terça-feira, 27 de novembro de 2012

Entrevista de Clifford Geertz




A Mitologia de um Antropólogo

Entrevista de Victor Aiello Tsu com Clifford Geertz
originalmente publicado na Folha de São Paulo de 18 de fevereiro de 2001

O aumento na quantidade de comunicações e a maior integração entre os seres humanos não necessariamente tornou a vida mais fácil. Para o antropólogo norte-americano Clifford Geertz, 74, um dos principais deveres dos antropólogos (e do cientista social de maneira geral) neste início de século é tentar fazer com que as diversas sociedades (que são cada vez mais complexas e envolvem cada vez mais pessoas) sejam capazes de atingir algum entendimento entre si. Essa é uma das mais relevantes lições do autor de "Nova Luz sobre a Antropologia", livro que está sendo lançado no Brasil nesta semana pela editora Jorge Zahar e reúne desde ensaios críticos à antropologia contemporânea até reflexões autobiográficas.
Com 18 livros publicados, Clifford Geertz é, depois de Claude Lévi-Strauss, provavelmente o antropólogo cujas idéias causaram maior impacto após a segunda metade do século 20, não apenas para a própria teoria e prática antropológicas, mas também fora de sua área, em disciplinas como a psicologia, a história e a teoria literária. Ele é considerado o fundador de
uma das vertentes da antropologia contemporânea a chamada antropologia hermenêutica ou interpretativa. Para o autor (que se graduou em filosofia e inglês antes de decidir ser antropólogo) este volume é uma oportunidade de, no fim de sua carreira, "montar sua própria lenda antes que outros o façam". Clifford Geertz obteve seu PhD em antropologia em 1956 e desde então conduziu extensas pesquisas de campo que deram origem a livros escritos essencialmente sob a forma de ensaio. Suas pesquisas ocorreram na Indonésia e no Marrocos. Foi o descontentamento com a metodologia antropológica disponível à época de seu estudo, que lhe parecia excessivamente abstrata e de certa forma distanciada da realidade que encontrou em campo, que o levou a elaborar um método novo de análise das
informações obtidas entre as sociedades que estudava. Seu primeiro estudo tinha por objetivo entender a religião em Java. No final, foi incapaz de se restringir a apenas um aspecto daquela sociedade _que ele achava que não poderia ser extirpado e analisado separadamente do resto, desconsiderando, entre outras coisas, a própria passagem do tempo. Foi assim que ele chegou ao que depois foi apelidado de antropologia hermenêutica.
Essa vertente, crucial para o desenvolvimento da contemporânea _e às vezes chamada pós-moderna antropologia de matriz norte-americana, é um estudo que pretende entender "quem as pessoas de determinada formação cultural acham que são, o que elas fazem e por que razões elas crêem que fazem o que fazem". Uma das metáforas preferidas para definir o que faz a antropologia interpretativa é a da leitura das sociedades como textos ou como análogas a textos. A interpretação se dá em todos os momentos do estudo, da leitura do
"texto" cheio de significados que é a sociedade à escritura do texto/ensaio do antropólogo, interpretado por sua vez por aqueles que não passaram pelas experiências do autor do texto escrito.
Na entrevista a seguir, Geertz fala do panorama da antropologia atual, daquilo que ele vê como o dever do antropólogo tanto hoje quanto no futuro, dos limites da interpretação e de como a onda de globalização estaria afetando as diversas culturas.
O que o sr. acha que o futuro reserva aos antropólogos? Na introdução de seu livro, o sr. diz que está cada vez mais difícil sobreviver à base de antropologia, as coisas não são mais como eram. Qual é o campo de trabalho da antropologia?
Bem, não é bem que não dá para sobreviver com a antropologia, acho que os antropólogos estão sobrevivendo bem, mas está ficando mais difícil porque tudo está ficando mais complicado. Nós lidamos com uma gama maior de sociedades, não apenas as chamadas sociedades simples. Lidamos com sociedades grandes, como a Índia, o Brasil, o que torna as coisas mais complexas do que quando nós ficávamos restritos a apenas povos tribais.
Em segundo lugar, o mundo é agora muito mais integrado e desenvolvido, logo tudo é conectado a tudo o mais de forma bastante complicada. Além disso, há muito mais pessoas trabalhando nessas áreas, em que antes costumávamos trabalhar sozinhos. Ninguém mais estava muito interessado nos povos que estudávamos, mas hoje todos estão. Isso faz com que a antropologia seja muito mais do que a soma das coisas, em um sentido, mas muito mais difícil de buscar realizar, em outro. Mas qual seria o dever dos antropólogos?
Não creio que possamos fazer muito mais do que seguir do jeito que estamos e continuar a pensar no que estamos fazendo e qual a nossa contribuição particular_o tipo de contribuição que a antropologia pode de fato dar eficazmente. A antropologia não pode mais ser uma ciência completamente geral, que estuda tudo, que diz estudar o "Homem". Ela tem que perceber qual é, em um lugar como a Índia, ou a Indonésia, ou o Marrocos, ou o Brasil,
o seu papel particular em interpretar o que ocorre _isso ao lado de outras disciplinas, como economia, política, história, literatura. Tudo isso deve ser levado em consideração, e a antropologia deve encontrar seu lugar e sua contribuição em meio a esses outros campos.
Como o sr. se envolveu com a antropologia?
Eu fiz faculdade depois da guerra, depois da Segunda Guerra Mundial, e estudei inglês e filosofia por uns tempos. E então, quando decidi fazer a pós-graduação, um de meus professores sugeriu que eu poderia me interessar por antropologia, em particular a que estava então sendo ensinada em Harvard, porque em Harvard estava sendo ensinada como parte de um departamento multidisciplinar, chamado relações sociais. Nesse departamento,
estavam reunidas as disciplinas de antropologia, sociologia, psicologia social e psicologia.
Então eu fiz isso e foi assim que entrei para a antropologia.
O sr. acredita que a antropologia cultural, a chamada antropologia hermenêutica, pode ser considerada uma ciência?
Claude Lévi-Strauss diria que o tipo de antropologia praticada pelo sr. não é antropologia, e sim etnografia.
Devo dizer que não sou da mesma categoria que Claude, mas não acho essa questão particularmente importante. Não me importa se ele a chama de ciência ou não, eu mesmo acredito que seja, mas isso depende do que significa "ciência". Lévi-Strauss certamente está certo ao dizer que a antropologia cultural não segue o mesmo modelo que as ciências naturais, mas eu acredito que seja empírica, sistemática, tente desenvolver argumentos que possam ser ao menos confrontados com provas. Ela vai atrás de um objetivo mais ou menos específico... Por isso não vejo motivo para não chamá-la de ciência, mas concordo que não como a física ou a química etc. Porém não vejo por que compará-la à física. Eu mesmo não acho que a questão de como chamá-la seja tão importante. Então, para ela ser vista como ciência, não é necessário que a chamemos de ciência. Suponho que não. É, não precisa. Eu costumo fazê-lo, bem, por questões políticas.
Parafraseando Max Weber, a antropologia, tanto em campo quanto na academia, é uma vocação?
Com certeza é uma vocação para mim, tem sido assim nos últimos 50 anos. Espero que continue a ser, sim, é um compromisso, é mais do que um simples trabalho ou um lugar para se receber um salário. Eu tento, suponho, melhorar as comunicações entre as pessoas, a compreensão entre as pessoas. Portanto acredito que seja uma vocação. Nem todos na antropologia estão comprometidos com ela como se fosse uma vocação, mas os melhores
estão. Quais são os limites da interpretação? Se a cultura é um texto _ou análoga a um texto, e o antropólogo escreve um texto, e o leitor lê o texto e o interpreta também e isso vai em frente... Quais são os limites?
Bem, não sei, acho que você pára de interpretar quando não tem mais o que dizer. Por exemplo, eu vou e escrevo sobre Bali ou Java, talvez você leia, pense sobre o que significa no contexto daquilo que você está fazendo. E, após um tempo, não há muito mais a ser dito, quer dizer, nada muito mais interessante aparece, você pega o que pode e então segue em frente. Acho que a corrente de texto depois de um tempo se entrega, porque tudo o que
sabemos de importante ou interessante já foi dito, ao menos naquela linha em particular, não como um todo, mas nessa linha, sim. Então as coisas são abordadas de modo diferente, e vai-se em frente com isso. Não creio que haja um ponto final óbvio que diga exatamente onde é o fim da interpretação, mas, depois de um tempo, depois de 4.000 discussões acerca da briga de galos, quem sabe baste.
Mas é interessante, porque um estudante de antropologia brasileiro, lendo o ensaio sobre a briga de galos balinesa, terá uma visão completamente diferente da de um estudante de antropologia balinês, que terá uma visão diferente da do sr. quando escreveu o ensaio. Cada um está fazendo a sua própria interpretação. Bem, mas a decisão é pessoal. Uma coisa interessante a fazer seria confrontar as leituras balinesas do texto com as brasileiras.
Poderia nos ser útil, na verdade não faço idéia, depende do que sairia disso. Mas costumo adotar uma visão a posteriori das coisas. Deve-se tentar primeiro e depois ver se vale a pena. Não podemos prever o que será útil e o que não o será.
Como se pode escapar do niilismo na interpretação?
Eu não vejo qual é o papel do niilismo. Se você fosse niilista, nem começaria a interpretar.
Não tentaria ao menos começar a entender os outros. Acho que há uma diferença entre o niilismo e uma simples ausência de certeza. É verdade que quase todas as interpretações antropológicas tenham por fim um resíduo de incerteza, de vagueza, indeterminação, contingência. Mas isso não é niilismo, isso é o modo como o mundo é. Se você for realmente um niilista, não se importará com nada, não tentará buscar compreender nada, não interpretará nada. Não escreveria _ao menos eu não vejo razão para que escrevesse_
um longo livro sobre coisa nenhuma.
Seu novo livro tem um capítulo intitulado "Anti Anti-Relativismo". Diante das duas atitudes dominantes na antropologia _defesa de um relativismo quase absoluto e defesa de uma moral ou "natureza humana anterior a qualquer análise antropológica", onde exatamente o sr. se situa?
Como eu disse, sou um anti anti-relativista, mas acredito que essa posição seja mais comum aqui nos Estados Unidos do que imagino que seja no Brasil, embora eu não tenha certeza.
Aqui nos EUA faz parte do movimento neoconservador puxar a carta do relativismo contra, bem, essencialmente contra a esquerda, contra liberais etc. O que dizem é que, a menos que você se agarre a certas verdades absolutas, de certo tipo, você não pode acreditar em nada, não pode fazer nada, agir etc., e eu obviamente me oponho a essa visão. Acho que é possível agir sob a incerteza, é possível agir sob o indeterminável, porque este é o modo
como todos nós vivemos.
Qual é a sua perspectiva quanto aos rumos atuais da globalização, essa moda de
globalização que está tomando conta do mundo? Como isso afeta as culturas?
Nos últimos capítulos do meu livro eu falo sobre o que é o padrão, ao menos o que acredito que seja um padrão. Ao mesmo tempo em que há muita comunicação e integração em nível
mundial e uma ordem neoliberal geral, simultaneamente ocorre uma reação contra isso, que busca aumentar auto-expressões culturais. Acho que devemos usar esse paradoxo para entender exatamente o que acontece. Não me parece que nem a idéia de o mundo inteiro estar meio que subsumido em uma única hegemonia nem a noção de "cada um é seu próprio eu" se imporão. Não sei bem o que dizer sobre a globalização como processo, a globalização é um fato, está ocorrendo, o gado atravessa o mundo, há muita comunicação
etc., mas não acho que isso ocorra sem paralelos, sem outros movimentos em direções opostas.
Então o sr. não concorda que a globalização seja um movimento avassalador de culturas "menores"?
Não, na verdade, não concordo. Bem, não sei como tudo isso terminará quem é que sabe isso? Mas o que eu sinto é que essas culturas são realmente fortes e, em certo grau, são estimuladas pela própria globalização a se tornarem ainda mais fortes. Não creio que elas serão esmagadas, embora muita gente ache que sim.
O sr. tem uma visão otimista do futuro...
Não diria que é uma visão otimista, mas que ao menos esse tipo de pessimismo não é omeu. Tenho meu próprio tipo de pessimismo, que não é esse.
E qual é o seu tipo de pessimismo?
Eu não tenho, estava brincando. Eu não acho que o mundo esteja prestes a se tornar, por completo, um tipo de hegemonia neoliberal baseada nos Estados Unidos. Há certamente pessoas que querem isso e alguns cientistas em alguns lugares que dizem que isso acontecerá, mas creio que há vários motivos para questionar isso. Não acredito que o neoliberalismo vá subjugar todo o mundo. Bem, temos que ver, temos que esperar a história e ver.
Existe algum episódio de seu trabalho de campo que o sr. recorde como
particularmente interessante?
Fiz muito trabalho de campo e sempre me diverti muito com ele. O primeiro de todos, ir por dois anos e meio a Java, foi bem excitante. Depois fui para Bali por um ano e depois para o Marrocos por vários anos. E então estive de volta a Java, a Bali, ao Marrocos... O trabalho de campo foi seguramente um dos pontos altos da minha vida.
Gostaria que o sr. contasse um caso específico, uma história anedótica...
Escrevi sobre praticamente todos os eventos anedóticos que me aconteceram, é difícil me lembrar de algum específico agora. O trabalho, depois de feito, quando olhamos para ele, é semi-autobiográfico, ao menos em parte. E no meu trabalho eu já contei uma série de histórias, coisas que me aconteceram: ter sido surpreendido em plena guerra civil na Sumatra, ter-me envolvido com certas pessoas no Marrocos...
Até que ponto a sociedade a que se pertence e aquela na qual se faz o trabalho de campo influem no trabalho dos antropólogos?
Não há dúvida quanto a isso, todos nós somos, como se diz hoje, "observadores situados".
A única coisa que se pode fazer a respeito é ter a maior consciência possível desse fato e pensar nisso, não assumir que o modo como vemos as coisas é o modo como as coisas simplesmente são, mas entender. Sim, obviamente, um antropólogo norte-americano ou um brasileiro ou um francês verão as coisas de uma maneira algo diferente, e uma das razões é o contexto cultural do qual eles vêm, do qual extraem suas percepções e seus princípios.
Não há nada de errado nisso, é inevitável, o erro ocorre quando as pessoas não se conscientizam disso e simplesmente assumem que qualquer sensação que têm não precisa ser confrontada com a realidade. Claro, não há nada semelhante a um observador totalmente neutro e abstrato. Isso não é tão fatal quanto pode soar, só significa que é preciso pensar sobre de onde as pessoas vêm, onde elas estão trabalhando etc.
E o que o sr. pensa a respeito do atual movimento chamado "pós-moderno" na antropologia?
Freqüentemente não se sabe bem de que se trata quando se fala em pós-moderno. Não me considero um pós-moderno no sentido estrito, mas acredito que os pós-modernos estão apresentando questões interessantes que precisam ser confrontadas até por aqueles de nós que possivelmente não estão muito enamorados das respostas dadas por eles quanto poderiam estar. Mas as questões que eles trazem e as preocupações que eles têm são
todas bem reais, e essas questões e preocupações exigem algum tipo de resposta. Se a resposta que é usualmente associada ao pós-modernismo, que é uma visão descentrada e altamente relativa das coisas, é a resposta ideal, eu não tenho certeza, mas acho que os pós-modernos devem ser tomados como positivos para a construção da teoria antropológica.
Eles contribuíram muito, criticamente, fizeram com que algumas posições e argumentos se mostrassem simples demais para serem mantidos e também trouxeram o tipo de pergunta que você fez momentos atrás sobre a influência da sociedade de alguém na percepçãodesse alguém etc. Foi esse tipo de coisa, entre outras, que nos foi trazido pelos pós-modernos.
Um monte de outros problemas com relação à escrita, com relação à retórica,
com relação à questão da prova etc., como nas ciências naturais, tudo isso vem à tona, ao menos em parte, devido à crítica pós-moderna. Então, como crítica, acredito que tenha tido um valor significativo, mas, como força positiva e construtiva, sou um pouco mais cético.
Quais são os seus planos para o futuro? O sr. pensa em escrever mais um livro?
Não sei, não estou escrevendo um agora, tenho que escrever alguns ensaios e tenho quedar algumas palestras, mas tenho 74 anos, então... Você sabe, nesta altura a gente pensa no futuro de um modo diferente. Não sei, talvez escreva algo, mas no momento não estou trabalhando em um livro, estou trabalhando bem, escrevo resenhas, tenho que falar com algumas pessoas no mês que vem e coisas do gênero. Tenho que tentar cumprir algumas promessas que fiz antes e não pude cumprir enquanto estava escrevendo livros. Mas eu posso eventualmente voltar a escrever. Veremos. Quando se toca de ouvido, quem sabe?

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A violência e o sagrado - René Girard





Em Violência e o Sagrado, tradução brasileira do original La Violence et le Sacré, o antropólogo René Girard integra a sua teoria do desejo mimético anteriormente desenvolvida com seus estudos sobre o sacrifício ritual nas sociedades antigas, buscando desenvolver uma teoria compreensiva do sacrifício humano em tais sociedades.
Girard inicia o livro demonstrando o duplo aspecto das vítimas expiatórias. Elas são a um só tempo tratadas como seres sagrados e criminosos. Isto é assim porque representam nestas sociedades o papel de válvula de escape dos impulsos violentos acumulados no interior da mesma. Ela é vítima substitutiva: sobre ela seus verdugos despejam todo ódio e sede de violência que carregam, aliviando-se e livrando a sociedade de possíveis conflitos. Assim, para Girard, o sacrifício ritual, presente invariavelmente em todas as culturas primitivas e antigas, mesmo na Grécia clássica, contra vítimas humanas ou animais, tem uma significação real e não meramente simbólica, pois serve para ?apaziguar as violência intestinas e impedir a explosão de conflitos.?
Uma sociedade está sempre sujeita a uma escalada de violência devido ao círculo vicioso de represálias. Tal já foi observado por etnólogos em sociedades primitivas. O surgimento de uma violência incontrolável no interior de uma sociedade ocorre normalmente nos momentos da crise sacrificial, ou seja, quando os sacrifícios rituais já não mais atuam eficientemente como válvula de escape dos impulsos violentos.
Para Girard os ritos sacrificiais bem como os mitos que os narram simbolicamente representam a forma de uma sociedade reviver o seu acontecimento fundador, o sacrifício não mais ritual, mas real e espontâneo de uma vítima expiatória. Aqui insere-se a teoria do desejo mimético. Conforme nos conta Girard, com fortes argumentos e amplo embasamento documental, o desejo mimético ( o desejo de ter o bem do outro) é inerente à natureza humana. Os homens desejam o bem e o ser do próximo invariavelmente, o que terminará por gerar a rivalidade mimética. O detentor do bem quererá defendê-lo mas, ao mesmo tempo, estimulará o desejo do outro pois o fato de o seu bem ser também desejado por outrem potencializa o valor do mesmo. Quando um irromper com um gesto violento o outro imediatamente revidará também por impulso mimético e assim se iniciará o blood feud, um rosário interminável de represálias que somente terminará com o sacrifício de uma vítima expiatória que trará de volta a paz à sociedade.
Para Girard, toda sociedade primitiva em seus primórdios experimentou o evento de uma crise de violência generalizada que ameaçava a sua própria existência e que findou com o sacrifício de uma vítima escolhida arbitrariamente sobre a qual foram despejado todos os ódios e desejos de vingança, restaurando-se a paz social e fundando-se a própria sociedade politicamente organizada. Os mitos narrariam figuradamente aqueles eventos, e dentre os mitos, Girard inclui não apenas as narrativas mitológicas, mas a tragédia grega e mesmo o Antigo Testamento. Nestes textos, Girard descobre a descrição figurada parcial ou total da rivalidade mimética, da escalada de violência e do sacrifício de vítimas expiatórias. A análise e comparação destes textos, bem como os subsídios científicos trazidos pelos estudos etnológicos e antropológicos, compõem a metodologia através da qual Girard chega às conclusões de seu trabalho. Assim Girard explica o sentido oculto de muitos dos textos das culturas primitivas e antigas: eles representam simbolicamente os horríveis eventos fundadores da sociedade que terminam no sacrifício da vítima expiatória.

Os ritos sacrificiais são invariavelmente encontrados nas sociedades primitivas e antigas. É válido lembrar aqui o exemplo do pharmakós grego, um pária que era mantido cativo para ser sacrificado em épocas de grandes crises e catástrofes, mesmo naturais, como se sua morte pudesse eliminar a crise ou a catástrofe, tal como,no acontecimento fundador da sociedade, o sacrifício da primeira vítima expiatória eliminou uma grave crise de violência. 
O rito serve assim para manter viva a memória do acontecimento fundador e para servir como um despejo de impulsos violentos. 
Quando o rito já não mais desempenha a sua função, surge a crise sacrificial que é muito bem representada pelo mito de Caim e Abel. Abel sacrifica os primogênitos de seu rebanho, portanto tem uma válvula de escape. Caim já não a possui, por isso não contém seus impulsos violentes e, movido pelo desejo mimético ou inveja pelo amor que Deus tem pelo seu irmão, mata Abel.
Não apenas os ritos e os mitos são explicados por Girard através de suas teorias do desejo mimético e do sacrifício, mas inúmeros costumes primitivos como o uso de máscaras, a repulsa ao sangue menstrual e aos gêmeos, e muitas das proibições ou regras de direito primitivas. 
A teoria de Girard, cujos dois pilares são os conceitos de desejo mimético e de sacrifício de vítimas expiatórias, constitui assim uma verdadeira teoria antropológica e sociológica geral, compreensiva de muitos fenômenos sociais e humanos. Assim, as teorias de Girard nos ajudam a compreender problemas do nosso próprio tempo tais como o racismo, o anti-semitismo ou o aborto. Afinal, a perseguição por motivos de raça ou a luta pela liberação do aborto não seriam formas de ressuscitar o velho mecanismo sacrificial, elegendo novas vítimas expiatórias de nossos ódios intestinos.
Numa etapa posterior de seu trabalho, a partir da obra ? Das Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo?, Girard explica como o mecanismo dos sacrifícios rituais foi perdendo importância e sendo eliminado das sociedades ocidentais por força do judaísmo e do cristianismo.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Texto passado no mestrado para análise e acho interessante compartilhar com os amigos.



REMÉDIO E VENENO[1]
Apontamentos sobre o poder curativo e destrutivo da religião

por Paulo Suess

Phármakon significa na língua de Sócrates “remédio” e “veneno”. Esta coincidência reflete, certamente, uma experiência profunda sobre a ambivalência dos objetos dos nossos desejos e a proximidade entre nossas virtudes e vícios. A experiência das religiões mostra, que elas também são um phármakon que pode favorecer e custar a vida. As religiões podem ser gratuitas, mas podem tornar-se também “religião do mercado” e manipuladoras do sagrado; podem ser um referencial para invocar a paz e para praticar a violência.
Compreensão e respeito entre culturas e religiões não são atitudes inatas. São adquiridas no decorrer de processos educativos, que pretendem transformar o olhar etnocêntrico – o etnocentrismo feliz - num olhar crítico que admite um ponto morto na própria maneira de ver o mundo. Na cegueira da própria casa, individual ou coletiva, pode-se esconder a barbárie como parceira da razão religiosa e como possibilidade do próprio projeto de vida.
Depois de umas rápidas pinceladas sobre a gênese do campo religioso (I) pretendo refletir sobre algumas encruzilhadas entre cristianismo e psicologia, sobre ambivalências e horizontes que podem, neste vai e vem entre dois saberes, maximizar o efeito “remédio” do cristianismo e minimizar o efeito “veneno”. Vejo três eixos de um interesse recíproco entre psicologia e religião: o princípio da realidade (II), a contribuição para as pessoas se tornarem adultas (III) e as ambivalências e perspectivas frente à “libertação do mal” (IV).

I. Introdução: um itinerário

No início das religiões está um narcisismo primário” das “religiões primeiras”. Amalgamadas com a natureza, com o campo sócio-político e cultural, sem diferenciação entre o campo das “crenças” e o campo “científico”, a religião, com certas fantasias de onipotência, tinha uma função determinante, em última instância. Até a emancipação da ciência do campo religioso e um tratamento leigo e democrático das religiões, portanto, sem hegemonia de uma ou outra religião ou crença, foi um longo caminho com voltas entre um mundo desencantado (Max Weber) e reencantado.

1) O discernimento mosaico

As “religiões primeiras” da humanidade eram religiões orais com cultos aos espíritos-ancestrais ou às divindades. Em algum momento na antiguidade, entre 800 e 200 a.C., e em vários lugares diferentes, se produziu uma ruptura nestas religiões. É o tempo dos pensadores ambulantes na China, dos ascetas na Índia e dos filósofos na Grécia. Na Palestina, surgiram os profetas Isaías, Jeremias e o Deutero-Isaías. Karl Jaspers cunhou para esta época a expressão “tempo axial” (JASPERS, 97ss). Este “tempo axial” forjou “religiões segundas” que até hoje coexistem com as “religiões primeiras”. As “religiões segundas” são religiões da escrita e do livro sagrado, religiões monoteístas que se agradecem, como o judeu-cristianismo, a um ato de fundação e revelação.
Estas novas religiões se emanciparam das forças da natureza, da pertença à tribo, ao Estado e à cultura local. E esta “emancipação” permitiu que as religiões ultrapassaram as fronteiras de um país e se tornaram missionárias até os confins do mundo. O ponto central deste surgimento das “religiões segundas” é o discernimento entre o Deus verdadeiro e os deuses falsos, entre a “verdadeira religião” e a “falsa religião”, entre ortodoxia e heresia, entre verdade e mentira. O ponto central desta transformação, que Jan Assmann chama o “discernimento mosaico” (Assmann, p. 11-18), é o discernimento entre o Deus verdadeiro e os deuses falsos, entre a verdadeira e a falsa religião, entre ortodoxia e heresia, entre fé e magia, entre verdade e mentira.
Este “discernimento mosaico” encontra-se com toda exatidão no primeiro e segundo mandamento (“Adorarás o Senhor teu Deus e o servirás”, e “Não pronunciarás em vão o nome do Senhor teu Deus”), na história do Bezerro de Ouro (Ex 32), no divórcio dos casamentos mistos (Esdras, 9) e na purificação do povo de “todo elemento estrangeiro” depois da volta da Babilônia (Neemias 13,30), na destruição dos templos pagãos e das sinagogas dos judeus.
O “discernimento mosaico” não admite mais “a verdade” como algo complementar ao lado de outras verdades. As verdades dos Outros não são simplesmente “outras verdades”. São idolatrias e mentiras. As “religiões segundas” conhecem pagãos, hereges, seitas, idolatria e magia para denunciar a não-verdade. O “discernimento mosaico”, uma herança fortemente presente no cristianismo, é a afirmação de uma verdade exclusiva. A Revelação, na tradição judeu-cristã, não é algo culturalmente adquirido, mas algo comunicado pelo próprio Deus e, no cristianismo, confirmado pelo próprio Filho de Deus que se encarnou na história. O cristianismo, que articula através da encarnação, a transcendência com a imanência, tem a noção mais ampla de universalidade.
Depois da experiência de guerras sangrentas por causa da verdade absoluta nas religiões, a modernidade, com seus eixos de esclarecimento, individualização e secularização produziu uma segunda separação entre cultura, política e religião, uma neutralidade e indiferença positiva e oficial, com a separação entre Igrejas, Credos e Estado, diante das afirmações de verdades religiosas. Agora, os mitos das respectivas religiões e suas práticas rituais e/ou sacramentais não pertencem mais a uma esfera do macro-culturalmente correto. Têm a sua vida própria entre exotismo e contestação, entre alienação e engajamento. O cultural e religiosamente correto, no interior de um determinado Estado, é o múltiplo e a diversidade, que afirmam a sua capacidade de uma convivência democrática.

2) Mundo da ciência e secularização

A emancipação da ciência do campo religioso aconteceu, muitas vezes, contra as religiões institucionalizadas. Esta trajetória tem dimensões cósmicas (Galileu, Copérnico), geográficas (Vasco da Gama, Colombo), biológicas (Darwin e a microbiologia de hoje), sócio-políticas (Marx) e psicológicas (Freud). Depois de uma fase de afirmação da identidade específica não só da religião, mas também das disciplinas e dos campos que dela se emanciparam, assiste-se hoje em vários cenários científicos – na bioética e na física quântica, por exemplo – a uma nova confraternização entre religião e ciência, sem constituir propriamente uma regressão ao status quo anterior. As chamadas ciências exatas já não estão mais tão convencidas de sua exatidão. As “exatas” que procuram a sua verdade em partículas e partes de células e unidades temporais cada vez menores, e o fiel que procura a sua verdade na abertura contemplativa ao todo, compreendem as suas aproximações à realidade cada vez mais complementares, semelhante à complementaridade entre exatidão e relevância. Pelo olhar simples e a medição das partículas, o observador muda o microsistema que ele observa. Quem exagera na exatidão perde, pela especialização e particularização, o contexto sócio-cultural que é importante para a compreensão da relevância para a estrutura holística da realidade (cf. Dürr). Entre a experiência subjetiva da religião e a experiência objetiva da ciência acontece um reencontro adulto.
Neste mundo, onde “nada existe” (Dürr), como dizem os novos físicos, mas tudo acontece num entremeio de uma relação infinita, são necessárias as contribuições recíprocas entre religião e ciência, entre exatidão e relevância, para banir o medo do vazio (horror vacui) diante de um espaço vazio que se abre cada vez mais e nesta abertura configura a vida sempre mais complexa. O fato da abertura do espaço cósmico e dos espaços da microfísica como condição da vida, recoloca também para os seres humanos e suas sociedades a questão das relações, da abertura e do porvir para o fundamento de sua saúde integral. Exatidão científica e relevância religiosa, ao trabalhar a abertura da vida em direções diferentes (imanência e transcendência), reconhecem mais e mais que não os separam muros demarcatórios de sua identidade, mas arbustos permeáveis, “sem confusão nem divisão” rigorosa dos campos.[2]
A emancipação da ciência com a sua racionalidade específica e a própria religião, no caso o cristianismo, voltada para as realidades terrestres, contribuíram para fazer emergir o que hoje chamamos de “mundo secularizado”. Mas, a parceria entre racionalidade e utilitarismo, entre materialismo e hedonismo não ganhou aquela força que se esperava para expulsar o pensamento mágico, mítico e religioso da face da terra. Assiste-se, hoje, a um retorno do reprimido ou negligenciado campo religioso, da religiosidade difusa, ao lado de um certo enfraquecimento das religiões institucionalizadas.
Também a volta e a “revanche do sagrado” (cf. CRUZ) acontece sob o signo do phármakon, do veneno, do placebo, do remédio. Os processos de modernização, de racionalização, secularização e democratização mudaram o mapa do mundo religioso cujas características mais marcantes são:
a)      Uma certa privatização do religioso afrouxou a pertença herdada a estruturas denominacionais e, por conseguinte, aumentou a circularidade entre adeptos de determinadas estruturas religiosas e credos.
b)      A emancipação do campo religioso do campo político-cultural favoreceu um pluralismo nunca dantes visto em países da cristandade.
c)      Uma autonomia hermenêutica que a ninguém permite a última palavra. As Igrejas perderam a sua autoridade significativa; podem impor signos sem controlar os significados. Sob signos uniformes se escondem múltiplos significados diferentes.
d)     Emergiu uma mística terapêutica que promete cura, sentido e bem-estar.
e)      Um utilitarismo milagreiro e mercantilista causa migrações constantes em busca do santo mais forte ou do padre-pastor mais hábil na animação de um auditório.

II. O princípio da realidade

Na tradição judeu-cristã, o sentido da religião pode ser interpretado como uma espécie de discernimento, de iluminação e/ou ilustração do caos cósmico, da opacidade da realidade e da confusão entre destino, acaso e providência na vida própria.
A primeira palavra de Deus que a Bíblia transmite no mito da criação, pode ser compreendida nesta perspectiva de discernimento, iluminação ou ilustração: “Faça-se a luz!” E a luz foi feita (Gn 1,3). Também o último milagre de Jesus, a cura do cego Bartimeu (cf. Mc 10,46-52), aponta para esta tarefa que hoje chamamos, aproximadamente, de auto-conhecimento e conscientização. A recuperação da vista não vem de fora. Ela está preparada dentro de cada um como possibilidade. Ao contar a sua história e expressar o seu desejo, o cego entra num processo de transformação que a Bíblia chama de “cura”. “Não sou eu que vai te curar”, é a resposta do Mestre, que se auto-denomina “luz do mundo” (Jo 8,12). “A tua fé te curou”. O Mestre não tira as dores da vida num ato mágico, mas abre a vida fechada para enfrentar o sofrimento. Depois da recuperação da vista, ele se faz desnecessário e desaparece em Jerusalém. Os milagres de Jesus produzem abertura para o mundo (cura do cego, do surdo, do mudo). Esta abertura causa mais dores que cura. Com preconceitos e meia-verdades se vive muito agradavelmente. Mas, a recuperação da vista tira as pessoas do campo da contingência e do acaso, e produz espaços de responsabilidade e autonomia.
A assunção do princípio da realidade, simbolicamente expressada na recuperação da vista, não se esgota com a iluminação do aqui e agora. Também o passado histórico pertence ao princípio da realidade. Este passado exige a percepção dos mecanismos de resistência do ego, ensaios de auto-esclarecimento e um trabalho de luto como recuperação da memória traumatizada, alienada e ideologizada (cf. Mitscherlich). Acertadamente, diz Walter Benjamin, em sua sexta tese “Sobre o conceito da história”:

“Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (...) O dom de despertar no passado a faísca da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer" (Benjamin, p. 224s).

O Deus da Bíblia representa na psique coletiva e institucional, geralmente, a categoria psicológica do Pai (super-ego). No anúncio de Jesus de Nazaré recebe outros contornos. Ele não é um Deus concorrencial frente aos desejos dos filhos, nem um Deus-Pai dos vencedores. É um Deus que liberta os vencidos. “Memória” e “lembrança”, na tradição judeu-cristã são uma questão de “verdade”. Os escravos que Moisés liberta do Egito, não passam pelo rio Lethe, o rio do esquecimento, pelo qual na mitologia grega os mortos deveriam passar, mas pelo Mar Vermelho que se torna memória de libertação, água do não-esquecimento, memória de seu caminhar libertador. Se Lethe significa esquecimento, memória significa a-lethe. A-lethe, aletheia (alhqeia), na língua de Sócrates, significa “verdade”.
O que é “verdade” e “mentira”, “pecado” e “graça” tem um núcleo histórico que religa à história de libertação dos escravos de todos os tempos. O que é veneno” e “remédio”, o que é “salvação” e “perdição” não se pode saber “em si”, através de definições dogmáticas e de costas frente aos sofrimentos da humanidade. Os que caíram nas mãos dos ladrões indicam o caminho para a vida inteira, a vida eterna. A verdade cristã passa pela mediação do próximo e a memória do seu sofrimento. Os dois personagens que perguntam a Jesus pela vida eterna, o doutor da Lei que sabia tudo, e o jovem rico que tinha tudo, não recebem, como resposta para a sua pergunta, uma lei complementar, mas uma ordem que questiona o seu saber e o seu ter, a ordem de se lembrarem do outro sofredor e pobre (cf. Lc 10,25; 18,18): “Vai, e faze tu o mesmo”, que o bom samaritano fez, e “Vende tudo o que tens e dá-o aos pobres”. Encontramos aqui uma reinterpretação do “discernimento mosaico”. A verdade é memória e solidariedade com os que ontem sofreram e perceção dos e interação com os sofredores de hoje. O Deus anunciado por Jesus de Nazaré não é um contabilizador de pecados morais, nem um apaziguador do sofrimento, mas um sensibilizador para a gênese e a raiz do sofrimento.
A neurose individual é, na maioria dos casos, também expressão de uma alienação social. Existem estruturas neuróticas e estruturas de pecado neste mundo capitalista, diante das quais as funções terapêuticas de confessionários e consultórios parecem um trabalho de Sísifo. O trabalho da recuperação da memória traumática que faz uma rememoração do sofrimento e da própria responsabilidade, contém também o germe da recuperação de uma “memória perigosa” que resiste às tentativas sistêmicas do conformismo. Memória e esperança fazem parte do princípio da realidade.

III. Tornar-se adulto

Não só para a Evangelização pré-moderna, também para o mundo esclarecido” representava a alteridade dos povos conquistados a infância da humanidade. Povos sem escrita não têm história, diz a historiografia oficial. A situação em que os portugueses encontravam os índios, segundo Varnhagen, "não podemos dizer de civilização, mas de barbárie e de atraso. De tais povos na infância não há história: há só etnografia. A infância física, é sempre acompanhada de pequenez e de miséria" (VARNHAGEN, vol. 1, p. 30). Povos sem história se tornam povos com história e adultos pela incorporação nos mitos e na história (de salvação) universal. Frente ao Outro, os missionários se consideravam “pais desta mísera nação e no-los encomendando como filhos e crianças pequenas para que como a tais (que são) os criemos, doutrinemos, amparemos, corrijamos, os conservemos e aproveitemos na fé e civilização cristã” (SUESS, 1992, p. 889).
Até hoje, as práticas institucionais, muitas vezes, não ajudam no processo de tornar-se adulto. Determinados setores eclesiais infantilizam seus adeptos, prometem recompensas para os submissos, ideologizam sua mensagem e fazem de Deus-Pai uma instância de terror e temor. Este super-ego divinizado como Deus Todo-poderoso terroriza não só os fiéis, mas a própria instituição Igreja, para muitos já não mais uma “mãe suficientemente boa” (cf. WINNICOTT, p. 25), por ser devoradora, como “Grande Mãe, e não ser suficientemente adulta (cf. NEUMANN). O complexo de Édipo eclesiástico é o casamento forçado do fiel com a Igreja-Mãe que encontra seus desdobramentos numa obsessiva devoção mariana. Esta pode sufocar uma relação adulta com Deus-Pai. Na religiosidade popular, os santos mediadores, muitas vezes, são mais importantes que o próprio Deus. Muitos véus que escondem essa realidade devem cair no decorrer de uma relação de crescimento na fé.
A Igreja “Grande Mãe”, quase num retorno ao matriarcado, incorpora os medos que poderia causar um Deus Todo-poderoso dispensado. Ela não tem medo do clero domesticado, mas dos fiéis adultos, dos leigos, dos pobres, dos Outros e das mulheres. São medos de perdas possíveis. Os leigos autônomos e adultos, com sua vontade e capacidade de democraticamente participar em muitas questões institucionais, causam o medo da perda do poder. Os pobres representam a ameaça dos bens e da “privacidade” de sua gestão. Se entrarem em postos de comando na Igreja haveria, certamente, outras prioridades econômicas. Os Outros ameaçam a perda da identidade. E a exclusão das mulheres representa o medo sexual, o medo do corpo e da perda de uma suposta inocência. O medo das perdas causa uma espécie de exclusão e desaparecimento dos leigos, dos pobres, dos Outros e das mulheres, não dos lugares folclóricos, mas dos lugares decisórios.
Esta ambivalência coletiva e institucional não assusta o psicólogo, nem o teólogo, já que se trata, na imperfeição individual e coletiva não admitida, segundo as diferentes disciplinas acadêmicas, de uma ideologia, neurose, mentira ou pecado. Ao cavar um pouco mais fundo na história do cristianismo encontramos três teólogos que ajudam a compreender as questões da imaturidade que produz violência e as questões da ambivalência, do pecado e da culpa: Agostinho, Tomas de Aquino e Lutero.
Lutero, na tradição agostiniana, tentou resolver esta questão melindrosa da ambivalência do ser humano criado por um Deus infinitamente perfeito, com a justaposição do simul justus et pecator: somos, segundo Lutero, ao mesmo tempo justificados diante de Deus e pecadores sem chance por força própria. Esta visão bipolar do ser humano remonta à tradição de Santo Agostinho (354-430) que afirma, em conseqüência de suas lutas contra o pelagianismo, o efeito de ruptura do pecado original (cf. SUESS, 29ss).
Certos seguidores de Agostinho, como os sentencialistas do século XII (Hugo de São Vitor, Anselmo de Laon, Pedro Lombardo), atribuem ao pecado original uma força esmagadora diante da natureza humana. Daí provêm as exigências de um contrapeso na graça e no sobrenatural que, nos exageros da polêmica teológica, sufocam o natural. A minimização do natural inspirou as interpretações teocráticas do poder pontifício, não só nos tempos de Gregório VII (1073-1085) até Bonifácio VIII (1294-1303), mas também na interpretação da “doação Alexandrina” e nas “guerras justas” contra os índios. A teocracia eclesiástica é o contrapeso da natureza humana profundamente ferida. Uma humanidade fraca precisa uma Igreja forte.
Já no século XIII, nas universidades de Paris, Bolonha, Oxford e Salamanca, nasce algo novo. Agora Aristóteles – proibido ainda no início daquele século – já pode ser traduzido e sua leitura ajuda a teologia a ampliar seus horizontes. Tomás de Aquino (1225-1274) faz, livremente inspirado por Aristóteles, avançar a reflexão teológica, quando começa a distinguir entre o natural e o sobrenatural e entre razão e fé. Como o natural não dispensa a graça (sobrenatural), também a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa. O direito divino, que tem a sua origem na graça, não suspende o direito humano, que é de ordem natural. O natural está ligado à essência dos seres e não pode ser substancialmente mudado ou corrompido. Também o pecado original não privou a natureza de seus princípios e direitos constitutivos. Se a ordem natural permanece essencialmente intacta, apesar do pecado (original), então não pode haver diferenças essenciais entre cristãos e “naturais”.
Tomas de Aquino, um dominicano como Las Casas, Francisco de Vitória e Melchior Cano, como Chenu e Congar do Vaticano II, preparou um campo teológico que permitiu, mais tarde, defender a racionalidade e a liberdade do índio e as realidades terrestres como lugar teológico. Até hoje se confrontam, no interior das Igrejas, essas duas correntes, a Agostiniana-Luterana que afirma que somente a graça salva enfatizando a ruptura causada pelo “pecado original”. A outra corrente, a de Tomas de Aquino e de Las Casas, nega esta ruptura porque a ordem natural não sofre falhas substantivas através do pecado original. Estas rápidas pinceladas de uma reconstrução histórica permitem situar um certo moralismo, maniqueísmo e fundamentalismo de hoje no contexto de seus respectivos ancestrais teológicos.
O psicoterapeuta Tilmann Moser, em seu recente livro “Do Deus envenenado ao Deus suportável – Reflexões psicanalíticas sobre a religião”, redigiu como último capítulo uma “Carta ao meu inimigo Agostinho”, onde ele acusa o “doutor da graça” de ter expulsado a alegria de viver pelo “Princípio Pecado” (MOSER, 152-176). O terapeuta qualifica o bispo-teólogo como teólogo da desgraça, do medo e da culpabilidade. A neurose deste “filho da mãe” no sentido literal, diz Moser, se tornou coletiva nas guerras de religião. Trata-se de um Édipo a quatro: a mãe, com características de uma beata, sempre correndo atrás do filho, Agostinho como rapaz, Deus como ator principal e um pai natural como figura marginal deixado para trás pela mãe e o filho que correm para se unir e confundir com este Deus.
Provavelmente, Moser carregou nas tintas, mas o que interessa neste contexto é o fato de que o maniqueísmo dos evangelizadores que quis separar o bem do mal, causou tragédias individuais e coletivas frente aos assim chamados hereges, pagãos e selvagens. Por ser diferente, este Outro foi considerado inferior. Pela vontade de criar a cultura pura, os evangelizadores se tornaram destruidores de milhares de projetos de vida. Bernardino de Sahagún descreveu seu lugar pastoral, no México do século 16, como um beco sem saída:
“Foi necessário destruir todas as coisas idolátricas, todos os edifícios idolátrico e também os costumes da república que estavam misturados com ritos de idolatria (...), e por este motivo foi necessário desbaratar tudo e pô-los em outra maneira de civilização (...). Mas, vendo agora que esta maneira de civilização cria gente muito viciosa, de inclinações muito más e muito más obras, as quais os tornam odiosos a Deus e aos homens, e até lhes causam grandes enfermidades e vida breve. (...)” (Sahagún, 218s).

A religião dos puros causa o estrangulamento do Evangelho. Todos pecam onde procuram ser particularmente virtuosos. Na parábola do joio e do trigo está codificada a sabedoria do sentido da vida num mundo que ainda está por definir-se (cf. Mt 13,24-30). As pretensões da "verdadeira" religião e da "cultura pura" entram em colisão com a obra de separação escatológica de Deus. Quando se pretende forçadamente introduzir o Reino de Deus na história, o seu Espírito de liberdade e gratuidade está sendo automaticamente expulso. Nesse caso, as últimas coisas serão piores do que as primeiras. A parábola do joio no meio do trigo representa a opção pela responsabilidade histórica, pela pulsão da vida no meio da morte, pela convivência de Eros e Tanatos, contra a cultura pura e qualquer tipo de maniqueísmo.

IV. Livrai-nos do mal

Diante da compreensão da ambivalência humana na parábola do joio no meio do trigo, como compreender a prece do Pai-Nosso: “livrai-nos do mal”? As modernas utopias de libertação do mal não se cumpriram. Guerras mundiais e campanhas de extermínio racial, holocausto e tortura, exploração e pobreza extrema, narcoterrorismo e destruição ambiental caracterizam o lado sombrio, a história do mal do século que findou. Os estágios da violência correspondem de maneira simétrica aos estágios de cada cultura. Ao lado do mal público e oficial, delineia-se uma tendência à privatização do mal no lar da “Família Adams”. Este mal não precisa mais do grande discurso legitimador, de motivações especiais ou de grandes emoções.
Agora o mal se transformou numa brincadeira privada, numa maneira de superar o tédio. Quando na Madrugada de 20 de Abril de 1997, cinco jovens da classe média passam pelo índio pataxó Galdino de Jesus dos Santos, que dormia em um ponto de ônibus em Brasília, resolvem comprar uma garrafa de gasolina, derramam o combustível sobre Galdino e tocam fogo, não se trata mais de uma “causa”. Sem maiores motivações podiam tocar fogo em qualquer um que por acaso se encontre por perto. “Nós queríamos apenas vê-lo sair correndo e pegando fogo. Era só uma brincadeira”, explicaram ao delegado de polícia.
A libertação do mal e das conseqüências do mal é uma promessa central da Escritura. O horizonte escatológico da redenção do mal libera sempre de novo aquelas forças que são necessárias não só para retirar do mal histórico sua legitimação e plausibilidade cultural, mas para ativamente lutar para libertar-se dele. Na visão da Bíblia, o mal é um ato destrutivo de alguém contra o projeto da criação. A difusa anonimidade do mal pode transformar-se em estruturas concretas para depois se tornar virulento, como "poderes da morte", como "estruturas do pecado" (Conferencias, Santo Domingo, 13 e 243) e como "violência institucionalizada" (Conferencias, Medellín, II, 15).
O processo de libertação do mal na história é um processo de abertura (Is 6,10; Mc 7,34s), é história de salvação. Israel conheceu a ação libertadora de seu Deus quando foi escolhido de sua condição de anonimato e quando foi libertado da servidão. Experimentou seu Deus libertador no pacto da Aliança e na tomada de posse de sua terra, no exílio, e por fim no retorno do cativeiro. O Deus da Aliança de Israel promete não apenas uma nova terra, mas também um novo coração numa nova Aliança (Jr 31,31; Ez 37,26).
Segundo a Escritura, o mal não é um destino, mas é responsabilidade da própria humanidade. O diabo é na verdade "homicida desde o início" e "pai da mentira" (Jo 8,44), mas ele não elimina a responsabilidade humana pelo mundo. A morte veio por um ser humano (cf. 1Cor 15,21). A destruição da vida pode ser experimentada prazerosamente, isto é, de maneira subjetivamente fascinante, na ampla escala que vai da entrega voluntária no martírio até à autodestruição masoquista. Pode-se explicar “doação da vida” como sacrifício do estranho a pedido da divindade e como destruição da vida alheia, enquanto mera demonstração de poder.
A súplica do Pai-Nosso (cf. Mt 6,7-15) faz referência ao "perdão das dívidas" e à "libertação do mal" nas duas situações ideais do ano jubilar e do Reino de Deus. Na sinagoga de Nazaré, Jesus faz referência ao ideal do ano do jubileu, que não se realizou, e declara-o programaticamente como seu projeto de vida (Lc 4,16s), como ano da graça para os pobres, como libertação para os oprimidos e como recuperação da vista para os cegos. O projeto do ano jubilar recebe na pregação do Reino de Deus uma dimensão histórico-escatológica universal. A chegada do Reino de Deus significa a ruptura com o mal em sua composição estrutural e em sua responsabilidade pessoal. Jesus de Nazaré anuncia o Reino como a persistente visão da possibilidade de uma vida plena.
Ora, o cristianismo tem a pretensão de fazer andar historicamente os dois "ideais" - o ano jubilar e o Reino de Deus - através do anúncio da redenção do mal, realizada definitivamente em Jesus Cristo. Com isto os demais salvadores e caminhos de salvação se aproximam da idolatria e de ídolos que têm ouvidos surdos e olhos que não vêem (cf. Is 6,9; Jr 5,21; Mc 8,18). Exclusão e violência contra judeus e pagãos são o resultado. O cristianismo incorpora mimeticamente a violência sofrida. Desde o apedrejamento de Estevão, os judeus são publicamente estigmatizados como assassinos de Deus (At 7,52).
A continuidade destes discursos anti-judaicos, autorizada pela Igreja, nós podemos encontrá-la nos Padres da Igreja. Em 388, Ambrósio, bispo de Milão, defende os que incendiaram a sinagoga de Kallinikon (Eufrates) qualifica a sinagoga como um lugar de descrença, como a pátria da impiedade, como o esconderijo da loucura, condenado pelo próprio Deus" (AMBRÓSIO, Epist. 40 PL 16, 1104s). Os soldados de Cristo combatem, segundo Bernardo de Clairvaux, "sem o menor medo de pecar, por se haverem exposto ao perigo de morte ou por terem matado o inimigo. Para eles morrer ou matar por Cristo, não significa nenhum crime, mas implica numa grande honra (S. BERNARDO, p. 503).
Desde as Retractationes de Agostinho, o emprego da violência é justificado com o "compelle intrare" ("obriga-os a entrar", Lc 14,23) do evangelho (Cf. Retractationes, II 31, CSEL 36,137). Por trás disto encontra-se a justificativa através da "responsabilidade positiva" pela salvação dos outros. Castigos corporais que levem à conversão dos hereges são considerados beneficios. José de Acosta, provincial dos jesuítas no vice-reino de Peru, exigia uma "nova evangelização", que deveria ser acompanhada por soldados. Sobretudo os aborígines "mais primitivos" teriam que ser forçados a entrar no reino dos céus, como também se faz com as crianças que resistem aos médicos e aos mestres (Cf. ACOSTA, vol. 1, livro segundo, cap. 12, p.339s, tb. Proemio, p. 69). Também José de Anchieta (1534-1597), um dos primeiros missionários jesuítas do Brasil, relata ao geral de sua ordem, Diego Laynes: "(...) para este gênero de gente, não há melhor pregação que espada e a vara de ferro, na qual, mais que em nenhuma outra, é necessário que se cumpra o compelle eos  intrare” (ANCHIETA, p. 197, Carta de 16.4.1563, n. 8).
Paralelamente à luta da Reforma contra as imagens religiosas nas Igrejas, houve na América conquistada uma luta contra as falsas imagens dos índios. Bernal Díaz, um dos relatores da conquista do México, descreve como depois da destruição das estátuas dos deuses dos totonacas, e sob as lágrimas de seus sacerdotes, Cortés mandou colocar no santuário deles uma imagem de Maria, construir um altar e celebrar uma missa (DÍAZ DEL CASTILLO, vol. 1, p. 161ss, cap. 51s). Na América portuguesa, já antes da batalha de Lepanto (1571), as vitórias contra os índios eram consagradas à "Nossa Senhora da Vitória” (Cf. MEGALE, p. 465ss). Vestida com uma túnica branca, um manto real dourado e com uma coroa sobre a cabeça e a palma da vitória na mão direita, ela é em tudo igual à deusa pagã da Vitória, retirada do Fórum Romano pelo Imperador Graciano. É a “primeira dama” do mundo novo e já não mais aquela que derruba os "poderosos" de seu trono ou que exalta os "humilhados". A primeira paróquia do Brasil, em Salvador da Bahia, recebeu o seu nome.
No rito e no culto se encontra, muitas vezes, um substrato sacrificial que pode sobreviver numa teologia vulgar da cruz. Da lógica do sacrifício "cultual" que nega o eixo central do cristianismo, a gratuidade, à violência ritualizada é apenas um passo. Isto ficou patente também na legitimação salvífica da escravidão como "benefício cristão" e "grande milagre da providência e misericórdia divina" (VIEIRA, vol. 4, Sermão décimo quarto (1633), em Sermões , tomo 11, p. 301, n. 6).
Na polaridade tensa do mundo, o fascínio do mal pode ter suas raízes na supressão de um pólo da realidade que produz o equívoco de considerar uma meia-verdade como sendo a verdade inteira. O fascínio do mal aponta, portanto, para uma resistência neurótica contra partes da realidade, para a repressão e o "aprisionamento da verdade" (Rm 1,18). Fundamentalistas são neuróticos piedosos que reprimem partes da realidade, para depois impor e propor a Deus e ao mundo suas meias-verdades. Meias-verdades podem ser sentidas como prazerosas e fascinantes. As verdades inteiras geralmente são dolorosas. Na religiosidade popular, o povo elaborou uma síntese convivencial. Nas ruas paulistanas, estátuas do beato Anchieta e de Anhangüera, que significa Diabo Velho disputam a atenção dos transeuntes. A Grande São Paulo é atravessada por uma "Via Anchieta", por uma "Via dos Bandeirantes" e uma "Raposo Tavares", lembrando o chamado "ciclo de caça ao índio". O povo herdou a alquimia de sua sobrevivência dos índios colonizados; homenageia seus anjos da guarda e respeita seus demônios porque sabe como pode ser útil acender uma vela a Deus e outra ao diabo.

Conclusão

Iniciaram-se estes apontamentos com a comparação da religião com o phármakon que pode ser um remédio e um veneno. Um fenômeno semelhante observa-se entre o alemão e o inglês. “Veneno” em alemão significa “Gift”, e gift em inglês significa dádiva, presente, dom. Certamente, este parentesco lingüístico quer lembrar uma experiência ancestral de que a dádiva é ou pode ser também um veneno, um presente de grego. E a palavra “dote” significa, em alemão, Mitgift, quer dizer, um veneno que se leva para a casa do noivo ou da sogra. A religião é um dote a ser criticamente observado. A psicologia pode contribuir para o discernimento entre “remédio”, “dádiva” e “veneno”.
A tarefa da religião não está na promessa de curar a civilização da barbárie, mas na capacidade de advertir a humanidade sobre a barbárie coletiva e individual que está, como a “bela adormecida”, aguardando não seu príncipe, mas seu demônio. Todos querem o consolo da promessa de cura do mal, o revolucionário mais radical e o beato mais devoto, diz Freud e continua: “Não lhes posso oferecer consolo algum”, porque a pulsão da morte, o Tanatos, e a pulsão da vida, o Eros, são dois “Poderes Celestes” imortais (Freud, p. 170).
Mesmo sem oferecer “colo”, religião e psicologia, tomando partido para um mundo melhor e para a construção de um Estado para todos, podem, nas transformações atuais, contribuir para o bem da humanidade ao incentivar um olhar atento para as raízes e a realidade das sociedades e dos indivíduos, ao tratar as pessoas como adultas e ao incentivá-las a se tornarem cada vez mais adultas na proximidade articulada, sem identificação, e na autonomia livre, sem, indiferença. Finalmente, religião e psicologia não podem abrir mão da “libertação do mal”, mas advertem para as fantasias de onipotência, os narcisismos e os purismos infantis que se manifestam nas lutas de libertação. Ao interpretar a cruz de Cristo como “culpa feliz”, o cristianismo encontrou, na “vida falsa”, uma fenda onde pode entrar tudo aquilo que faz a vida valer a pena de ser vivida.
Os demônios da “vida falsa” só são perigosos sob duas condições. Primeiro, quando são negados ou esquecidos, e eles podem, por conseguinte, fazer festa nas costas e às custas das pessoas. Segundo, quando se tenta fugir deles ou agredi-los com tentativas de expulsão. O espírito impuro que se expusa, volta, segundo o Evangelho, com „sete outros espíritos piores que ele“ (Mt 12,43ss). O demônio é sempre mais forte e mais ligueiro que as pessoas. Precisa-se aprender dialogar com ele, como Jesus no deserto. Neste diálogo com o lado escuro da humanidade, Mefistófeles se torna „uma parte daquela força que sempre quer o Mal, mas sempre faz o Bem“ (cf. GOETHE, p. 89).

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[1] Palestra proferida, no dia 18 de outubro de 2003, no encontro “Psicologia e Religião – A ética laica da psicologia”, organizado pelo conselho Federal e Regional de Psicologia, São Paulo.
[2] O concílio de Calcedônia, de 451, definiu que na pessoa divina de Jesus Cristo subsistem duas naturezas, a humana e a divina, “sem confusão nem divisão” (inconfuse, indivise).