Da apropriação e reiteração de
discursos iorubas: uma leitura sígnica
Os mitos dos orixás apontam para uma
longa memória - mesmo que construída dialeticamente, e reportam seus adeptos
para tempos longínquos em que os deuses habitavam a terra. Na dinâmica dos
terreiros de candomblé, os cultuadores dos orixás, o povo do santo, entende
esses textos em seu aspecto religioso, o que lhes confere instrumento que
transcende o material, o concreto, o científico, tornando os mitos, nesta
perspectiva, instrumento que comunica deuses e homem, terra (àiyé) e céu
espiritual (órun).
Os textos mitológicos aos quais
fazemos referência são os chamados ìtàn àtowódówó , que nos contam sobre os
mitos cosmogônicos, a epopéia dos deuses, sua relação com o mundo e com a nossa
humanidade. De uma riqueza ímpar, esses textos aprofundam o entendimento de
quem somos, do que fazemos, ao discutir as questões da existência humana e suas
eternas dúvidas. São ao mesmo tempo influência e influenciados pelos rituais,
que os reiteram, cada vez que um iniciado lança água à terra, umedecendo-a,
cada vez que uma oferenda é dedicada aos orixás, solicitando-lhes o axé; ou
quando os babalaôs, “guardiões do segredo”, se debruçam sobre o complexo jogo
oracular de Ifá (Orumilá) para fazer suas adivinhações.
Para o povo do santo, os mitos são
aceitos como “absolutamente verdadeiros” , pois deles se apropriam não como
fatos, mas como metáforas, não em seu valor referencial, científico, mas em seu
teor metafísico, promovendo um relacionamento com as energias o mais próximo, o
mais visceral possível, que, neste sentido, con-fundem mito e ritual. Por isso,
Quando o oráculo do Ifá é lançado, o
que consiste em jogar dezesseis conchas de búzio no chão, como se fossem dados,
se a pessoa receber o sinal chamado de Ossá-Ogumda , é essa história que será
contada pelo babalaô. A pessoa afligida poderia assim receber o diagnóstico de
que sofre de um problema de impotência sexual ou incapacidade, provável mas não
necessariamente sexual, e as ervas medicinais prescritas são chamadas de
“remédios de luta”, consistindo principalmente de uma planta conhecida como
“folha de búfalo”, apreciada por seus “chifres grandes”. Porém, o propósito
fundamental desse procedimento é desenvolver um relacionamento com a Deusa
[Oyá-Iansã].
Todavia, o debate em torno dos mitos
tem sido legado a um plano de descaso: são tratados como “estorinhas” que têm
valor pouco significativo em nossa cultura: ocidental, eurocêntrica, cristã,
que privilegia outras formas de conhecer o mundo: telescópio, computador,
satélite, microscópio, e o intelecto do homem moderno. Aliás, é visível a
política de apagamento dos mitos africanos em comparação com a utilização
canônica que as instituições - escolas, universidades - tem legado aos mitos
gregos, romanos, egípcios.
Não devemos esquecer que desde os
séculos XV e XVI, no imaginário coletivo já estava sedimentada uma mitologia
européia de deificação e de demonismos: “os deuses tinham pele branca, os
diabos, pele negra, e era dever dos deuses subjugar os diabos.” Mais ainda,
discutir mitologia africana é remontar a história de um povo massacrado,
vilipendiado, que sofreu diversas pilhagens ao longo de sua história. De modo
objetivo: (i) o tráfico negreiro e a escravidão dos africanos nas Américas;
(ii) a colonização dos territórios africanos; (iii) o recrutamento de pessoas
para o desenvolvimento militar e científico dos países do Ocidente, que teve
seu início nas décadas finais do século XX.
Neste contexto, é a influência dos negros
iorubás (nagôs), principalmente pós-escravidão, que vai difundir no Brasil seu
modo muito particular de ver o mundo, através de seus mitos e rituais de
adoração dos deuses. O professor Reginaldo Prandi diversas vezes declarou a
força dos iorubás, ressaltando as atividades de casas de santo tradicionais na
Bahia: a Casa Branca do Engenho Velho, o candomblé de Alaqueto, o Axé Opô
Afonjá e o Gantois.
Além disso, os últimos anos assistiram
a uma preocupação sistemática em resgatar os textos mitológicos, com a vinda de
babalaôs nigerianos trazidos ao Brasil por instituições, como o Centro de
Estudos Africanos da Universidade do Estado de São Paulo, onde ministram cursos
sobre mitologia, cultura, língua e ritos iniciáticos. , além do chamado
processo de reafricanização, em que os sacerdotes peregrinam à África em busca
de “uma literatura sagrada contendo os poemas oraculares de Ifá”.
Pierre Verger se apóia na pesquisa de
Gisèle Cossard para discutir arquétipos, segundo o que, os iniciados,
geralmente, possuem traços comuns a seu orixá, tanto no biótipo, quanto em
características psicológicas. O corpo do filho de santo, bem como suas ações em
sociedade parecem ser espelho do orixá, tal qual seus mitos apresentam. Neste
sentido, se Xangô é vigoroso, forte e elegante, Oxum possui feminilidade
extrema e elegância, Iansã apresenta-se com força, energia e sensualidade,
Oxossi com vivacidade e independência, Ogum com extrema força, rapidez e não
muito bom humor, isso será reproduzido no arquétipo.
A pesquisadora Betty Mindlin citando
Mircea Eliade (1907-86) diz que o mito é “um fenômeno religioso”, como
tentativa de o homem retornar ao ato original da criação.
Acreditam os cultuadores de orixás
que, cada vez que os mitos são acionados por meio de seus rituais, produz-se a
ligação entre o sagrado e o profano, fazendo com que o homem escape do tempo
profano, adquirindo a possibilidade de existir em um outro espaço, o Tempo
Primordial, “tempo forte, prodigioso, sagrado em que algo de novo,
significativo e forte, ocorreu pela primeira vez. ”
E como teriam surgido os mitos? Ford
opta pela teoria da “difusão e da origem simultânea”; ou seja, os mitos têm uma
origem simultânea em diversas culturas porque são elementos essenciais do homem
e estão presentes em toda parte. Além disso, é bastante complexo precisar suas
raízes, haja vista que, a mitologia africana surgiu oralmente, como todas as
mitologias; e seu conhecimento é transmitido oralmente, o que lhe confere,
segundo Verger, caráter de portadora de axé:
As palavras, para que possam agir,
precisam ser pronunciadas. O conhecimento transmitido oralmente tem o valor de
uma iniciação pelo verbo atuante, uma iniciação que não está no nível mental da
compreensão, porém na dinâmica do comportamento.
Outras características dos mitos é que
não são datados, não se confundem com um discurso histórico, não produzem um
fio narrativo, e não se preocupam com linearidade ou “coerência”.
Eles se
apresentam como uma necessidade de explicação da vida, dos fatos, das ações de
um povo. Deste modo, o povo do santo se utiliza de um grande repertório de
mitos que versam sobre um conjunto de fatos acontecidos no passado, com o
intuito de iluminar a vida no tempo presente.
Os mitos dos orixás: a voz que
(in)surge dos terreiros e/ou sobre como é saboroso o saber dos mitos em Verger.
Pierre Fatumbi Verger (1902-1996),
fotógrafo, etnólogo e babalaô do culto aos orixás, teve como objeto de
interesse e universo de trabalho a cultura afro-brasileira, especialmente o
candomblé da Bahia. Dedicado a Orumilá, o deus da adivinhação, iniciou-se no
culto a Ifá, o oráculo iorubano, o que lhe valeu o nome Fatumbi, ou seja,
“renascido de Ifá”.
Em seu Orixás: deuses iorubás na
África e no novo mundo, apresenta uma série de mitos coletados na África e no
Brasil sobre os deuses iorubás. Esses textos encontram respaldo nos terreiros e
são recontados, com alterações em um ou outro ponto, com a manipulação e
ressignificação de certas passagens, mas, sobremodo, se fazem sentir nos
rituais que são produzidos nos terreiros de candomblé por todo o Brasil.
Fatumbi chama a atenção para as
diferenças que os textos apresentam quando contados e recontados ao longo do
tempo:
se algumas destas variações são o
resultado de esquecimentos ou do acréscimo de elementos novos, não podemos
afirmar, entretanto, que os aspectos de um mito, fixados há um século, sejam
mais próximos de sua concepção original que os levantados atualmente.
Em suma, trabalharemos neste artigo
com três mitos referentes a Exu, conforme apresentados por Verger. Tal escolha
se justifica, haja vista que este orixá, o primogênito do Universo, é o
responsável por toda a dinâmica dos rituais, sem o qual, nada acontece.
Efetivamente, tudo nos rituais depende de Exu; de seu alto poder mágico e
cosmogônico.
Assim, apresentamos os mitos e os
modos como são apropriados pelos terreiros, para que conversem entre si,
dialeticamente, proporcionando-nos ricos significados.
Cremos que, mesmo que não conheçam os
mitos em detalhes, mesmo que inconscientemente, os terreiros expressam o posto
nos mitos e remontam sua gênese. Ruy Póvoas, professor de literatura e zelador
no culto aos orixás, com casa de axé em Ilhéus, me dá condições de defesa:
Num terreiro de candomblé, jamais se
atribuirá a uma pessoa cabeça de Oxum a tarefa de remover o corpo morto de um
animal em decomposição ou qualquer atividade que implique lidar com cheiros
nauseabundos ou que promovam rejeição. Oxum é moça rica, rainha do brilho, do
perfume e assim são também os seus filhos. Desrespeitar o humano é também
desrespeitar o orixá, pois essas coisas não se separam.
Oxum é mulher graciosa, símbolo do
feminino e da beleza, rainha excelsa, delicada. Para ela seria agressão lidar
com elementos em putrefação. De mesma sorte, jamais se pedirá a um filho de
Oxalá que manipule o dendê ou o sal. Esses elementos fomentam a ira do orixá,
porque são símbolos que vão de encontro ao axé particular de Oxalá, deus do
branco, da paz, da alvura, orixá relacionado à criação, fomentando nele e em
seu filho atitudes incomensuráveis. Ford (1999:211) destaca que Obatalá, outro
nome para Oxalá, é o “Rei das Vestes Brancas, em parte porque o branco
simboliza o líquido seminal, o poder criador masculino”.
Em contrário, Ogum, Xangô, Oyá e Exu
são energias que se apropriam em demasia do axé do “sangue vermelho”,
inclusive, dele se alimentando em grandes quantidades, como o epô, azeite de
dendê, o osùn, pó vermelho, mel; bem como do axé do “sangue preto”: carvão,
ferro, o sumo escuro de certos animais; o ilú, índigo, extraído de diferentes
tipos de árvores.
Não à toa, termos nos mitos de Exu a
manipulação do axé do vermelho e do branco, o qual, conta como ele semeou
discórdia entre dois amigos que estavam trabalhando em campos vizinhos. Ele
colocou um boné vermelho de um lado e branco de outro e passou ao longo de um
caminho que separava os dois campos. Ao fim de alguns instantes, um dos amigos
fez alusão a um homem de boné vermelho; o outro retrucou que o boné era branco e
o primeiro voltou a insistir mantendo a sua informação; o segundo permaneceu
firme na retificação. Como ambos eram de boa fé, apegavam-se a seus pontos de
vista submetendo-os com ardor e, logo depois, com cólera. Acabaram lutando
corpo a corpo e mataram-se um ao outro.
Exu é indicado em diversos mitos como
o senhor dos caminhos, aquele a quem se deve oferecer salvas muito antes do que
a qualquer outra energia para que nada de ruim aconteça, para que os amigos não
se tornem inimigos e a colheita, da qual, Exu, conosco é participante ativo,
pois está em todo e qualquer ritual, renda frutos benéficos.
O texto chama a atenção para o fato de
que os amigos eram tão amigos e seu laço tão próximo que seus terrenos eram
“vizinhos”. Ou seja, Exu é aquele que pode desfazer o que já está estruturado,
dado como certo, inviolável. Exu é o que destrói o inexorável. O termo “passou
ao longo de um caminho” é empregado, como índice de ser Exu o que transita
tranquilamente entre os espaços, qualquer espaço. Lembremos que é ele quem
fomenta a comunicação entre o àiyé e o órun: o duplo mítico, assim como, é
duplo - formação de par - o sistema que traz harmonia. Viviam em harmonia os
dois amigos, mas, com o acréscimo do terceiro - Exu -, esta harmonia se desfaz.
Lembremos que o número três é por excelência a força de Exu, o morador do
oritá, encruzilhada de três pontas, e o ímpar é, por sua vez, aquele que
descontextualiza, traz o caos, desarmoniza. É por meio de sua presença e do seu
boné de duas cores, signo do vermelho e do branco que a discordância se
instala, tornando-se uma afronta, que leva a discussão, à cólera, à luta
corporal e à morte um do outro. Não há vitorioso que não seja Exu. Percebamos
também que nenhuma razão há para que Exu apronte esta dissidência. Exu é aquele
que faz o que quer, como quer, com quem quiser. Faz o bem e faz o mal. Exu é
aquele “que joga nos dois times sem constrangimento: Asòtuún se òsì láì ni
ítijú” . Exu pertence tanto à direita - orixás -, quanto à esquerda - ébora -,
daí seu boné branco e vermelho.
Exu transita nos dois hemisférios da cabaça da
criação, veiculando seu poder entre o grupo dos orixás - os òrìsà-funfun,
Obatalá, Òsalufón, Òsaògiyán, Òrisà-oko, Olúwo-fin, Olúorogbo, Orisà Eteko, que
se apresentam sob a forma do poder genitor masculino e do “sangue branco” -, e
os éboras - os omo-òrìsà, Ogum, Xangô, Ossain, Iansã, etc, constituintes do
grupo dos duzentos irúnmalè da esquerda, a metade inferior da cabaça da
criação, cujo poder genitor é feminino.
Exu é orixá de extremo poder, de alta
magia e complexa manipulação, que veicula o axé, intercomunicando o sistema
espiritual, sem o qual, qualquer manifestação ficaria impedida:
A função de Exu consiste em
solucionar, resolver todos os ‘trabalhos’, encontrar os caminhos apropriados,
abri-los ou fechá-los e, principalmente fornecer sua ajuda e poder a fim de
mobilizar e desenvolver tanto a existência de cada indivíduo como as tarefas
específicas atribuídas e delegadas a cada uma das entidades sobrenaturais.
Não à toa, é comum nos rituais, saudar
Exu antes de qualquer atividade, “conversando com ele, colocando-lhe oferendas,
afinal ele é o Síwájú, “o primeiro a ser cultuado”. A ele, no mínimo, uma
quartinha - pote pequeno de barro - com água deve ser colocada e esta água não
deve secar nunca. E a terra deve ser saudada, umedecida, lançando-lhe três
punhados d’água, antes de qualquer ebó, a fim de acalmar as forças de Exu.
Em outro texto, menor, mas não menos
indicativo do poder de Exu, outras características deste orixá podem ser abordadas:
Uma mulher se encontra no mercado
vendendo seus produtos. Exu põe fogo na sua casa, ela corre para lá abandonando
seu negócio. A mulher chega tarde, a casa está queimada, e, durante esse tempo,
um ladrão levou suas mercadorias.
Aqui, ele é retratado em seu poder
visceral de alta magia, de controle do fogo. Nada do que a mulher tenta fazer
dá certo. Ela corre para casa e chega tarde. Percebamos que o vocábulo “tarde”,
nos lança para uma idéia de passagem de tempo, faz crer que Exu controla o
tempo, e o faz passar a seu bel prazer. Contra a ira de Exu, não há o que
fazer. Enquanto a mulher tenta salvar sua casa, ele faz com que roubem suas
mercadorias: a mulher está sem trabalho e sem casa.
Outro aspecto que salta é a
colocação no texto do vocábulo “mercado”. Sabe-se que ela tem uma importância
semântica fundamental para os iorubás, pois indica um lugar símbolo do jogo
financeiro, do mecanismo de troca, de compra e venda. O mercado é a morada da
riqueza. Não é espanto, ter se reproduzido nos rituais de axé por conta dos
mitos, um ebó no qual a pessoa depois de assentado seu Exu, “passeia com ele
pelo mercado” solicitando sua benção.
Outro destaque é o fato de Exu se
apresentar como manipulador dos caminhos, Ojisé, e do fogo, Inà, uma vez que é
Ogum, quem, por excelência “percorre os caminhos, é o seu dono”; Xangô, por
outro lado, é o “deus que conhece as manhas do fogo”. Se podemos dizer que Exu
consegue manipular tanto os “caminhos”, quanto o “fogo”, elementos índices de
outros orixás, podemos afirmar que ele não “anda” sozinho, sua energia se
apresenta em comunhão com as outras energias; ele tem contato muito íntimo com
os outros orixás. Neste sentido, agredi-lo é agredir aos outros ébora, pois,
simboliza, sintetiza os poderes dos outros éboras.
Em outro texto sobre Exu, temos que ele
foi procurar uma rainha abandonada já há algum tempo por seu marido e lhe
disse: “Traga-me alguns fios da barba do rei e corte-os com esta faca. Eu lhe
farei um amuleto que lhe trará de volta o seu marido”. Em seguida, Exu foi à
casa do filho da rainha, que era o príncipe herdeiro. Este vivia numa
residência situada fora dos limites do palácio do rei. O costume assim o
determinava, a fim de prevenir toda tentativa de assassinato de um soberano por
um príncipe impaciente por subir ao trono. “O rei vai partir para a guerra”,
disse-lhe ele, “e pede o seu comparecimento esta noite ao palácio, acompanhado
de seus guerreiros.” Finalmente, Exu foi ao rei e disse-lhe: “A rainha, magoada
pela sua frieza deseja matá-lo para se vingar. Cuidado, esta noite”. E a noite
veio. O rei deitou-se, fingiu dormir e viu, logo depois, a rainha aproximar uma
faca de sua garganta. O que ela queria era cortar um fio da barba do rei, mas
ele julgou que ela desejava assassiná-lo. O rei desarmou-a e ambos lutaram,
fazendo grande algazarra. O príncipe, que chegava ao palácio com seus
guerreiros, escutou gritos nos aposentos do rei e correu para lá. Vendo o rei
com uma faca na mão, o príncipe pensou que ele queria matar sua mãe. Por seu
lado, o rei ao ver o seu filho penetrar nos seus aposentos, no meio da noite,
armado, e seguido por seus guerreiros, acreditou que eles desejavam
assassiná-lo. Gritou por socorro. A sua guarda acudiu e houve então, grande
luta, seguida de massacre generalizado. (VERGER, 2002: 77).
Neste texto, Exu brinca com todos os
personagens, formando entre os três - fiquemos atentos à importância deste
número para Exu! - um elo, que não une, mas que separa. A idéia de elo,
efetivamente nos leva à imagem da ligação. Em Exu, tudo pode ser diferente, uma
vez que é o paradoxo por excelência. Não esqueçamos que nos orixás moram o
poder de “fazer” e “desfazer”, a relação de causa e efeito, o ataque e a
defesa. O mesmo orixá que pune é o que absolve, o mesmo que ataca com problemas
de saúde é quem conhece a cura. Um mesmo elemento, dendê, por exemplo, pode ser
utilizado tanto para reforçar vibrações negativas, quanto para acalmar.
Sàlámì
(1991:25) apresenta este orixá como o “òta òrìsà”, “o inimigo dos orixás”; e,
nos ensina em sua oração, “Esù máse mi, omo elòmíran ni o se”, “Exu, não
manipule a mim. Manipule outra pessoa. Em seu poder mágico, Exu é o manipulador
do ebó, o manipulador do sistema oracular - não há adivinhação sem Exu -, é ele
o manipulador dos indivíduos e os impele à ação. No mito que Verger nos
apresenta, Exu fornece a faca e diz que irá se utilizar de sua magia fazendo um
amuleto para a rainha, cuja força lhe trará de volta seu marido. Ampliando a
visão temos a faca como um objeto que Exu divide com Ogum, deus do ferro, dos
metais - temos posta a ligação entre os dois orixás novamente -, lembremos do
nome de Exu Ol’obé; Senhor do Obé, da faca; por isso mesmo, toda vez que se
produz uma oferenda e nela se utilize uma faca, tanto Exu, quanto Ogum devem
ser louvados, pois participam deste evento, independentemente de para qual
orixá o ritual é produzido. Exu de fato poderia ter viabilizado a união e
produzido o amuleto com alguns fios da barba do rei, uma vez que é detentor de
alta magia, mas a utiliza para fazer exatamente o contrário. Exu é Elegbara: o
manipulador de toda e qualquer energia. Sem ele, os amores não se fazem. Sem
ele Xangô não lança seus raios. Sem ele, os preparados de Ossain tornam-se
inócuos. Sem ele o tempo não corre, ou corre para trás, em descontrole. Esta é
a sua condição dinâmica de agbará, ao mesmo tempo controlador e dono da
representação do sistema mágico. (SANTOS, 1986:134). E sua magia já começa a
ter efeito antes mesmo de iniciá-la, no momento mesmo em que engana, ilude,
trapaceia os seus personagens - soberanos. Pura ironia: Exu não escolhe a quem
atacar, seu poder é exercido sobre a mulher do mercado e sobre o rei. Exu é
aquele que desconstrói o que o homem construiu: “O costume assim o determinava,
a fim de prevenir toda tentativa de assassinato de um soberano por um príncipe
impaciente por subir ao trono”. Não adiantou o fato de o príncipe não morar no
palácio. Exu vai de encontro ao que não foi por ele estabelecido, e coloca o
príncipe, com seus guerreiros, num cenário que não era o seu, causando confusão:
o príncipe ouve gritos e pensa que seu pai quer matar sua mãe. O rei chama a
guarda, e uma carnificina se estabelece. São personagens, neste texto,
manipulados pela vontade de Exu, aquele que consegue piorar ainda mais o que já
está ruim. A rainha queria seu marido de volta, índice de melhoria sentimental
com o retorno para o esposo, a vida em família. Exu lhe tira tudo: a vida dela,
de seu filho e do rei. Isso é resultado do intenso poder que Exu tem de lidar
com vida e morte.
Assim se dá a dinâmica dos mitos e
rituais. É possível, portanto, afirmar que os mitos dos iorubás permanecem
vivos nos cultos dos candomblés afro-brasileiros. Basta observar o modo como o
povo do santo se apropria desses discursos mitológicos, reiterando-os por meio
de seus rituais. Numa visão dialética, há a apropriação e reiteração destes
discursos, numa batalha de representação, numa luta por se fazer representar,
ao invés de ser apenas representado: expressão de política de identidade . De
modo que, ao se apropriar dos mitos, o povo do santo, em seus rituais transita
por meio de um discurso que “fala dele”, ao mesmo tempo em que “fala de si”.
Neste aspecto, são os mitos que, por meio das tramas discursivas, fornecem à
religião padrões de comportamento a seus fiéis, aos seus rituais, que podem
“assim ser usados com modelo a ser seguido, ou como validação social para um
modo de conduta já presente”.
Por Alexandre de Oliveira Fernandes e Manoel Santos Mota
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