Contribuições
clássicas
O histórico da busca de uma realidade
inteligível, “a porta para o logos”, é envolvida pelo
mito. Desde o século VI a.C., os gregos da Jônia estavam a procura de uma
substância primária, de um material básico do qual, segundo argumentavam, todas
as coisas haviam se desenvolvido. Três homens, todos de Mileto e todos
astrônomos e matemáticos, tinham suas teorias a esse respeito. Tales opinava que o material básico era um liquido claro; Anaxímenes
pensava que era um gás incolor e Anaxímandro julgava que fosse alguma
substância indeterminada, ilimitada e imperecível. Ao mesmo tempo, outro grupo
de homens jônicos fazia especulações sobre a natureza da própria vida.
Procuravam, estes grandes pensadores, um princípio único e unificador que
explicasse porque as coisas são que
o são (4).
Um desses homens era Heráclito, que
vivia em Éfeso. Heráclito acreditava que a condição essencial da própria vida
era o “fluxo”, isto é, o fato de que nada era absoluto e tudo mudava.
Pitágoras, que nasceu em Samos, mas residiu a maior parte de sua vida na
colônia grega de Crotona, Itália, acreditava que o universo era ordenado por um
sistema harmonioso de números. Desses conceitos nasceu o Teorema de Pitágoras.
O terceiro desses primitivos
filósofos foi Xenófanes, que, forçado a sair de sua terra na Jônia por uma
invasão persa, estabeleceu-se em Eléia, na Itália. Xenófanes fundou uma escola
filosófica, onde ensinava que o universo era ordenado por um ser único, supremo
e divino, que agia exclusivamente por meio do pensamento (5).
Embora esses primeiros cientistas e
filósofos dessem a maior importância ao seu trabalho e não hesitassem em
rejeitar os velhos mitos sobre os deuses, se os mesmos estivessem em desacordo
com suas teorias, ainda acreditavam em alguma direção divina do mundo. Se
tivessem que desacreditar no velho mito criariam um novo para lhe tomar o
lugar. Não se pode denominar esses métodos de científicos. Trabalhando no
próprio alvorecer da Ciência, agiam principalmente por meios de rasgos de
intuição e de inspiradas conjecturas. Não obstante, alguma das suas conclusões
são espantosas. Anaxímandro, por exemplo, afirmou que o mundo era apenas uma
série interminável de mundos; Xenófanes declarou que o homem tinha saído
originalmente do mar e apresentou fósseis como prova. Xenófanes, foi, desse
modo, um precursor da moderna afirmação científica sobre o assunto (6).
Entre os gregos, a procura do
conhecimento científico dava tanto prazer como a apreciação das artes. Não
faziam distinção entre o amor da beleza e o amor da verdade. A ideia de beleza
é densa (Kalos, Kaloi) = Belo – Bem – Verdadeiro, supõe a busca contínua pela
perfeição. O mito fornece a tônica das relações entre deuses e homens e do
entendimento da harmonia das formas, a busca determinante pelo equilíbrio. Essa
busca está presente, principalmente entre os séculos V e IV a.C. na construção
dos templos, no teatro, na poesia, nas artes de modo geral. Esse sentido
reflete a obrigação do homem de tirar o máximo proveito de seus dons naturais:
“tudo o que valia a pena fazer, devia ser bem feito” (7) e, assim, até mesmo os
vasos mais simples têm um notável toque de distinção. Até objetos utilitários,
como moedas, são pequenas obras-primas em relevo em ouro e prata. Nesse
contexto, visão científica ou filosófica, relações diretas (uma ponte) entre
Arte e Vida estavam em conexão.
Na escultura, esse sentido de fina
execução era inspirado e reforçado por algo mais sublime. A escultura grega
tinha de ser digna dos deuses e estar inserida nas proposições mitológicas.
Deveria também ser vista nos lugares, públicos sobretudo nos templos. Era
preciso que tivesse nobreza e dignidade, sem contudo distanciar-se das coisas
do cotidiano; acreditava-se que os deuses estavam, com frequência, intervindo
nas mesmas. Tudo isso explica porque a Arte Grega, em seu maior brilho, evitava
efeitos violentos e grosseiros. Ao contrário, mostra os homens em pleno vigor
de seus corpos ágeis e musculosos, e mulheres envoltas nas ondulantes roupagens
dos seus mais finos vestidos.
Os gregos, povo despido de inibições
ao falar de si mesmo, sentiam prazer nas palavras. Possuíam à sua disposição
uma língua sutil, expressiva e adaptável, da qual faziam pleno uso. Como se deu
com muitos outros povos, além da profusão de personagem mitológicos, a poesia
chegaria a ser quase “uma segunda religião”. Havia na sua criação, todo o
cuidado e penetração que se aplicavam as artes visuais. Os poetas eram muito
prezados – um poeta, para o filósofo Sócrates, era uma “coisa luminosa, alada e
sagrada” (8). Escreviam sobre toda espécie de temas: agricultura, costumes
locais, mitologia. Um homem, qualquer homem, quando tinha algo importante para
dizer, quase sempre se expressava em verso – cantando ou declamando – nos
primeiros tempos, com o acompanhamento de música.
A poesia era a reação imediata dos
gregos a um amplo campo de buscas e experiências. Como reflexo dessa variedade,
criaram ou aperfeiçoaram formas poéticas conhecidas até hoje. É possível que
tenham começado com a epopéia heróica, que é a narração, em versos, de
acontecimentos empolgantes, trágicos, povoados de heróis, deuses e mortais
comuns. Continuaram com uma poesia mais pessoal e sentimental, cantada ao som
da lira e que é, por isso, chamada lírica. No seu apogeu os gregos inventaram a
Tragédia e a Comédia: a primeira tratava obscuras e difíceis relações entre os
deuses e os homens, e a segunda apresentava, em linguagem picante e burlesca,
toda sorte de fraqueza humana.
O apogeu dessa tradição criadora,
alimentada pela Mitologia, foi atingido na última parte do século VIII a. C.,
na pessoa de Homero. Pouco se sabe de Homero. Julga-se que viveu em Esmirna ou
na Ilha Quios. Suas obras-primas marcam o amanhecer da literatura européia. As
epopéias anteriores deram a Homero um material narrativo e uma forma métrica
que posteriormente se tornou o metro da poesia épica grega, o hexâmetro
dactílico (9).
Porém, os poemas homéricos são muito
mais que magnífica poesia. A Ilíada e a Odisséia tornaram-se os livros
fundamentais da cultura grega e Homero foi considerado posteriormente pelos
gregos um dos fundadores de sua história, filosofia, drama, poesia e ciência.
Os seus temas foram uma fonte inesgotável de inspiração para artistas e
oradores gregos. Hoje, ele constitui documento fascinante de informações sobre
o mundo grego, como era no seu tempo e o mundo como ele pensava que fora nos
tempos micênicos.
Embora tivesse aproveitado os mitos
que lhe haviam chegado através dos séculos, Homero acrescentou muito do que era
propriamente seu. Tomou as histórias primitivas de monstros canibais e riscos
desesperados e animou-as com uma generosa e delicada ou rica visão da vida.
Entre as antigas narrativas existe uma homem errante que é arremessado à costa
pelo mar, sendo salvo por uma princesa com quem se casa. Ulisses, o homem
errante de Homero, é salvo por uma encantadora princesa, Nausica, mas não se
casa com ela. Ulisses tem uma esposa na pátria e, desse modo, em vez de
casamento, desenvolve-se uma comovente amizade entre o acossado marinheiro e a
jovem princesa.
Os seus ouvintes, provavelmente, não
queriam se não histórias de heroísmo. Mas Homero lhes dava uma visão completa
do mundo, de deuses nas suas tarefas determinadas, de homens e mulheres em
marcha para os seus destinos, de todas as atitudes da vingança sinistra à farsa
hilariante, de palácios e jardins, de ilhas remotas e praias rochosas. Por trás
de todas as referências mitológicas, a sua imaginação está em ação, procurando
ver os seres humanos como realmente são, compreendendo por que fazem o que
fazem; retratando-os com profundeza mesmo quando são maus com calor e afeição
(10).
Portanto, para Homero o mito
franqueava inteligibilidade, conhecimentos: era “porta para o logos”.
Os mitos continuam
sendo “a porta para o logos”?
E “os mitos contemporâneos” como atuam?
E “os mitos contemporâneos” como atuam?
Hoje, observa-se que a retomada de
Homero vem acompanhada de registros que, cada vez mais, estão sendo
comprovados. É notório que Homero usa exemplos míticos para todas a situações
imagináveis da vida em que o homem pode estar na presença de outro, para aconselhar,
advertir, admoestar. Tais exemplos não se encontram de ordinário, na narração,
mas sim nos discursos dos personagens épicos. O mito serve sempre de instância
normativa para a qual apela o orador. Não tem caráter meramente fictício, dá
margem a fantasia criadora, à sensibilidade estética. Há no seu âmago uma
validade universal (11).
Atualmente, a pesquisa científica das
diversas áreas continua reexaminando não apenas os épicos de Homero, porém o
grande acervo clássico como um todo. Ao lado do saber proporcionado pelos
cientistas, filósofos, dramaturgos e a beleza das obras-primas, tem-se como
certo de que as citações épicas vão além do mito. Dados e novas descobertas que
se somam, vão tirando personagens do anonimato, ou confirmando lugares de suas presenças.
Tem-se, por exemplo, mais de vinte mil personagens com registros em fragmentos
de cerâmicas (ostraka). Ao lado de
figura ilustres como Péricles, Aristídes, surgem novas, com freqüência (12).
Essas sinalizações motivam contínuas
retomadas das questões inseridas na força de mitos primordiais que traçaram a
fisionomia de homens e povos. Pensadores contemporâneos, correntes
psicanalíticas, estudiosos da astrofísica, momentos artísticos diversos não se
furtam a esse acervo. Entre os séculos XVIII e XIX, ingleses e franceses,
depois de saques, aumentam as coleções de seus museus “com deuses e deusas”.
Esses inspiraram reformulações urbanísticas e obras artísticas. Pensadores como
Goethe e Hegel aprofundaram suas ideias através desse referencial. Já no século
XX, Freud vasculha a emergência do mito, incluindo a sua força simbólica.
Dessa forma, pode-se indagar: a
passagem de uma consciência mítica para o logos continua envolvendo
a todos? Onde começa a diversidade entre os homens? Onde terminam as questões
de identidade? O que há de comum e de diverso entre gregos e romanos; entre
orientais e ocidentais; latinos e saxões, ou entre latinos americanos do sul e
do norte? Por que, no encontro de culturas diversas, uma absorve a outra,
impondo-se como única de ser, agir, ou de entender estilos e a própria visão do
mundo ou do cosmo? Nos campos da Ciência e da Arte, o acervo primordial ainda
faz sentido como referencial?
As questões podem continuar a serem
levantadas: o mundo que se informatiza gesta novos mitos? O mundo vitrini e a realidade virtual criam novos
personagens? As pesquisas bio-tecnológicas, clonagem, a robótica não estão
criando “novos heróis, deuses e semi-deuses”? Décadas atrás, a pop art
referia-se aos novos mitos que emergiam da sociedade de eletrodomésticos e da
publicidade como os “novos barroquismos urbanos” (13). Tendências pós-modernas
assinalam a presença do mito clássico, como “saudade do lar distante” ou de
antigos lugares do mediterrâneo. Naturalmente, os mitos assumem novas
configurações e sentidos. No contexto atual, quais aspectos podem ser
assinalados? Quais as possibilidades emergentes de conectá-los com Arte e
Ciência?
Notas:
1. JENCKS, Charles. Post-modernism – the
new classiscism in art and architeture.London Academy, 1987, p. 33 e
seguintes
2. CRIPPA, Adolpho. Mito
e Cultura. São Paulo, Convívio, 1975, p. 15 e seguintes
3. JAEGER, Werner. Paidéia. São
Paulo, Martins Fontes, 1979, p. 179 e seguintes
4. PESSANHA, José
Américo Mota (cons.). Os pré-socráticos vida e obra (Col. Os
Pensadores), São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 14.
5. Idem, p. 23 e
seguintes.
6. Ibidem, p. 25 e
seguintes.
7. BAYER, Raymond. Historia
de la estetica, México, Fondo de Cultura, 1965, p. 222 e seguintes.
8. PESSANHA, José
Américo Mota. In: Sócrates (Coleção Pensadores) São Paulo, Nova Cultural, 1996,
p. 10 e seguintes.
9. JAEGER, Werner.
Op. cit., p. 34 e seguintes.
10. Idem, p. 62 e
seguintes.
11. CAMPBELL,
Joseph (org.) Mitos, sonhos e religião – nas artes, na filosofia e na
vida contemporânea. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001, p. 139 e seguintes.
12. BOWRA, Maurice. Grécia
Clássica, Rio de Janeiro, José Olympio, 1969, p. 11 e seguintes.
13. ROUANET, Sérgio
Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras,
1987, p 265 e seguintes.
Bibliografia:
CAILLOIS, Roger. O
Mito e o Homem, Lisboa, Edição 70, 1979.
CRIPPA, Adolpho. Mito
e Cultura, São Paulo, Convívio, 1975.
DORFLES,Gillo. Novos
Ritos, novos mitos, Lisboa, Edições 70, 1965.
CAMPBELL, Joseph. com BILL MOYERS; FLOWES
(BETTYSVE org.) O poder do mito, São Paulo. Palas
Athenas, 1996.
LÉVI-STRAUSS,
Claude. Mito e Significado, Lisboa, Edições 70, 1979.
JENCKS, Charles. Post-modernism – the new
classiscism in art and architeture.London Academy, 1987.
CRIPPA, Adolpho. Mito
e Cultura. São Paulo, Convívio, 1975.
JAEGER, Werner. Paidéia. São
Paulo, Martins Fontes, 1979.
PESSANHA, José
Américo Mota (consultoria). Os pré-socráticos vida e obra (Coleção
Os Pensadores), São Paulo, Nova Cultural, 1996.
BAYER, Raymond. Historia
de la estetica, México, Fondo de Cultura, 1965.
PESSANHA, José
Américo Mota. In: Sócrates (Coleção Pensadores) São Paulo, Nova Cultural, 1996.
CAMPBELL, Joseph
(org.) Mitos, sonhos e religião – nas artes, na filosofia e na vida
contemporânea. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001.
BOWRA, Maurice. Grécia
Clássica, Rio de Janeiro, José Olympio, 1969.
ROUANET, Sérgio
Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário
de filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1998.
WILSON, Simon. Arte pop, Barceolona:
Labor, 1995.
Lealcy B.
Junior
E um prazer enorme conhecer seu blog onde encontrei postagens significativas que nos instrui muito.
ResponderExcluirJá seguindo você na espera de continuar lindo suas novas postagens.
Um dia lindo beijos,Evanir.