro, não há nada
semelhante a um observador totalmente neutro e abstrato. Isso não é tão fatal
quanto pode soar, só significa que é preciso pensar sobre de onde as pessoas
vêm, onde elas estão trabalhando etc.
E o que o sr. pensa a respeito do atual movimento chamado
"pós-moderno" na antropologia?
Freqüentemente não se sabe bem de que se trata quando se fala em
pós-moderno. Não me considero um pós-moderno no sentido estrito, mas acredito
que os pós-modernos estão apresentando questões interessantes que precisam ser
confrontadas até por aqueles de nós que possivelmente não estão muito
enamorados das respostas dadas por eles quanto poderiam estar. Mas as questões
que eles trazem e as preocupações que eles têm são
todas bem reais, e essas questões e preocupações exigem algum tipo de
resposta. Se a resposta que é usualmente associada ao pós-modernismo, que é uma
visão descentrada e altamente relativa das coisas, é a resposta ideal, eu não
tenho certeza, mas acho que os pós-modernos devem ser tomados como positivos
para a construção da teoria antropológica.
Eles contribuíram muito, criticamente, fizeram com que algumas posições
e argumentos se mostrassem simples demais para serem mantidos e também
trouxeram o tipo de pergunta que você fez momentos atrás sobre a influência da
sociedade de alguém na percepçãodesse alguém etc. Foi esse tipo de coisa, entre
outras, que nos foi trazido pelos pós-modernos.
Um monte de outros problemas com relação à escrita, com relação à
retórica,
com relação à questão da prova etc., como nas ciências naturais, tudo
isso vem à tona, ao menos em parte, devido à crítica pós-moderna. Então, como
crítica, acredito que tenha tido um valor significativo, mas, como força
positiva e construtiva, sou um pouco mais cético.
Quais são os seus planos para o futuro? O sr. pensa em escrever mais um
livro?
Não sei, não estou escrevendo um agora, tenho que escrever alguns
ensaios e tenho quedar algumas palestras, mas tenho 74 anos, então... Você
sabe, nesta altura a gente pensa no futuro de um modo diferente. Não sei,
talvez escreva algo, mas no momento não estou trabalhando em um livro, estou
trabalhando bem, escrevo resenhas, tenho que falar com algumas pessoas no mês
que vem e coisas do gênero. Tenho que tentar cumprir algumas promessas que fiz
antes e não pude cumprir enquanto estava escrevendo livros. Mas eu posso
eventualmente voltar a escrever. Veremos. Quando se toca de ouvido, quem sabe?
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