domingo, 29 de maio de 2011

O SOM E O NÚMERO

O Som Criador
Todas as Escrituras Sagradas, de Oriente a Ocidente, se referem a um Som inicial, fazedor de Mundos. No Ocidente, a versão bíblica nos diz que “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dele” (João, 1:1-3).
Igualmente nas Cosmogonias  orientais, o som (sabda, em sânscrito) é o construtor da Manifestação (Sabda Brahman). No sistema Vedantino, esse Som criador ou Palavra é Vâch. E no Ocidente, os Gregos antigos tinham o designativo Logos para este mesmo conceito. Contudo, Verbo, vocábulo de etimologia latina, é um termo sumamente feliz para significar, precisamente, esse ato da Criação.
Gramaticalmente, Verbo é uma palavra com a qual afirmamos a existência de uma ação, de um estado ou de uma qualidade que atribuímos ao sujeito. É, pois, algo como uma extensão (ativa) do (de um) sujeito. Infere-se, daí, que o sujeito permanece abstrato e imanifestado sem essa ação, que então o representa e torna manifesto. Assim, de fato, o Verbo é a primeira expressão da Manifestação e o que permite que ela se desenvolva.
O Verbo, neste sentido místico, metafísico, veio a antropomorfizar-se e a integrar a tríade de figuras deíficas da Tradição Cristã – as três “Pessoas” da Trindade (ou Unidade trina, de três aspectos) “Pai, Filho e Espírito Santo” – fazendo-se corresponder ao “Filho” ou “Cristo”.
O mesmo sucedera nas outras culturas e, assim, segundo a alegoria do Padma Purâna: “No princípio, Mahâ-Vishnu (o Grande Vishnu), desejoso de criar o mundo, converteu-se em três: criador, conservador e destruidor. A fim de produzir este mundo, o Espírito supremo fez emanar Brahmâ do lado direito do seu corpo; em seguida, a fim de conservar o universo, produziu do seu lado esquerdo o deus Vishnu; e, por fim, para destruir o mundo, do meio do seu corpo produziu o eterno Shiva”.
O equivalente deste Verbo, em sânscrito, é Vâch, que já mencionámos. Vâch é a expressão concreta da Ideação Divina e, por conseguinte, a “Palavra”. Figurativamente é também Sarasvatî, a consorte ou aspecto feminino de Brahmâ, a deusa da Sabedoria e da eloquência. Nesta conformidade, por sua vez, Sarasvatî é idêntica à Sophia dos Gnósticos (é ela, nas diversas acepções, o Logos feminino, a Sabedoria Divina personificada, a Virgem Celestial…). Diz o Mahâbhârata: “Vâch é a celestial Sarasvatî produzida dos céus”, “uma palavra derivada do Brahmâ sem fala”.
No sistema vedantino, o Som que origina, permeia e sustenta todo o Universo desdobra-se em 4 níveis, do mais subtil ao mais grosseiro e material

1º - Parâ ou Parasabda [parâ = transcendente, supremo, e sabda = som], o Som Causal e insonoro; de Parabrahman, além do Númeno e de todos os Númenos;
2º - Pasyantî, o próprio Logos;
3º - Madhyamâ, a luz de Isvara (a luz do Logos); a Duração, a Permanência, a Eternidade;
4º - Vaikharî, a linguagem pronunciada ou articulada; o som material e o Cosmos que conhecemos; o último estado de densificação do Som causal.
O termo grego Lógos reveste o significado de “palavra”, “razão”, e os antigos filósofos usaram-no no sentido de “Razão divina organizadora do Mundo”. O seu equivalente latino é, pois, ratio (razão), oratio, verbum – palavra, linguagem, expressão do pensamento. Por seu turno, os semitas usaram o termo que lhes corresponde na sua respectiva língua – “memra” –, neste caso como referente a Jeová, ou revelador da sua presença. Nos Targums (as versões aramaicas do Velho Testamento), a Memra (’imrah ou ’emrah) figura constantemente como a manifestação do Poder divino, ou como Mensageiro divino em lugar do próprio Deus. Nos Targums da Caldeia, esta Palavra de Jeová representa-o, falando e atuando: “E eles ouviram a Palavra [Memra] de Deus caminhando no Jardim [do Éden] na brisa da tarde e Adão e sua mulher esconderam-se da presença da Palavra [Memra] de Deus, por entre as árvores do Jardim…”. A Memra partilha a natureza de Deus e, ao mesmo tempo, é o seu mensageiro.
S. João aplicou o termo Logos a Cristo, o revelador do Pai, a imagem visível do Deus invisível (posto que a Palavra é a exteriorização do Pensamento – Divino e Universal, como também o individual).
O Som insonoro, o Som potencial
No Princípio, foi o Som que dividiu a Unidade, que produziu o dois ou dualidade. E foi a dualidade que deu início à Consciência reflexa ou de relação.
A consciência (assim entendida) só existe no mundo fenomênico, porquanto a consciência é uma efusão produzida por fricção. O Um é designado “Nada” ou “Parâ” porque, não tendo onde se refletir (onde se confrontar), não é essa consciência – de modo inapreensível para nós, transcende-a, e simplesmente É, sem apêndices nem atributos .
Todo o Universo manifestado e todos os fenômenos são cadeias e “arranjos peculiares” de vibrações. E é o Universo que é Consciência – consciência precisamente originada pela efusão, pelo atrito, pela estimulação da infinidade de vibrações. Tais vibrações são os Filhos monádicos desse Um, seus desdobramentos incessantes… o Um desdobra-se nos múltiplos.
A Sinfonia do Universo
O termo ‘logos’ igualmente “tomou o seu lugar na linguagem musical grega, referindo a medida da cítara ou da lira (i.e., os trastos ou travessões) onde a corda deveria ser pisada de modo a produzir uma nota definida". Este parece-nos um facto muito sugestivo. Os sons puros (as 7 notas musicais, ou o que elas representam), que integram a escala diatónica, são, na sua matriz, contenções de arquétipos que no curso da Manifestação se desprendem e combinam infinitamente. E esse Grande Septenário harmónico (matemático) é o que sustenta e viabiliza a Manifestação dos mundos, a Lei do Ritmo operando por detrás.
É dito que a escala musical hindu terá evoluído de 3 notas apenas para a escala de 7. Essas 3 notas detinham a chave da vocalização do AUM, sendo que este Mantra, o mais sagrado de todos os mantras, sintetiza e representa o poder da Trindade. As três letras do AUM correspondem ao “Fogo Triplo”, respectivamente Agni ou Abhimânim (Fogo ígneo) – ‘A’; Varuna ou Vishnu (Fogo aquoso, Águas do Espaço ou Akasha) – ‘U’; Marut (Fogo aéreo, Espírito de Vida) – ‘M’.
Sendo o AUM o emblema da Trindade na Unidade, as 3 letras de que se compõe representam ainda os três aspectos do Ser Supremo – Brahman -, ou seja, o de Criador (Brahmâ – ‘A’), o de Conservador (Vishnu – ‘U’), e o de Destruidor/Renovador (Shiva – ‘M’). E assim, também, naturalmente, Âtma, Buddhi e Manas.
Depois, as três evoluíram para sete, Sa – Ra – Ga – Ma – Pa – Dha – Na (ou Ni-sa), a escala sendo dividida em 22 intervalos ou srutis. O sruti, ou intervalo micro-tonal, é a mais pequena diferença tonal entre dois sons que pode ser distinguida pelo ouvido humano.
Cada uma das 7 notas musicais representa cada um dos 7 Rishis (os 7 Filhos Nascidos da Mente de Brahmâ) que transmitiram o conhecimento sagrado à Humanidade. Diz a lenda que são os animadores (os espíritos) das 7 estrelas da Ursa Maior, os quais, descendo à terra em forma de cisnes, ancoraram no lago Mânasa-Sarovara (nos Himalaias) e aí comunicaram o conteúdo dos Vedas aos mais merecedores entre os humanos. As notas musicais, no seu substracto, são pois, cada uma delas, uma potência – um som – subtil e sintético que, desdobrando-se infinitamente, e concretizando-se em linguagem, constitui os Vedas e todo o escol de conhecimento superior e sagrado.
A Revelação – As Escrituras Sagradas
Tomemos, de novo, o termo Sruti (literalmente em sânscrito, “o que é ouvido”). Sruti é um cânon de textos sagrados hindus. Não data de um período estrito mas atravessa a história inteira do Hinduísmo, começando com alguns dos textos sagrados mais antigos conhecidos, estendendo-se aos mais recentes Upanishads. É dito que o Sruti não tem autor humano; que é um registo divino dos “sons cósmicos da Verdade”, ouvidos pelos santos Rishis em profunda meditação.
Considera-se que o Sruti é composto pelos 4 Vedas: o Rig-Veda (o Cântico da Sabedoria), o mais antigo dos Vedas e o mais importante conjuntamente com o Sâma-Veda (dele se diz que surgiu da boca do próprio Brahmâ); o Yajur-Veda (Sabedoria do Sacrifício), o segundo em antiguidade; o Sâma-Veda (a Escritura ou Shâstra da Paz), o Veda do canto (no mais alto sentido da potência da música); e o mais recente, o Atharva-Veda (Sabedoria dos Mantrams ou Fórmulas Mágicas). Segundo reza o Ocultismo, os Vedas foram ensinados oralmente pelo espaço de milhares de anos e, só depois, copiados nas margens do lago Mânasa-Sarovara.
O Som e o Número
O Som e o Número caminham enlaçados. Com efeito, os Antigos postulavam que o Universo fora feito segundo os preceitos de razão e medida. Acreditavam que uma Trindade Divina fora a matriz e o motor que criara o Mundo. Essa Trindade, pressuposto comum e fundamental de todas ou quase as religiões, era mais precisamente uma Unidade-trina, a Unidade sob três aspectos distintos – criação/expansão; sustentação/equilíbrio; destruição/interiorização/recolhimento. Naturalmente, essa mesma matriz estava simbolizada na figura geométrica do triângulo.
Para os antigos hindus, a matriz trinitária original cunhou e impregna tudo o que existe, sendo o seu padrão diretor. Para os gregos, e designadamente para Platão, três eram os triângulos que estariam na base constitutiva dos arquétipos dos 4 Elementos, sendo estes quatro os tijolos arquitetônicos de que fez uso o Grande Arqueu (o Demiurgo) na Obra da Criação.
É sabido, mas mal compreendido, que na Antiguidade todos estes conhecimentos matemáticos e muitos outros se regiam pela regra do segredo. Refira-se que a Aritmética, a Geometria, a Música e a Astronomia eram precisamente as ciências obrigatórias dos pitagóricos (designadas Quadrivium) e consideradas os “quatro últimos Caminhos das Sabedoria”. Na verdade, a regra do segredo tinha como fundamento a percepção de que a Matemática sagrada veiculava um imenso Poder, revelando as Leis Ocultas da Natureza e da Psique individual e colectiva, sendo por isso imperativo preservá-la da posse dos profanos…
 É assim que as Cidades-Estado da Caldeia tiveram à frente dos seus governos Reis-Sacerdotes (ou Reis-Magos) detentores desses arcanos, bem como a linhagem “divina” dos primitivos faraós os utilizou para fundar o seu reino.
Muitos desses conhecimentos dos antigos, com efeito, parecem ter sido verdadeiramente extraordinários. É o caso do Schem Hamaphoras. Schem era uma fórmula de poder que insuflava vida ou o “pleroma”. Jesus foi acusado pelos judeus de ter roubado este nome do Templo, valendo-se de artes mágicas, e de empregá-lo para a produção dos seus milagres.
Assim, o Tratado da Sinceridade do Rabino Moisés Takko (séc. XIII) diz:
 “… E todos estes magos do Egipto, que haviam criado esses seres [‘artificiais’], estudavam junto dos dáimones [génios]  ou por meio de uma espécie de arte mágica, a Ordem das Esferas… e criavam o que queriam. Pois bem, os Rabinos, que deles aprenderam e conheciam os Mistérios, podiam criar um homem ou um bezerro: pegavam em terra… pronunciavam sobre ela o ‘Schem’, e o ser era criado.
Já no século X, corre a lenda da criação de homúnculos com recurso à Séphèr Iétzirah mediante “grandezas geométricas” expressas em letras retiradas dos Schem Hamaphoras (os nomes divinos do triângulo sefirótico.
 Homúnculos são pequenos seres, réplicas ou projeções da anatomia e psiquismo humanos, criados pelo homem por meio de métodos espagíricos. Estes seres receberam também o nome de Golem, herdado das lendas cabalísticas. Golem é uma derivação da palavra “gelem”, que significa “matéria prima”. Na Bíblia, é empreque no sentido de “embrião”, “pré-homem”, “substância incompleta”. O salmo 139:16 usa a palavra “gal’mi”, significando “a minha substância ainda informe”.
“Da fase babilónica data, aliás, a obra “Schim Koma” (Medida da estatura de Deus, tratando sobre medidas, formas precisas do corpo e do rosto divinos…), mas o livro mais notável desta época é o Séphèr Iétzirah (Livro da Criação), escrito em hebraico (na Síria, provavelmente) cerca do século VI ou VII. (…) A influência gnóstica e neopitagórica é patente: Deus criou o mundo por intermédio das dez Potências ou Verbos chamadas Séphiroths e as vinte e duas letras do alfabeto hebraico”.
A imitação da obra de Deus – a Criação
O poder do uso da Palavra é um fato incontornável. A Palavra (o som) sabiamente direcionada (alicerçada e dirigida pelo Conhecimento Oculto) é um extraordinário veículo de poder, inclusive o poder de animação, tanto a seres naturais quanto a seres artificiais.
Segundo a crença judaica, do mesmo modo que Deus criou o universo e o homem a partir do substrato (da alma) das vinte e duas letras hebraicas, os homens podem replicar o ato criador se conhecerem as combinações adequadas. Nas palavras do filósofo e cabalista Augustín Izquierdo, citadas na obra O Ritmo do Tempo, de Patrick Mimran: “… ao princípio, a criação do Golem parece que apenas tinha um caráter ritualista: acontecia como a coroação do estudo da Séphèr Iétzirah empreendido por um grupo de pessoas. O ser artificial assim criado não tinha nenhum objetivo prático. A sua realização destinava-se a pôr em evidência o poder das palavras sagradas; o ser criado, a partir do barro, era imediatamente destruído.
Só mais tarde surge o Golem como um ser independente, a que se atribuem funções utilitárias, e que pode representar um perigo para os que o rodeiam. Da lenda à ficção literária, designadamente ao Romantismo alemão, foi um passo…”.
Lê-se na Doutrina Secreta, de Helena Blavatsky: “Os homúnculos de Paracelso são um facto na Alquimia e, muito provavelmente, sê-lo-ão na Química”. E, em Ísis sem Véu, escreveu a mesma autora: “Existem relatos circunstanciados da produção de alguns homúnculos, entre outros os do famoso conde Kueffstein, camareiro da imperatriz Maria Tereza, da Áustria. Este conde e o abade Geloni fecharam-se num laboratório de convento na Calábria e, durante cinco semanas, dia e noite, estiveram trabalhando com fornos acesos. Ao fim desse tempo, conseguiram criar nada menos que dez homúnculos. O modus operandi é descrito por Paracelso no seu tratado De Natura Rerum.”
O Espaço Vivente
Efetivamente, a Natureza é o grande Laboratório da Vida manifestada. Nele fervilha a Consciência. O homem é um aprendiz de feiticeiro, mesmo nos seus mais ínfimos empreendimentos. Tateamos no aparente invisível para sorvermos, gota a gota, algo da grande Sabedoria, porque sabemos que ela ali se encontra. A evolução é uma imitação progressiva de Deus.
Nesse aparente vazio, o Akasha, a Alma Universal, encontramos o alimento espiritual que dá o ser a tudo o que é – do mais ínfimo grão de pó ao deva mais grandioso, da pequena flor campestre ao sábio mais elevado, das estrelas às galáxias… Nele estão ou rudimentos (os princípios) de todas as coisas que são, que foram e que hão-de vir. Nele estão os números de tudo o que é. Como dizia Platão, no Timeu, “a Alma do Mundo é a matriz a partir da qual a composição de todas as proporções matemáticas é repercutida no Mundo Sensível por ação da inefável providência de Deus”.
Esta mesma realidade os Pitagóricos reverenciaram e simbolizaram na figura fundamental da Tetraktys. “O diagrama de pontos da Tetraktis foi para os membros da Confraria Pitagórica um símbolo esotérico tão importante como o pentagrama, que era a sua ‘contra-senha’ secreta. Evocando a Tetraktis, os membros prestavam juramento solene de não divulgar nunca os seus segredos matemáticos. Jâmblico reproduziu a fórmula do juramento: ‘Não, juro por Aquele que transmitiu a Tetraktys à nossa alma, em Quem se encontra a fonte e a raiz da eterna Natureza’. E estes são os termos da oração pitagórica dirigida à Tetraktys: ‘Abençoa-nos, Número Divino, tu que engendraste os deuses e os homens! Oh, santa, santa Tetraktys, tu que encerras a raiz e a fonte do fluxo eterno da criação! Pois o número divino se inicia pela unidade pura e profunda, e alcança em seguida o Quatro sagrado; depois engendra a mãe de tudo, que une tudo, o primogênito, o que não se desvia jamais, que não se cansa jamais, o Dez sagrado que detém a chave de todas as coisas.” 
“Os resultados do estudo dos intervalos musicais foram as matemáticas pitagóricas, especialmente a teoria das proporções, posteriormente desenvolvida por Platão. Com efeito, os gregos não comparavam as freqüências vibratórias das cordas, que eles não haviam medido, e sim os seus comprimentos, o que equivalia ao mesmo (freqüências e comprimentos são inversamente proporcionais); a teoria resultante dos intervalos musicais e das suas proporções podia depois transferir-se diretamente ao estudo de proporções entre quaisquer magnitudes lineares. Voltamos a encontrar aqui a Tetraktys e uma das razões da sua importância no fato de que a progressão 1, 2, 3, 4 traduz as principais relações dos intervalos da gama diatónica: o de 4 a 2 ou de 2 a 1 a oitava, o de 3 a 2 a quinta, e a presença do número 5 = 3 + 2 ou Pêntada, sublinhando a importância da quinta da qual deriva a gama diatónica pitagórica. Cabe, pois, dizer, com Delatte que: ‘A Tetraktys é o conjunto dos quatro números cujas relações representam os acordes musicais essenciais’”(18).
Por outro lado, a Tetraktys encontra uma curiosa equivalência com o esquema da Árvore da Vida (o Ootz Chim hebraico) ou Árvore das dez Sephiroth (de sephira = número) uma vez que esta evoca o desdobramento da Década, do Um do Absoluto ao 10 da Manifestação. Segundo o já referido Séphèr Iétzirah (Livro da Criação): “Dez são os números saídos do Nada, e não o número nove; dez e não o número onze. Compreende esta grande sabedoria, entende este conhecimento, investiga-o, reflete sobre ele, torna-o evidente, e reconduz o Criador ao seu Trono”.
Assim se desdobra em Quatro Planos ou Mundos a Trindade ou Tríade superior.
A Tetraktys, compreende, ainda, três triângulos menores, simbolizando os níveis do Ser, 1+2, 1+3, 1+4, nestas cifras se contendo a chave do triângulo da Criação, o famoso Triângulo Perfeito (ou Triângulo Áureo), dito “de Pitágoras”, de proporção 3, 4, 5. Contudo, os Egipcios, já anteriormente o haviam eleito como o triângulo da perfeição. Conta-nos Plutarco, na sua De Iside et Osiride: … os Egípcios representavam a natureza do Todo Universal como o mais belo triângulo. (…) Esse triângulo apresenta a parte vertical, como tendo três comprimentos, uma parte de base de quatro comprimentos e uma hipotenusa de cinco comprimentos (…). Poderá comparar-se a linha vertical ao elemento masculino, a linha de base ao feminino, e a hipotenusa ao que deles nasceu, e assim, ter-se Osíris como a origem, Ísis como a concepção, e Hórus como o nascimento [ou o Filho]”. Com efeito, também para os Pitagóricos, os números 3, 4 e 5 – cuja soma é 12 (o número das Hierarquias Criadoras) – teriam presidido à formação do Cosmos e da Criação.
Newton, um pontífice da Sabedoria dos Antigos
A despeito do seu grande e incontestável valor, Isaac Newton pouco mais fez do que (meritoriamente, sublinhamos) ressuscitar e interpretar a Ciência dos Antigos. Todo o seu trabalho foi fundado no estudo minucioso do legado daqueles sábios. No Manuscrito de Portsmouth, conservado pela Royal Society de Londres, diz ele: “‘Que a matéria consiste de átomos era uma muito antiga crença. Este era o ensinamento de uma multidão de filósofos que precederam Aristóteles, nomeadamente Epicuro, Demócrito, Ecfanto, Empédocles, Xenócrates, Asclépidos, Diodoro, Metrodoro de Quios, Pitágoras e, previamente a estes, Moschus o Fenício, de quem Estrabão declara ser mais velho do que a guerra de Tróia. Pelo que eu penso do mesmo modo, fundado nessa mística filosofia que chegou aos gregos do Egipto e da Fenícia, porquanto átomos são por vezes designados mónadas, pelos místicos. Porque os mistérios dos números. bem como do restante dos hieroglifos se inserem na mística filosofia” Newton prossegue dizendo que são estas ‘sementes imutáveis’ que asseguram que ‘as espécies e os objectos estejam conservados na perpetuidade’.
(…) Por que proporção a gravidade decresce por distanciamento dos Planetas, os antigos não deixaram suficientes indicações. Contudo, a ela parecem ter aludido através da música das esferas celestes, designadamente o Sol mais os seis Planetas, Mercúrio, Vénus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, relacionando-a com Apolo e a sua Lira de sete cordas e medindo o intervalo das esferas em função do intervalo dos tons musicais. Assim, eles alegavam que ‘sete tons’ foram trazidos à existência, a cujo conjunto chamaram o diapasão da harmonia, e que Saturno foi movido pelo som [phthong] Dório, ou seja, o grave (-pesaroso), e os restantes planetas por mais agudos [como Plínio relata, de acordo com Pitágoras], e que o Sol vibra, faz soar, as cordas.
Por esta razão, Macróbio diz: ‘a Lira de sete cordas de Apolo provê o entendimento dos movimentos de todas as esferas celestes acima das quais a Natureza colocou o Sol como regente’. E Proclo, [no seu Memorandum] sobre o Timeu de Platão: ‘… O número sete, eles dedicaram a Apolo como aquele que abarca todas as sinfonias e, assim, eles costumavam chamá-lo Deus o Hebdoma’getes, o que significava Príncipe do número Sete. Semelhantemente, na Preparação do Evangelho, de Eusébio, o Sol é chamado pelo oráculo de Apolo, o rei da harmonia dos sete sons. Mas, por meio deste símbolo, eles indicavam que o Sol, pela sua própria força de tensão, age sobre os Planetas naquela proporção harmónica das distâncias, segundo a qual a força de tensão atua sobre cordas de diferentes comprimentos, ou seja, inversamente na razão dobrada das distâncias. Pois a força pela qual uma mesma tensão atua numa mesma corda de diferentes comprimentos é a recíproca do quadrado do comprimento da corda. (…) já que Pitágoras, como Macróbio admite, esticou intestinos de carneiros e tendões de bois, neles pendurando variados pesos e, a partir daqui, estabeleceu as proporções da Celeste Harmonia”. De forma muito clara, num testemunho de Conduitt, seu amigo e biógrafo, Newton confirma a sua plena rendição à sabedoria de Pitágoras e revela, inequivocamente, a fonte das suas inspirações: “‘… e eu pensei que a música das esferas de Pitágoras tinha a intenção de tipificar a gravidade e que, assim como ele faz os sons e as notas dependerem da medida das cordas, assim a gravidade depende da densidade da matéria…’”.
Janelas para o infinito…
Também a Ciência moderna tende a regressar ao Pitagorismo. Com efeito, em múltiplas áreas vem ela debruçando-se, com nova atenção e respeito, para elementos e fatos, legados pelos Antigos, que antes desprezava como sendo parte de uma mística inconsistente, própria da “infância” da humanidade.
No âmbito da Geometria, uma exploração recém encetada são os fractais, complexos modelos gráficos “com implicações inestimáveis em domínios tão diversos como a compressão de imagens, a arte visual, a música, até aplicações financeiras…”. Tais modelos, freqüentemente de uma estética belíssima, constituem poderosas janelas que nos revelam um mundo de possibilidades arrebatadoras, orientando-nos para universos insondados cujas fronteiras, à semelhança das velhas mandalas, apenas místicos e ioguis haviam logrado transpor e contemplar. Para o vulgo, é hoje mais acessível perspectivar a coerência de um Universo em que o Infinitamente Pequeno é réplica perfeita do Infinitamente Grande… e verificar o alcance do velho axioma “Como Em cima, assim Abaixo”.
Na atualidade, deleitamo-nos com estes maravilhosos fractais, que nos acenam com sugestivas promessas… No entanto, os seus protótipos pitagóricos e platónicos ainda permanecem como os mais reveladores, designadamente o assim chamado “Triângulo Sublime”, tão caro a Pitágoras, de que aqui nos socorremos. Neste triângulo, o fator 1,618 – dito “Número de Ouro” ou “Divina Proporção” – é o elemento diretor (Ver Diagrama 4).
O Triângulo Isósceles dito “Sublime” e a sua espiral logarítmica de pulsação radial 1,618. 
Entre os primitivos hindus, figurativamente, o 3 [através de Brahmâ, o Construtor] projecta-se nas 4 direcções do Espaço [plasmando o Septenário cósmico] e dá origem às 12 Hierarquias Criadoras.
Na figura podemos apreciar como, tendo como ponto de partida um minúsculo triângulo, desabrocham e se foram construindo mais triângulos, idênticos ao primeiro – mantendo sempre a “razão áurea” entre os seus lados (já que a base do primeiro se converte na base do seguinte, e assim sucessivamente…). Podemos entrever a espiral – que cresce e se delineia, por entre os vértices dos triângulos sucessivos. Esta é a famosa espiral de Fibonacci, que se verifica ser uma chave ordenadora e multiconstrutora na arquitectura da Natureza. Sobre ela, já nos detivemos em anteriores ocasiões em artigos de edições anteriores desta Revista.
Este triângulo é o instrumento-modular que integra o “Pentagrama Estrelado” ou Estrela de 5 Pontas pitagórica. Por outro lado, a sua base é o lado de um decágono (D) inscrito num círculo que, por seu turno, tem por raio (E) o seu lado maior, o que compreende e revela, de novo, a “Divina Proporção”, E/D=1,618. Para os pitagóricos, o “Número de Ouro” rege a chamada “Harmonia das Esferas”, em cujos fundamentos a ciência renascentista, em especial Johannes Kepler, ancorou, reabilitando a antiga ciência da mecânica celeste.
O Triângulo Sublime é o símbolo da Evolução humana – do homem para Deus, do homem rumo à sua condição divina.
A espiral
A espiral assenta numa estrutura trinitária (no início da Manifestação, o primeiro impulso terá gerado o triângulo). Na alegoria do Rig-Veda, Vishnu é descrito cruzando aos saltos as sete regiões do Universo em três passadas [configurando o primeiro impulso trinitário] e permeando todas as coisas com a essência dos seus raios de luz.
Vishnu (o símbolo do curso da Manifestação) é a personificação da qualidade Sattva (Sattva tem numerosas acepções: estabilidade, duração, equilíbrio, ritmo…). Nesta conformidade, outra imagem iconográfica representa-o descansando sobre a serpente Ananta (“sem fim”), símbolo da eternidade. Deve-se notar que a serpente é também a espiral – do tempo e do espaço infinitos.
No que a este último concerne, a Física admite e reconhece, hoje, a propriedade ondulatória do espaço. Assim, o próprio som se propaga em sentido espiralado: a sua viagem é “ondulatória”. De novo, Vishnu [a Voz do Pai, Brahmâ] é representado exibindo numa das mãos uma concha; a concha – a espiral – que contém a potência (e esquema virtual) do Manvantara.
Diz-se em A Doutrina Secreta que “o Akasha é o Espaço Universal em que está imanente a Ideação eterna (…) e do qual procede o Logos, ou seja, o ‘Verbo’ ou ‘linguagem’ no seu sentido místico”. O Akasha é o upadhi (i.e., o veículo, a forma externa, manifestada) da Mente Divina e é, sob outro aspecto, Kundalinî – assim, de novo, a imagem serpentina…
Curiosa, no mínimo sugestiva, é a própria constituição do sistema auditivo. No ouvido interno, a cóclea é uma espiral (muito semlhante a uma concha de caracol ou do náutilo) constituída por um tubo ósseo enrolado sobre si próprio. Este tubo é, por sua vez, estrutural e funcionalmente trino (tri-seccionado e trifásico). A própria anatomia externa do aparelho auditivo humano conforma uma estrutura espiralada, o pavilhão (as orelhas).
No Universo físico, as formas – quaisquer formas – não são aleatórias. A sua configuração obedece a padrões internos de ressonância (relembremos que o Akasha é o continente dos arquétipos de todas as coisas e de todas as possibilidades). A Geometria não é mais do que a forma visível do alinhamento de números… No incomensurável universo dos números, cada função, cada propósito, na Natureza, configura uma série restrita, específica, de números. Um ser organizado (uma pedra, um animal, um homem…) é, pois, um aglomerado vastíssimo de complexos desses números. Na imensa variedade de espécies animais existentes, por muito que aparentemente divirjam entre si, não é decerto fortuito que (por exemplo) praticamente todos tenham os olhos, o nariz, a boca, os ouvidos, na mesma disposição relativa; a cabeça num extremo do corpo; os órgãos respiratórios, de nutrição, de reprodução, dispostos equivalentemente, etc.. Na vida orgânica, tudo o que tenha um ou mais elos comuns, propósitos similares, percursos evolutivos partilhados, parece ser regido por definidas leis estruturantes (morfológicas, psicológicas, funcionais, etc) igualmente comuns. Entretanto, a dissemelhança existe – é absolutamente necessária – neste universo em que os contrastes geram consciência; mas estas assimetrias vivem dentro de grandes Simetrias, cujo acorde, lenta mas inexoravelmente, as conduz, as afina, as eleva a patamares superiores de consciência comungante, a novas identidades comuns. O ritmo está para o tempo assim como a simetria está para o espaço, e nesta grande Sinfonia Cósmica tudo converge para o UM.
Passo por passo, as Grandes Simetrias percorrem um caminho de progressiva descristalização, porquanto, acreditamos, a verdadeira Harmonia não tem forma…
Isabel Nunes Governo
Vice-Presidente do Centro Lusitano de Unificação Cultural

terça-feira, 10 de maio de 2011

Evolucionistas e criacionistas


Talvez não haja mais eloqüente sinal da miséria mental dos nossos tempos do que o debate entre o evolucionistas e anti-evolucionistas. Nunca tanta informação científica foi usada a serviço de idéias tão simplórias e filosoficamente insustentáveis.
Invariavelmente, a questão toma aí a direção de um confronto entre a combinatória espontânea e a idéia de um “propósito” da criação. Se for possível provar que o homem como espécie biológica nasceu de adaptações oportunistas às exigências do meio-ambiente físico, acreditam os materialistas, estará derrubada a hipótese de um plano inteligente na engenharia da criação. Inversamente, para sustentar essa hipótese, será preciso reduzir cada passo da história natural a uma etapa lógica de um longo silogismo cosmogônico cuja premissa maior seriam as metas fixadas por Deus antes da criação do mundo.
Em termos aristotélicos, é uma disputa entre causas eficientes e causas finais. O método consiste portanto em examinar as primeiras para saber se elas se bastam a si mesmas ou se exigem uma explicação suplementar finalística.
O papa atual do evolucionismo, Richard Dawkins, simplifica ainda mais a fórmula do problema: trata-se apenas de saber se “organizações complexas”, como homens e computadores -- e homens que fazem computadores -- podem ser explicadas a partir de meros arranjos bem sucedidos ou se requerem um plano inteligente. Se a sucessão de arranjos não deixar nenhum hiato para as causas finais, adeus causas finais. Os adversários do evolucionismo, por isso, são pertinazes buscadores de hiatos na sucessão de arranjos oportunistas (ou causas eficientes).
Ninguém aí parece se dar conta de que a finalidade de qualquer coisa transcende, por definição, a existência material dessa coisa. Nenhum ente, examinado nas minúcias da sua constituição imanente, revelará jamais sua finalidade, porque esta, se existe, só pode realizar-se para além dele. Sinais que insinuem uma finalidade podem-se talvez encontrar no corpo do imanente, porém sempre juntos com indícios contraditórios que ao menos pareçam desmenti-la. Se a finalidade estivesse explícita, manifesta, nítida na atualidade corporal do ente, ao ponto de poder ser provada empiricamente como um dado sensível, ela estaria, por isso mesmo, plenamente realizada na existência atual, sem qualquer necessidade de um salto para o transcendente.
Mais ainda, nenhum fato, por mais simples que seja, pode produzir-se sem o encadeamento completo de suas causas eficientes, acidentais inclusive. Se por explicação se entende a reconstituição intelectual desse encadeamento, todo e qualquer ato ou acontecimento pode ser inteiramente “explicado” por suas causas eficientes, sem qualquer necessidade de uma causa final. Esta só aparece pelo sentido total do resultado último, que se estende para além da materialidade do fato mesmo.
Por exemplo, toda a sucessão causal de gestos que um marceneiro realiza para construir uma mesa tem de poder ser explicada pelas causas psicofisiológicas e processos mecânicos postos em movimento durante a operação. Se um só desses elementos falhar, a mesa não chegará a existir. Logo, a sucessão das causas eficientes não pode ser incompleta. Se dependêssemos disso para poder apostar numa causa final da mesa, jamais as mesas teriam qualquer finalidade ou utilidade. A finalidade -- portanto a intenção -- só se revela no sentido da forma final tal como este se revelará no uso que alguém possa vir a fazer da mesa. Este sentido evidentemente está para além da sucessão de gestos do construtor, portanto também além da operação total de construção da mesa. Nenhum exame das operações realizadas pelo marceneiro, bem como das transformações sofridas pela madeira durante essas operações, nos dirá jamais para que serve uma mesa ou o que o marceneiro tinha “em mente” ao construí-la. É verdade que o uso previsto determina a forma essencial da mesa; mas a conexão entre a forma essencial e a seqüência da construção é meramente acidental, já que há muitas maneiras de construir uma mesa. Logo, o conhecimento dessa seqüência, por si, não pode mostrar o propósito final senão a quem o conheça antecipadamente.
Se isso é assim para a simples fabricação de um artefato, quanto mais não o será para a totalidade operante da natureza universal!
No entanto, os evolucionistas não cessam de tentar completar a descrição em detalhes do processo originante dos seres da natureza, na esperança de suprimir as causas finais, e os anti-evolucionistas não cessam de buscar hiatos nesse processo, na esperança de salvá-las.
A dose de canhestrice filosófica necessária para se empenhar em qualquer dessas linhas de argumentação é formidável.
A rigor, seria inconcebível, metafisicamente, um mundo criado que mostrasse claramente, nos lineamentos da sua construção material, a prova da sua finalidade. A razão disto é simples. Nenhuma realidade concreta pode consistir somente de seus traços essenciais, reveladores da sua natureza. Tudo o que existe requer, para existir, a concorrência de um número ilimitado de acidentes que preparam, acompanham e sustentam sua existência. A possibilidade de localizar, na malha de acidentes, a linha nítida de uma “finalidade”, é praticamente nula. Sinais, indícios da finalidade, certamente existirão, mas sempre de mistura com uma massa obscura de acidentes fortuitos que ao menos parecerão desmenti-la e que a desmentirão mais ainda se, na esperança de encontrá-la, revirarmos cada um em busca de descobrir as causas eficientes que os produziram; pois nada acontece sem causa eficiente e a descoberta das causas eficientes que produziram os acidentes pode prosseguir indefinidamente, sem que jamais se reconstitua a lógica do todo.
Por exemplo, a execução de uma sinfonia consiste de uma grande número de gestos corporais e efeitos mecânico-acústicos que, rastreados um a um, dissolverão cada vez mais a forma final da sinfonia num caos de processos fisiológicos e físicos nos quais será impossível encontrar o menor sinal de uma “idéia musical”. É deplorável o esforço com que os anti-evolucionistas se empenham em demonstrar a existência da Quinta Sinfonia de Beethoven mediante a revelação de hiatos causais na fisiologia dos músicos e na mecânica dos instrumentos. É grotesco o ar de triunfo com que os evolucionistas, preenchendo esses hiatos, crêem ter demonstrado a inexistência de Beethoven.
Nem o evolucionismo nem o anti-evolucionismo são teorias científicas, porque nenhum dos dois pode ser validado ou impugnar o outro exceto por uma acumulação ilimitada de provas e contraprovas.
A discussão só prossegue porque é possível alguém conhecer muita biologia ignorando ao mesmo tempo os princípios da lógica científica, enquanto seu adversário conhece muita teologia sem ter a menor idéia de quanto ela depende de pressupostos metafísicos.
O mesmo argumento, mais compactamente, foi apresentado no meu artigo “Evolução e mito”, publicado no Jornal da Tarde de 6 de maio de 2004:
“As discussões correntes sobre evolucionismo e criacionismo, ciência e fé, espiritualismo e materialismo, são em geral bem pobres de compreensão filosófica, em comparação com a riqueza de dados e argumentos que põem em jogo. Se eu metesse minha colher no assunto, seria apenas no intuito de chamar a atenção para algumas precauções básicas que têm sido aí bastante negligenciadas.
É que o ser humano só tem três linguagens para dar forma ao que apreende da realidade: o mito, que expressa compactamente impressões de conjunto; a ciência experimental, que descreve e explica grupos particulares de fenômenos segundo um protocolo convencional de métodos e aferições; a filosofia, que faz a transição entre as duas anteriores. Qualquer conhecimento satisfatório das origens escapa necessariamente às possibilidades da ciência, já que a descoberta delas seria apenas mais um capítulo do mesmo processo cósmico que se pretende explicar e não um miraculoso arrebatamento da mente científica para fora e para cima do processo. Um evolucionismo conseqüente teria de explicar-se a si mesmo como etapa da evolução, mas para isso seria forçado a abdicar da pretensão de veracidade literal e consentir em ser apenas mais um símbolo provisório depois de tantos, sujeito, como todos eles, a converter-se no seu contrário mais dia menos dia. A única verdade do evolucionismo é a de uma contrapartida dialética do criacionismo, assim como nenhum criacionismo pode existir sem deixar aberta alguma brecha evolucionista.
(...) Tanto o evolucionismo quanto o criacionismo são mitos, isto é, narrativas analógicas, insinuações finitas de um conteúdo infinito, separadas do seu sentido por um hiato tão imensurável quanto esse mesmo sentido.”
Olavo de Carvalho

terça-feira, 3 de maio de 2011

O BIG BANG E A GRANDE QUESTÃO: UM UNIVERSO SEM DEUS



Até o início do século XX, os astrônomos contemplavam três possíveis modelos do universo:

1º modelo: O universo poderia ser estático. De acordo com essa teoria, embora as atrações gravitacionais mútuas das estrelas mantivessem-nas unidas na forma de sistemas solares e de galáxias, cada um desses grupos de estrelas e planetas deslizariam pelo espaço ao longo de sua própria trajetória randômica, sem nenhum vínculo com os cursos traçados pelos outros grupos estelar-planetários. O modelo estático satisfaz tanto ateus quanto fiéis: semelhante universo poderia ter sido criado por D’us em algum ponto da história, mas também poderia estar existindo desde sempre sem D’us.

2º modelo: O universo pode estar oscilando. Como um balão cósmico, ora se expandiria, ora se contrairia, alternadamente. Por alguns bilhões de anos inflaria, até se tornar um nada absoluto. Mas a atração gravitacional de cada estrela e planeta atuando entre si eventualmente desaceleraria esta expansão, até que todo o processo se invertesse. O balão voltaria, então, a se retrair sobre si mesmo. Tudo que existisse eventualmente iria concentrar-se no centro do universo. Imediatamente em seguida, colossais quantidades de calor e luz seriam emitidas, tudo voltaria a ser relançado em todas as direções e assim a fase de expansão se reiniciaria uma vez mais. Tal universo também poderia ter sido criado por D’us ou poderia estar existindo desde sempre sem D’us.

3º modelo: Finalmente, o universo poderia ser aberto. Seria como um balão cósmico que nunca implode. Se a atração gravitacional total de todas as estrelas e todos os planetas não conseguisse interromper a expansão inicial, como no modelo oscilatório, o universo se esvairia num nada, para sempre. Eventualmente, as estrelas se extinguiriam e uma cortina de escuridão gelada encobriria tudo o que existisse. Semelhante universo nunca voltaria à vida. Teria existido num dado momento da história, resplandeceria gloriosamente por algum tempo e acabaria numa noite irrevogável.

Em suma, o último modelo propõe que, antes da explosão original, toda a matéria e a energia do universo estavam contidas numa singularidade, isto é, em um minúsculo ponto, estável no espaço por uma eternidade, antes que subitamente explodisse. Este modelo propõe o seguinte paradoxo: objetos em repouso - como a singularidade inicial mencionada acima - continuam assim até sofrerem a interferência de uma força externa; não obstante, visto que o ponto inicial continha toda a matéria e toda a energia primordial, nada (ao menos, nada que fosse natural) teria existido fora dessa singularidade que poderia tê-la levado a explodir. A resolução mais simples deste paradoxo é propor que algo sobrenatural desencadeou a existência do universo. O modelo de um universo aberto subentende, portanto, um Criador sobrenatural - ou seja, um D’us.

Em 1916, Albert Einstein divulgou os primeiros esboços de sua Teoria Geral da Relatividade, levando a comunidade científica à loucura. Parecia que Einstein havia revelado os segredos mais recônditos do universo. Suas equações também causaram alguns problemas - como dilemas técnicos e empecilhos matemáticos - mas nada que interessasse aos jornais e revistas voltados a temas científicos para o grande público.

Dois cientistas notaram os impasses. Em fins de 1917, o astrônomo dinamarquês Willem de Sitter analisou a relatividade geral e enviou a Einstein um relato detalhado, em que resumia o problema e propunha uma solução radical: a relatividade geral funcionaria apenas se todo o universo estivesse explodindo em todas as direções a partir de um ponto central. Einstein nunca respondeu às críticas formuladas por de Sitter. Posteriormente, em 1922, o matemático soviético Alexander Friedmann derivou de forma independente a solução encontrada pelo dinamarquês. Se Einstein estivesse certo, predisse Friedmann, o universo deveria estar expandindo-se em todas as direções, em alta velocidade.
esse ínterim, do outro lado do oceano, o astrônomo norte-americano Vesto Slipher conseguiu testemunhar o movimento expansivo do universo. Valendo-se do poderoso telescópio no Observatório Lowell, em Flagstaff, Arizona, Slipher descobriu que dezenas de galáxias estavam, de fato, rapidamente se deslocando de um ponto central.

Entre 1918 e 1922, de Sitter, Friedmann e Slipher compartilharam, cada um por si, suas descobertas com Einstein mas, estranhamente, este resistiu à solução encontrada pelos colegas acadêmicos - como se, em seu brilhantismo, ele tivesse se dado conta das implicações teológicas de um universo em expansão. Einstein chegou a escrever uma carta para o Zeitschriff für Physik, um prestigioso periódico técnico, qualificando de “suspeitas” as sugestões de Friedmann. E, para Sitter, Einstein escreveu a seguinte nota: “Esta circunstância [de um universo em expansão] me irrita”. Numa outra nota, Einstein assegurou a um de seus colegas: “Ainda não sucumbi a pregadores”, numa referência velada aos três pesquisadores.

Em 1925, o astrônomo norte-americano Edwin Hubble deu um golpe fatal no modelo estático do universo. Valendo-se do, à época, maior telescópio do mundo, Hubble revelou que todas as galáxias dentro de um raio de 6 x 1017 milhas de distância da Terra estavam retrocedendo. Einstein tenazmente recusou-se a aceitar o trabalho de Hubble. O gênio alemão continuou a ensinar o modelo estático por cinco anos, até que, a pedido de Hubble, foi de Berlin a Pasadena para pessoalmente examinar as evidências. Ao final da viagem, Einstein admitiu com relutância que “as novas observações feitas por Hubble [...] levam a supor que a estrutura geral do universo não é estática”. Einstein faleceu em 1955. Se bem que tivesse chegado a reconsiderar o assunto, jamais se convenceu inteiramente de que o universo se estaria expandindo.

Dez anos mais tarde, em 1965, Arno Penzias e Robert Wilson calibravam um supersensível detetor de microondas, nos Laboratórios da Bell Telephone, em New Jersey. Onde quer que os dois cientistas mirassem o instrumento, este pegava o mesmo ruído de fundo, não identificável - um zunido contínuo de três graus Kelvin (3K). Descon-fiados, os dois consultaram um artigo sobre a relatividade geral escrito por um aluno de Alexander Friedmann. O artigo predizia que os remanescentes da explosão mais recente do universo seriam detectáveis na forma de uma fraca radiação de microondas, “cerca de 5K ou aproximadamente”. Os dois cientistas perceberam que tinham descoberto o eco da maior explosão da história: o assim chamado Big Bang. Em reconhecimento a sua descoberta, Penzias e Wilson receberam o Prêmio Nobel.

A descoberta do “zunido 3K” abalou ainda mais o modelo estático de universo. Só restavam dois modelos: um que carecia de D’us e outro que não. A questão derradeira a ser esclarecida era a seguinte: o universo primordial tinha explodido infinitas vezes (o modelo oscilatório) ou apenas uma vez (o modelo aberto)? Os estudiosos sabiam que isso poderia ser resolvido determinando-se a densidade média do universo. Se o universo contivesse o equivalente a cerca de um átomo de hidrogênio por dez pés cúbicos de espaço, a atração gravitacional entre todas as partículas do universo seria portanto forte o suficiente para parar e reverter a expansão. Eventualmente, haveria o Big Crunch, que propiciaria outro Big Bang (e depois mais um outro Big Crunch e assim por diante). Se, por outro lado, o universo contivesse menos do que esta densidade, a força explosiva do Big Bang su-peraria todas as atrações gravitacionais, e tudo expandiria até um nada absoluto, para todo o sempre.

Curiosamente, o abandono do modelo estático gerou pânico entre muitos membros da comunidade científica. Matemáticos, físicos e astrônomos uniram-se para comprovar a eternidade do universo. O Dr. Robert Jastrow, talvez o maior astrofísico da época, além de diretor do Instituto Nacional de Administração Aeronáutica e Espacial do Goddard Center for Space Studies, foi designado coordenador geral de um projeto de pesquisa a respeito. Por quinze anos, Jastrow e sua equipe tentaram demonstrar a validade do modelo oscilatório. Os dados, contudo, indicavam uma outra história. Em 1978, Jastrow emitiu o relatório definitivo da NASA, chocando o público ao anunciar que o modelo aberto provavelmente seria correto. No dia 25 de junho do mesmo ano, Jastrow divulgou suas descobertas no New York Times Magazine. Em suas palavras:

“Este é um desenlace extraordinariamente estranho, inesperado para todos exceto os teólogos. Estes sempre aceitaram a palavra da Bíblia: ‘No princípio, D’us criou o céu e a terra.’ [...] [Mas] para o cientista que é movido por sua fé no poder da razão, a história termina como um pesadelo. Este escalou as montanhas da ignorância; está na iminência de conquistar o cume mais elevado; [e] ao atingir o último lance, ele é recebido por um bando de teólogos que lá já estavam há séculos".
Em 1983, o Dr. James Trefil, físico da University of Virginia, confirmou de maneira independente a descoberta de Jastrow. Três anos mais tarde, em 1986, os Drs. John Barrow, astrônomo da University of Sussex, e Frank Tipler, matemático e físico da Tulane University, publicaram resultados semelhantes. No encontro da American Astronomical Society de 1990, o Professor John Mather, da Columbia University, e também um astrofísico do Goddard Center da NASA, apresentou “o apoio mais drástico até o momento” a um universo aberto. Segundo o repórter do Boston Globe que cobria a conferência, a apresentação de Mather recebeu aplausos retumbantes, o que levou o coordenador do encontro, Dr. Geoffrey Burbridge, a comentar que: “Tudo indica que a audiência está a favor do livro da Gênese - pelo menos do que diz respeito ao primeiro verso, que parece confirmado.”

Em 1998, os Drs. Ruth Daly, Erick Guerra e Lin Wan, da Princeton University, anunciaram à American Astronomical Society: “Podemos declarar com 97,5% de certeza que o universo irá se expandir para sempre”. Ainda naquele ano, o Dr. Allan Sandage, astrofísico de reputação mundial pertencente ao Carnegie Institution of Washington, foi citado no The New Republic por causa da seguinte declaração: “O Big Bang é melhor entendido como um milagre acionado por alguma espécie de força transcendental”. Já o colunista da Newsweek, George Will, iniciou seu artigo de 9 de novembro de 1998 com este chiste: “Logo, grupos como o American Civil Liberties Union [“União das liberdades civis norte-americanas”] ou o People for the American Way [“Pessoas em prol do estilo norte-americano], ou alguma facção similar de secularismo litigioso, irá processar a NASA, com base na acusação de que o Telescópio Espacial Hubble apóia inconstitucionalmente aqueles com tendências religiosas”. No mesmo ano, a Newsweek anunciou uma mudança de opinião recente e inesperada entre agnósticos, até há pouco convictos. Em certo trecho, reportava que “Quarenta porcento dos cientistas norte-americanos agora acreditam num D’us pessoal - não apenas um poder ou uma presença inefável no mundo, mas uma deidade a quem podem dirigir suas preces - Lawrence Kelemen publicou os livros Permission to Believe: Four Rational Approaches to God’s Existence (Targum/Feldheim, 1990) e Permission to Receive: Four Rational Approaches to the Torah’s Divine Origin (Targum Press, 1996). O presente ensaio, a propósito, é uma versão extremamente abreviada do argumento cosmológico. O autor estudou na University of California, Los Angeles, na Yeshiva University of Los Angeles e na Harvard University. Kelemen também foi instrutor de esqui junto à Mammoth Mountain Ski School, na Califórnia, assim como diretor de notícias e âncora na estação de rádio KMMT-FM. Atualmente, ensina filosofia judaica medieval e moderna no Neve Yerushalayim College of Jewish Studies, em Jerusalém.

Ciência e Religião: um encontro mais que desejado!

Um grande abismo surgiu no século XX separando a ciência e a religião. Aprendemos a observar o mundo e nele agir segundo dois paradigmas fundamentais, mas completamente separados. O paradigma científico tornou-se identificado com o domínio da objetividade, da ação planejada; interações baseadas em modelos formais, abstratos, matemáticos, mas de altíssimo valor operacional, funcional e, principalmente, tecnológico. No mundo científico, os mais abstratos pensamentos humanos encontram aplicabilidade na nossa vida cotidiana. Vamos tomar um caso exemplar, a luz polarizada ou o raio laser. Estes fenômenos foram conhecidos pelos físicos no princípio do século XX; já no final deste mesmo século, o laser tornou-se tecnologia popular: entretenimento musical, os Cd’s, armazenamento de dados em computadores caseiros, PC’s, e mesmo nas cozinhas com facas super amoladas. Na medicina o conceito de cirurgia transformou-se rapidamente: o raio laser permite uma intervenção infinitamente menos agressiva sendo o responsável pelo prolongamento de muitas e muitas vidas.

Para muitos adeptos da ciência, cientistas e simpatizantes, a ciência com seus mirabolantes resultados é o caminho da verdade. Fora do domínio científico está o obscurantismo e o irracionalismo.

Por outro lado, há o mundo da religião com milênios de existência, e através dele os seres humanos aproximam-se do mundo divino, e desenvolvem assim sua interioridade e sua espiritualidade. O mundo da religião não oferece os aspectos práticos e pragmáticos da ciência. Há nele muito mais inspiração do que pura dedução. Há profetas e profetisas que atingem um diálogo espiritual com distintos níveis da divindade. Estas não são as experiências objetivas que a ciência reproduz operacionalmente nos laboratórios espalhados pelos cinco continentes. Mas não é por estas diferenças que Igrejas, Sinagogas, Mesquitas e Templos diversos deixam de se espalhar igualmente por todo o planeta. Se a ciência pode prolongar nossas vidas através de aplicações tecnológicas, como no caso do raio laser, o domínio da religião vem representando uma forte base para que os seres humanos encontrem conforto e equilíbrio espiritual para também prolongarem suas vidas.

Há religiosos adeptos da ciência mas que nela reconhecem apenas uma dimensão humana e pragmática. Crêem que a verdade está na religião e que na ciência temos apenas bons resultados operacionais. Outros religiosos chegam a não reconhecer qualquer validade na ciência, considerando-a inimiga da religião.
Na tradição judaica encontramos uma adesão simultânea aos domínios da ciência e da religião. Grandes exemplos não faltam em nossa história e talvez o maior de todos seja o grande sábio espanhol Maimônides, médico e rabino que acreditava simultaneamente na ciência e na religião. Nesta tradição, em termos mais contemporâneos, podemos também citar o também médico e rabino Abraham Twerski, que recentemente visitou o Brasil, e mostrou como podemos e devemos utilizar simultaneamente ciência e religião para enfrentar grandes desafios da vida contemporânea. O artigo que apresentamos na seqüência exemplifica os esforços atuais para aproximar a ciência e a religião, abortando um tema fundamental, a origem do Universo. O artigo insere-se num amplo debate em que conhecimento religioso e conhecimento científico convergem para nos auxiliar na compreensão da grande obra da natureza. Aprendemos que pode haver muito mais concordância entre conhecimento científico e a Sagrada Torá do que normalmente se supõe.

José Luiz Goldfarb
Diretor de Cultura Judaica – ‘A Hebraica’
Professor de Estudos Pós-graduados em História da Ciência PUC-SP