quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O povo da terra da serpente divina...



Nestas próximas postagens procurarei descrever as varias Nações africanas que vieram habitar neste país continente que é o Brasil. Poderemos ver nestas postagens alguns aspectos do panteão Divino que estes povos trouxeram e darei início com a nação Jeje Mahi.
O povo de Dan que habitou por muito tempo o Dahomey e que tem seu significado como: 
Dan = serpente - homey - terra divinizada, ou seja Terra da serpente divina.

Dan para a nação Jeje Mahi, é considerado o maior Vodun dentro do culto. A família de Dan é composta por muitos Voduns, todos eles com sua importância para os povos Fon. Dizem os mais antigos que, existem 3 reis e patronos da nação Jeje Mahi: Dàn Gbè (Bessém), Sògbò e Azansú. Assim como Oxóssi tem sua importância para o Ketu, e Kitembo tem sua importância para Angola, esses três reis seriam a grande potência da nação, sendo reverenciados e cultuados por todos os filhos, independentes de seus voduns. Dentre esses três reis, se destaca Bessém por ser um dos primeiros deuses a existir e dele tudo nascer. Bessém é a serpente da vida, aquela cujo morder a própria cauda deu origem ao movimento de rotação e translação da terra e a partir daí, sendo possível a existência de vida no planeta. Os patriarcas da família de Dan é o casal Áídò Wèdò e Dàn gbállà. Àídò Wèdò seria a serpente arco-íris e Dàn gbállà seria seu reflexo nas águas. Logo Dan seria a origem de tudo no planeta, sendo um dos responsáveis por sua existência e por sua habitação. Dentro da nação Jeje, Dan é o maior vodun, e a serpente, seu maior símbolo, sendo a representação viva de seu poder. A serpente representa o movimento e o dinamismo, uma vez que consegue se locomover com extrema facilidade e habilidade sem ser provida de patas ou outros membros; representa também a transformação, a evolução e a metamorfose, uma vez que troca de pele e se renova com frequência para poder crescer e se expandir; além de ser uma hábil caçadora e algumas espécies serem detentoras de poderosos venenos, mostrando seu poder e ao mesmo tempo exigindo cautela e respeito por parte dos demais animais e até mesmo nós seres humanos. Dan não é só representado pela serpente mas também pelo arco-íris que da mesma forma, possui grande significado para os dahomeanos uma vez que, sua presença nos céus é presságio de que não irá mais chover além de encantar pela sua beleza. No antigo Dahomey, são inúmeras as lendas que mistificam a natureza dessa divindade, sempre enaltecendo sua grandeza, sua realeza e seu poder. Muitos são os voduns que compõe a família Dan, sendo Bessém (também chamado de Bafono) o mais conhecido e louvado, sendo seu nome sinônimo da própria Dan. Destacam-se também Frekwén ou Kwénkwén, Ojikún ou Dan Jikún, Bossá ou Bossalabê e seu irmão gêmeo Bosukó, Dan Ikó ou Dankó, Azannadô ou Azoannadô, dentre outros, cada um com sua particularidade e mitos. Na iniciação de um vodun Dan o sacerdote tem todo cuidado para inciar o vodun em sua fase humana pois, sua fase serpente é muito perigosa e incapaz de entender os sentimentos, sendo apenas invocada em rituais e determinados atos. A grande festividade para esse vodun é o Gboitá, ritual realizado no início do ano e que envolve todos os demais voduns, cada um recebendo as oferendas cabíveis e sacrifícios em seus Atisás (árvores sagradas com assentos). Após o Zandró, todos os voduns são invocados e já saem vestidos no arrebate, não existindo roda para invocá-los na sala. Seu presente, o gbòitá é carregado por Ogun e depois posto aos seus pés, iniciando assim o ano e agradecendo pela vida e por todo seu poder. O àndè (poço) é seu principal símbolo e é indispensável dentro de uma casa de Jeje. O poço simboliza a abundância (uma vez que enquanto tiver poço, se tem água e nunca faltará), além de representar um portal, entre o mundo subterrâneo e o nosso mundo, extraindo água do interior da terra, unindo de certa forma, ambos os elementos. Dan simboliza a riqueza, a prosperidade e a abundância. Une o macho e a fêmea, sendo sempre cultuado em casal e recebendo como sacrifícios animais de ambos os sexos. Dizem os mais antigos que serpente nunca anda só, onde uma está a outra está por perto, a espreita. Para os iorubás Dan é chamado de Òsúmárè, deixando de exercer função de rei para ser súdito de Xangô (divindade do fogo e trovões). Segundo os mitos iorubás, Oxumaré leva água para o castelo de Xangô, no alto das nuvens, representando a devolução, trazendo água da terra para o céu e vice-versa. Essa transformação de Rei para súdito se dá pelo fato de conflitos entre povos Dahomeanos e povos iorubás, onde ambos sempre tentavam invadir suas cidades e escravizar seus habitantes. O fato é que Dahomey e demais povos iorubás sempre guerrearam, gerando uma aglutinação de cultos e distorção de fatos. Dan é o grande Deus da transformação, senhor da vidência juntamente com Fá (vodun similar ao orixá Òrúnmíllá dos povos iorubás) englobando tudo o que se diz respeito ao presente, passado e futuro. Representa a sorte, a versatilidade e o conhecimento, sendo a divindade do raciocínio e da expansão. Tem como colares o brájá (feito de búzios devidamente encaixados lembrando escamas de serpente, representando a realeza e a riqueza) e o húnjèvè, sendo este dado apenas aqueles cujo processo de iniciação está completo, com suas obrigações pagas, representando a maior idade e sendo o único colar que vai com o neófito mesmo após sua morte, como se fosse uma espécie de “senha” para ser recebido no mundo dos Voduns. Seu simbolo é o Draká, seta adornada com duas serpentes mas, não é errado vermos alguns voduns Dàn com outras insígnias em suas mãos tais como Adaga, òfá, garras, ágbégbé. variando conforme conhecimento do sacerdote e caminhos do Vodun. Sua vestimenta varia conforme vodun, mas sua cor preferida é o branco, por simbolizar a união de todas as cores.
Alguns Voduns Dan
Dàn Gbé, Dàn Gbé Seén ou Gbesén (Bessém): o nome significa “adorar a vida”, é o Ako Vodun (Vodun Principal) do povo Jeje Mahi, dono do Sejá Hunde. É o Vodun ligado a vida e a renovação.
Frekwen, Flekwen ou Kwenkwen: Feminina, irmã gêmea de Tokwen e ambos são filhos
de Aido Wedo e Dangbala. Guardiã do arco-íris em volta do sol. Também conhecida como Frekenda. Alguns dizem que é representada pelas cobras venenosas. Considerada pelos Jeje Mahi como a esposa (ou uma das esposas) de Bessém.

Dan Jikú, Ojikún ou Dan Jikun: Junto com Ewá, vive na parte branca do arco-íris e no arco-íris da lua. É quem trás as chuvas e é considerada uma das esposas de Bessém.
Azannadô, Azannawodô ou Azonadô (ou ainda Zoonodo): Este é um vodun ligado aos voduns de morada na árvore, como Loko. Era cultuado em uma grande árvore no Bogun. É um principe e é o símbolo da fartura.
Bosalabe: Toquem (adolescente) feminina, irmã gêmea de Bosuko e irmã de Ewá. Muito alegre e faceira vive nas águas doces. É conhecida também como Vodum Bossá.
Bosuko: Masculino, toquem (adolescente) e gêmeo de Bossá.
Dan Ikó: Ligada e por vezes confundida com Lissá e Oxalá.
Aido Wedo ou Dan Aido Wedo: É a “Serpente Arco-Íris”, um Vodun raro e pouco conhecido, suas escamas tem o poder de refração de luz, formando assim o arco-íris.
Dangbala ou Dangbala Wedo: Companheiro de Aido Wedo, e são pais de vários Voduns Dan. Dangbala é um vodun muito antigo, acredita-se que esteve presente na criação do mundo. Poucas são as casas que tem fundamentos para fazer Aido Wedo e Dangbala. No culto creole do Haiti (Vodu) são tidos como os maiores Lwás (deuses do vodu).
Azli, Naê Aziri ou Aziri Tolá: É tida como uma serpente das águas, muito confundida com Òsún. Habita o fundo das águas doces e se veste de amarelo bem clarinho. Também muito confundida com Azli Togbosi (Aziri Tobôssi).
Obs.: No Ketu, muitos destes voduns são considerados qualidades de Oxumaré.
Ps.: os dados foram coletados numa pesquisa a internet sendo que em muitos casos varios blogs falavam a mesma coisa, por isso deixarei de menciona-los.


segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O Tempo e o Destino




Na mitologia grega Cronos é o deus do tempo e das estações, mas ele não era a única referência imaginária que os habitantes da Grécia utilizavam para classificar o tempo, Kairos era a outra. Significando “o momento certo” ou “oportuno”, Kairos opunha-se ao tempo cronológico, este tempo sequencial que medimos por quantidades: em dias, números e horas. Kairos corresponde ao tempo existencial, à qualidade da experiência vivida e, nesse sentido, equivale a um momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece. Por sua natureza adaptativa e circunstancial, Kairos era central para o pensamento sofista. Os sofistas acreditavam que a vida bem vivida dependia da capacidade de uma pessoa para se adaptar e tirar proveito da mudança e das circunstâncias contingentes. Essa diferenciação da vivência do tempo, entre qualitativo e quantitativo, é também utilizada na Teologia, onde Kairos é definido como o “tempo de Deus” enquanto Cronos é o “tempo dos homens”.
A diferenciação entre tempo qualitativo e quantitativo feita pelos antigos gregos já não faz parte do Imaginário humano. Não oficialmente, pelo menos! Vivemos indubitavelmente sob a égide do deus Cronos, com a vida classificada ordenadamente em períodos e estágios que se seguem numa sequência pré-definida do que deve ser, como e onde. Afinal, Cronos se adéqua bem melhor à concepção de um mundo racional, no qual o planejamento de metas, o autocontrole e a adequada administração do tempo são definidos como ferramentas essenciais para uma vida bem sucedida. Kairos, com sua natureza essencialmente emocional e sensorial, que exige a fruição com a experiência, o acompanhar da oportunidade inesperada e do momento imprevisto, vai sendo paulatinamente varrido da consciência. Do dia e hora de nascimento das crianças à programação de lazer no fim de semana, em cada momento nos esforçamos para assumir o controle do tempo, alimentando assim a esperança de que estamos no comando da própria vida.
A crença de que é possível prever, programar e planejar o tempo da vida tem suas vantagens, ela nos permite ordenar as tarefas do dia-a-dia, fazer poupança, constituir patrimônio, erigir uma carreira e muito mais. Por um lado, em qualquer circunstância na qual a realização de algo depende de um conjunto de ações encadeadas, a presença de Cronos se faz necessária e desejável. Por outro, o seu domínio pode escravizar, engessando a vida numa busca incessante por controle. A supremacia do tempo cronológico na regulação da experiência pode nos tornar temerosos a tudo que foge à ordem pré-estabelecida. Mais do que isso, ao priorizarmos Cronos em nossa consciência, corremos o risco de sufocar o potencial psicológico de kairos no inconsciente, negando à mente o espaço necessário para a fruição com o que não é planejado. Dessa forma, nossa percepção de Cronos, por não se beneficiar do contraponto adaptativo de Kairos, deixa de ser um instrumento de integração ao ciclo da vida. Esse desequilíbrio perceptivo nos leva a temer o fluxo temporal que assinala a experiência biológica e nos prepara física e emocionalmente para os diversos papeis que devemos representar no decorrer da existência. Assim, quando relegamos Kairos ao obscurantismo da inconsciência, Cronos emerge apenas como o ceifador terrível, aquele que nos rouba o tempo de viver devorando os dias e as experiências neles vividas.
O temor da passagem do tempo como símbolo da dominância psicológica de Cronos nas mentes contemporâneas – afinal, só nos submetemos àquilo que nos aterroriza – pode ser percebido em vários aspectos. A obsessão com a juventude, e as inúmeras tentativas de tentar preservá-la em procedimentos cirúrgicos e na supervalorização de estilos de vida juvenis, é apenas um deles. A crescente empolgação de um número cada vez maior de pessoas com substâncias que alteram a percepção do tempo, sejam ilícitas como a cocaína ou a maconha, sejam lícitas como o álcool ou os antidepressivos, é outro. Na tentativa de fuga do poder avassalador de Cronos, a fantasia de um tempo não ordenado, não controlável, vem sendo alimentada compulsivamente em situações de “escape” da realidade objetiva: nos roteiros de livros e filmes celebrados, onde séculos e mundos entrelaçam-se magicamente no presente como cenário para seres imortais e jovens com superpoderes; em festas como o Carnaval ou as Raves, nas quais as noites e os dias se amalgamam num fluxo contínuo; na sedução do mundo virtual, onde as horas “voam” e as distâncias não existem… É assim que, em nossa época, Kairos tenta solapar seu banimento para o inconsciente, emergindo nesses intervalos forçados nos quais buscamos ludibriar a foice de Cronos e romper com a inevitabilidade da passagem do tempo.
O kairos que emerge do inconsciente nas brechas temporais em que simulamos o distanciamento de Cronos, porém, não é suficiente para enfrentarmos o medo do avanço do tempo. Esse Kairos é apenas a pálida sombra de um momento capaz de se contrapor ao movimento irreversível do calendário, pois ele não oferece de fato a possibilidade de nos adaptarmos à oportunidade trazida pelo inesperado. Esse kairos, não reconhecido e não celebrado pela consciência, somente nutre a desconfortável sensação de que nos enredamos num tempo cuja extensão não somos realmente capazes de perceber. E, ao nos depararmos com a constatação de que já não vemos o tempo passar, sentimos que o “momento certo” mais uma vez nos escapou e que a vida nos atropela. Talvez por isso a mente contemporânea tema tanto quanto a passagem do tempo o destino. O temor ao destino, e até mesmo à ideia de sua existência, atormenta quem vive nos tempos atuais como talvez nunca antes tenha atormentado outro grupo humano. A dominância de Cronos não apenas nos rouba a confiança na capacidade de adaptação ao desconhecido e inesperado, ela também nos rouba o sentimento de que os eventos da vida, por mais inusitados que sejam, atendem a um propósito, a um sentido e a um significado que faz com que a nossa história seja a expressão do um destino individual.
A ideia de que cada ser humano possa estar submetido a um destino, a um caminho no qual nossas escolhas apenas refletem aquilo que já está reservado para nós, é assustadora para a mente contemporânea. Assim como alimentamos a fantasia de que podemos controlar o tempo – manipulá-lo, ordená-lo e prolonga-lo ao nosso bel prazer – também nos apegamos à crença de que a vida é um livro em branco no qual redigimos a nossa história unicamente a partir do que desejamos fazer com ela. Com isso, psicologicamente falando, a luta do homem contemporâneo contra o tempo e o destino torna-se reflexo do seu incômodo diante do inevitável. A idade, a perda, o fim, a mudança, a transformação e todas as coisas que nos fazem perceber nossa vulnerabilidade diante dos fluxos da existência, são vistas como inimigas as quais devemos combater. O medo do desconhecido, do que não é controlável, sempre acompanhou a humanidade e ela sempre tentou enfrentá-lo.
Do sacrifício de animais para negociar com a vontade inquestionável dos deuses à postergação da gratificação de uma vida mundana em troca da felicidade eterna. De muitas maneiras, no decorrer de sua história, os seres humanos tentaram lidar com e conter aquilo que não podem totalmente controlar ou prever. A diferença entre nós e os humanos de outras épocas é que acreditamos que com o uso da vontade e da razão podemos driblar as forças incontroláveis que desafiam o nosso desejo consciente. O tempo e o destino, duas dessas forças, são simbolicamente domados e adequados ao modelo de um mundo guiado pela racionalidade. Destituímos o tempo de seu caráter espontâneo e inesperado, que era próprio de Kairos, e privilegiamos sua face cronológica, ajustável e previsível. Despimos o destino de seu significado mítico, adornamo-lo com as cores da superstição e da ignorância, transformando-o em motivo de pilhéria e atribuindo-lhe o valor das mentes simplórias. Acreditávamos, assim, que estaríamos seguros, livres da angústia gerada pelas surpresas que podem nos pregar as circunstâncias que não antevemos ou planejamos. Ledo engano!
A biologia com sua força cíclica nos confronta a todo o momento com nossa fragilidade diante dos ditames do tempo. O nascimento, o crescimento, o envelhecimento, a vida, enfim, nos lembra do destino particular de todo ser vivo e de toda criação que dele se origina: a morte. Cronos em sua magnitude ordenada e previsível nos leva ao encontro de Kairos, ainda que contra a nossa vontade. No imprevisto do tempo, seja da duração de um relacionamento ou de uma vida, seja no surgimento de um temporal ou no aparecimento de uma doença, Kairos emerge na esteira de Cronos e altera o ritmo das horas, dias e anos que havíamos cuidadosamente planejado. Infelizmente, nem sempre sabemos tocar as notas do momento rítmico de Kairos, e perdemos muitas chances de ouvir o destino que se anuncia. Carl Jung, o psiquiatra suíço idealizador da Psicologia Analítica, acreditava que quando aceitamos o nosso destino tendemos a ver deus nele, mas quando travamos com ele um combate passamos a ver o diabo. O que ele queria dizer é que o destino de uma pessoa é tão somente a expressão da sua individualidade. Dito de outra forma, ao encontramos o sentido da nossa genuína individualidade, ao nos tornamos aquilo que somos ou podemos ser, adquirimos a sensação e o sentimento de que os eventos inesperados da vida possuem um significado, um objetivo, que pode ser vivenciado e aprendido em acordo com nossa capacidade de adaptação e de entendimento.
Sendo assim, o destino seria um desdobramento do tempo, a causa do movimento de Cronos – que traz do passado a definição dos ciclos, instaurando o que é necessário e eliminando o que já não serve mais – e cuja consequência é a oportunidade trazida por Kairos, gerada principalmente por nossa capacidade de entrar em sintonia com o que vivemos no momento presente visando o instante futuro. Na visão junguiana, portanto, quanto mais nos afastamos de nós mesmos, quanto mais nos submetemos aos ditames das regras pré-ordenadas e dos padrões pré-definidos que visam controlar a experiência, seja em função das restrições coletivas ou individuais, menos nos sentimos um indivíduo. Ao abdicarmos de nossa individualidade, entramos em combate com o nosso destino, pois, negligenciamos a função de Cronos e perdemos o contato com Kairos. Dentro dessa perspectiva psicológica, podemos dizer que ao nos tornarmos indivíduos, nos tornamos capazes de exercer o livre arbítrio. O livre arbítrio, por sua vez, seria a capacidade de fazer de bom grado o que é preciso fazer. Melhor dizendo, o livre arbítrio seria a capacidade de vivenciar o tempo em sua duplicidade complementar: aceitando e acolhendo os ciclos de vida determinados por Cronos para aprender a reconhecer e usufruir das oportunidades inesperadas e instantâneas de Kairos. Adaptar-se! A regra de ouro dos Sofistas também parece ser o verbo da individualidade e a palavra na qual se narra um destino no ritmo dos tempos. E não somente para os antigos Gregos, mas também para nós.
Angelita Corrêa Scardua é Mestre em Psicologia Social pela USP/SP, Psicóloga especializada em Felicidade e Desenvolvimento Adulto e Professora.



quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Entre Segredos e Etnografias: O culto de Iyami nos estudos do Candomblé


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Se nos perguntarmos qual o significado do africano que insiste em permanecer no interior de diversas práticas culturais, veremos que só há um, que é o de primitivo. Ver resquícios africanos onde quer que seja nada mais é do que procurar identificar elementos primitivos no interior de uma sociedade civilizada, ou moderna ou capitalista (BIRMAN, 1980: 18).
A construção dos estudos sobre o Candomblé esteve marcada pela busca da África em seu interior. A pureza e a impureza são lidas através de uma linguagem simbólica construída através de relações sociais, que por sua vez, ao serem apropriadas pelo discurso escrito, traduzem suas distinções, em reduções interpretativas. A impureza do contexto brasileiro proporcionado pelo contato com as práticas indígenas, caboclas e angolas, pode ser entendida como um subproduto da organização nagô - construída como oficial - na medida em que ordenar pressupõe repelir os elementos não apropriados; fixando-se em um domínio simbólico (DOUGLAS, 1991).
Tal problemática é entendida, como iniciada pelos estudos de Nina Rodrigues e Artur Ramos no início do séc. XX, através do modelo litúrgico nagô elaborado como um padrão analítico de diferenciação entre religião e magia, associando a religião aos terreiros nagôs africanizados e a magia aos cultos misturados de Candomblés angolas e caboclos.
A antropóloga sergipana Beatriz Góis Dantas (1988) informa que essa distinção foi produto, da iniciativa intelectual de transplante fidedigno da organização religiosa africana para compreensão dos Candomblés. Através de continuidades com a África, a intelectual afirma que a academia foi responsável pela nagoização. Desenvolvendo quadros associativos, a religião estaria relacionada aos terreiros nagôs puros em contraste com a magia/feitiçaria dos Bantos (DANTAS, 1988:125).
A africanidade eleita como referencial na construção do modelo binário do Candomblé, é um fator diferencial, um capital simbólico, podendo ser verificada na contemporaneidade como recurso utilizado por Candomblés antigos para se distinguir dos de fundação recente. Certamente Beatriz Dantas, merece ressalvas quanto ao seu posicionamento unilateral de explicação do privilégio nagô na escrita.
Penso a nagoização como uma experiência tangível, para além de um movimento discursivo nos estudos do Candomblé. Os processos de identificação foram construídos no próprio devir dos Candomblés em Salvador, com discursos próprios de distinção, sendo a África, um elemento entre tantos, utilizado para a legitimação de um circuito de Candomblés em detrimento dos demais.
A produção científica dos intelectuais brasileiros e não brasileiros sobre os Candomblés em Salvador são construções fragmentadas de memórias e experiências dos terreiros analisados. A autoridade da escrita contribui analiticamente, como mais um aspecto para a interpretação de como os segredos de Iyami foram abordados em seus relatos. Estas obras exercem certa influência sobre os iniciados, que ali descobrem, por exemplo, características míticas de espíritos que antes desconheciam (CAPONE, 1999: 82).
Os lugares de escrita ocupados por Nina Rodrigues (1977, 2005), Edson Carneiro (1961), Deoscóredes dos Santos (1962), Pierre Verger (1992) e Juana Elbein (1986) são importantes referências para a compreensão das distintas situações do culto a Iyami, presente nos estudos sobre o Candomblé baiano. A escrita sobre o culto de Iyami envolve limites de conhecimentos e restrições em sua observação, a decadência por Edson Carneiro e a emergência por Deoscóredes dos Santos, demonstra como esses processos vividos na realidade religiosa dos Candomblés são expressos no discurso escrito, interferidos por níveis de relacionamento antropológico e iniciático, definidos como duas metades de um obí(semente africana de cunho litúrgico).
Por Paul Johnson (2002), o processo de retenção e aquisição do conhecimento é identificado como secretismo, garantido pela sociedade mais ampla, que não tem acesso a essas sabedorias e legitima o longo complexo da iniciação, através do controle dos conhecimentos entre os pares. Se pensarmos essa bibliografia selecionada, através da perspectiva de Johnson (2002), os segredos do culto de Iyami foram revelados através de suas etnografias, pois, ao descreverem os processos rituais e as cerimônias privadas, contribuiu para transmissões de conhecimentos destituídos de regras/rituais internas, revelando seus conhecimentos.
O segredo é um fenômeno social cujo valor deriva da sua circulação dentro de comunidades delimitadas, como as hierarquias rituais do Candomblé, mas, diferentemente da epistemologia ocidental que o reduz a enigma e a resolução, entre as comunidades de santo, ele é concebido como awô (fundamento, segredo), manifestando a partir de sinais diacríticos visualizados em rituais públicos ou internos, sem perder o mistério que o circula.
Os conhecimentos descritos sobre as versões do culto a Iyami na bibliografia selecionada, não poderá ser compreendida como revelação dos mistérios das mães ancestrais, já que o segredo no Candomblé, de forma particularizada, possui uma dinâmica de linguagem composta de inúmeros mecanismos comunicacionais que inibem a sua compreensão, requerendo conhecimento cosmológico situacional para que os eventos sejam passíveis de interpretação (APTER, 1992).
O médico, o cientista e Iyami Ajé Chálugá
Nina Rodrigues (1862-1906) em sua escrita demonstra ser um leitor interessado nas produções acadêmicas desenvolvidas na Europa Ocidental, particularmente no eixo de produções acadêmicas entre França e Inglaterra sobre grupos sociais na África Ocidental, no início do processo colonialista. O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos foi publicado na Revista Brasileira no Rio de Janeiro em 1896 e traduzido para francês em 1900, considerada como uma elegante monografia por Marcel Mauss[2] em 1902 (FERRETI, 2006:58). Os Africanos no Brasil, publicado em 1932 foi deixado na gráfica brasileira antes de Nina Rodrigues viajar e falecer na França em 1906.
Almejava a inserção de sua obra no circuito internacional das pesquisas acadêmicas, que no contexto correspondia ao período de hegemonia do evolucionismo no pensamento antropológico. A escrita monogênica dos missionários na África Ocidental era alvo de críticas científicas. Rodrigues acreditava menos na capacidade intencional dos missionários conferirem erros as suas interpretações, daqueles induzidos através dos próprios informantes africanos pela natural tendência do seu espírito e educação (RODRIGUES, 1977:217).
Nicolau Parés (2006) informa que a leitura de Ellis (1894) por Nina Rodrigues, foi possivelmente favorecida pela intervenção de Martiniano do Bonfim (PARÉS, 2006: 27). Não será possível confirmar tal relação, mas, é certo que as publicações do administrador Ellis chegaram às mãos de Nina, inferindo em sua produção características particulares. Nina Rodrigues influenciado diretamente pela obra de Ellis e pelo pensamento de finais do séc. XIX mapeou as divindades yorubás cultuadas pelos terreiros fetichistas da Bahia e atribuiu definições sociais a sua presença nesse sagrado quadro sistemático.
A obra The yoruba-speaking people of the slave coast of Africa (ELLIS, 1894) está repleta de preconcepções baseadas no padrão de moral do período vitoriano na Inglaterra. Nesse período diferentes formas de materialismos começavam a surgir no cenário acadêmico europeu; o materialista positivista, o evolucionista, o utilitarista, o dialético em constante diálogo com uma onda de puritanismo de caráter religioso, delineando o comportamento social marcado por dogmatismos e radicalismos.
O coronel Ellis emprenha-se em mostrar que Olorum não passa de uma personificação do firmamento com funções puramente meteóricas a quem ele nega todo e qualquer sentido, noção ou idéia de um ser onipresente (RODRIGUES, 1977:217).
Entre muitos elogios, Rodrigues nos indica a proposta de escrita do administrador inglês. O primeiro cientista a invocar em favor da elevação da concepção religiosa dos nagôs, através de um brilhante estudo comparativo das crenças religiosas dos povos da Costa dos Escravos (RODRIGUES, 1977: 217). O discurso relaciona-se a uma compreensão mais ampla do panorama de produções escritas no Golfo do Benin, distinguindo Ellis das demais escritas missionárias, que poderiam ser caracterizadas como uma sobrevivência da revelação divina do Paraíso (RODRIGUES, 1977: 217).
O nosso estudo teve de inspirar-se pura e exclusivamente na observação direta e pessoal do fenômeno estudado. E é com satisfação que o encontramos agora quase todo confirmado pelas observações daquele cientista. Em muitos pontos se corroboram nesta observação independente deduções e reflexões que sempre veio acordo os mesmos fatos nos surgiram a ele em África e a mim no Brasil. No entanto, são os trabalhos do coronel Ellis que nos habilitam a discriminar as partes de que se compuseram no Brasil as práticas fetichista e, ao mesmo tempo, a julgar das modificações que aqui têm elas experimentado (Rodrigues, 1977: 216)
As cosmologias e comportamentos tendenciaram Rodrigues a entender os princípios da originalidade africana em detrimento das contaminações da nova realidade social do negro no Brasil. Para tanto, baseado no modelo exposto por Elllis, o panteão dos orixás foi reproduzido. Fruto de um estupro mítico do ventre de Yemanjá nasceu Dadá, Xangô, Ogum, Olokun, Oloxá, Oyá, Oxum, Otá, Oko, Oxossi, Okê, Ajê-xalagá, Xaponã, Orun, Oxu, de seus seios monstruosos nasceram dois rios e uma lagoa. Nina indica problemas no mito por ser reducionista, como também motivado pelas informações pessoais transmitidas por africanos que contestaram ou mesmo ignoraram essa versão mítica.
Ajê Xalagá e Agê-Chálugá são nomes para designar a mesma divindade, trata-se de diferentes ortografias empregadas no processo de transcrição. Essa divindade foi descrita como orixá da medicina, da saúde, riqueza e dos mercados, muito estimados pelos nagôs (RODRIGUES, 1977: 230; RAMOS, 2001). Nina Rodrigues desconsiderou o contexto de feitiçaria que Ellis situou essa divindade. O termo ajé (feiticeira) não aparece nas duas obras citadas de Nina Rodrigues, sendo silenciada e desconectada das características atribuídas a Ajé Chálugá no interior do Gantois.
Outra divindade cultuada no Brasil como Iyami recebe o nome deApaoká, a árvore. Ellis teceu consideráveis informações sobre o seu poder e culto entre os yorubás. Diferentemente da divindade masculina Iroko, a gameleira (fícus religiosa), descrito como objeto de culto fervoroso e sob o título de planta-deus (RODRIGUES, 2005:36), Apaoká, não é citada por Nina Rodrigues como existente na cosmogonia no Gantois e nos outros terreiros observados. Há um misto de segredo e poderes mágicos em sua escrita, quando o assunto é o inanimado e o culto aos vegetais. Descreve que nos arbustos que cercam o tronco muita gente tem visto alta noite bruxulear fraca luz que extingue pela madrugada (RODRIGUES, 2005:37).
Para Nina Rodrigues as árvores são antes altares ou residências temporárias dos deuses (...) é bem possível que a árvore seja a um tempo uma e outra coisa (2005:39), possui acepção dupla, a árvore pode ser um fetiche animado ou representar apenas moradia ou altar. Pontua que os conhecimentos sobre a fitolatria estavam em franco processo de desaparecimento com a morte dos últimos africanos na Bahia, pois, não fazia parte de seus interesses transmitirem esses conhecimentos específicos e formar discípulos.
Os mitos e o pensamento mágico-religioso do culto aos orixás têm na simbologia da árvore um de seus temas recorrentes. Na cosmogonia, a árvore, surge como o princípio da conexão entre o mundo sobrenatural e o mundo material. As árvores estão associadas à ìgbá ìwà ñû (o princípio da criação), ou seja, em uma época em que o homem adorava árvores. Conforme o mito de fundação a árvore ao pé da qual o caçador[3] encontrou mel, e em cujo redor desenvolveu-se a cidade de Ketu (LÉPINE, 1978:252).
Os estudos folclóricos surgidos na segunda metade do século XIX estavam interessados na sobrevivência dos elementos inadaptados e nas relíquias de culturas quase desaparecidas, objetivando através do modelo comparativo a continuidade cultural. Para o antropólogo Tylor o que poderia ser popularmente visto como mais indefinido e incontrolável que os produtos da imaginação revelados em mitos e fábulas? (TYLOR, 1871:90).
Dentro desse questionamento, Nina Rodrigues adentra nos estudos sobre o folclore (RODRIGUES, 1977:183). Afirma o médico e pesquisador maranhense que não é possível identificar se foram os negros que trouxeram de suas terras respectivas, na África, ou se aprenderam uns dos outros no Brasil (RODRIGUES, 1977: 213).
Entre alguns contos transcritos na narrativa de Nina Rodrigues, dois se tornam pertinentes. O primeiro conto intitulado Por que, das mulheres, umas têm os peitos grandes e outras pequenos (pessoal) (RODRIGUES, 1977: 205) aborda a imagem das mulheres-monstros, associando a condição feminina aos aspectos anti-sociais que compõe a sociedade mais ampla, designando relações de poder e papéis sociais particulares. O segundo intitulado A feiticeira que tirava os olhos e os braços (pessoal) (RODRIGUES, 1977: 207) abarca a antropofagia das mulheres velhas, a inexistência de aspectos sociais e a presença de aspectos negativos e malignos na imagem das mulheres segregadas da vida social.
Ao pensarmos a obra de Nina Rodrigues em relação à produzida por Ellis, verificamos similaridades na construção das identidades relacionadas ao gênero feminino, pois tanto no contexto do sudoeste nigeriano quanto entre os grupos africanos na Bahia, a imagem antropozoomorfica e antropofágica dessas entidades estão presentes, mesmo que circunscritas pelo âmbito dos estudos do maravilhoso.
A feitiçaria foi identificada como manifestação de um poder físico anti-social oriundo de pessoas situadas nas regiões não estruturadas da sociedade. Nina Rodrigues informa que no final do séc. XIX que o feiticeiro, o adivinho, o sacerdote, o médico e o sábio começaram por se confundir num mesmo indivíduo (RODRIGUES, 2005:64), pois, para o negro tudo pode ser enfeitiçado (RODRIGUES, 2005:60). A feitiçaria apoiada na interpretação de Nina Rodrigues ultrapassaria a categoria de instituição social, ampliada e integrada na forma de se relacionar socialmente com as pessoas e os objetos em um discurso particularizado.
A decadência e a descrição densa de Iyami Apaoká
Edson Carneiro (1912-1972) foi um leitor e crítico da obra de Nina Rodrigues. Formado em direito, trabalhava como jornalista e era muito ativo nas práticas etnográficas em terreiros Ketu de Salvador. Sua produção escrita é o resultado de seu posicionamento político. Para ele, a produção do discurso escrito tanto jornalístico quanto etnográfico oferecia uma oportunidade para reconstruir a opinião pública sobre o Candomblé, de uma maneira mais favorável (CASTILLO, 2008:117). O que tendia a confundir devido à nova realidade dos africanos no Brasil, como pontuou Nina Rodrigues se tornou para Carneiro, alvo de distinções; o feiticeiro não é o sacerdote.
Essa tentativa de separação entre sacerdote e feiticeiro remete ao esforço desenvolvido pelos intelectuais no sentido de mostrar o Candomblé como verdadeira religião, por oposição à magia, particularmente à magia negra, pois se reconhecia que a feitiçaria era ilegal no Brasil e também que não havia lugar para ela na atmosfera amável do Candomblé da Bahia. (LANDES, 1967: 233).
Em meados dos anos 40 Edson Carneiro em Candomblés da Bahia(1948) afirmava que o culto das Iyabás, como Apó Oká, Yamaçã Yaamalê (mãe de Xangô), Euá e Ônilé, estão em franco processo de desaparecimento (CARNEIRO, 1961:80). Diferentemente na década de sessenta Deoscóredes dos Santos emHistória de um Terreiro Nagô, verificou algo distinto do apresentado por Carneiro duas décadas atrás. Deoscóredes dos Santos, o Mestre Didi, descreve o culto de Apaoká como integrante do calendário religioso do Ilê Axé Opô Afonjá, formado por ritos e práticas particulares. Os assentamentos das Iyami permanecem junto a grandes árvores como a jaqueira e, geralmente são enterradas, pois, a terra representa o seu ventre (SANTOS, 1986).
Todos os anos, após as festas de Oxun, realiza-se a segunda-feira de Rokô e Apaoká, ainda dentro do ciclo de festas de Oxalá. Rokô é simbolizado por uma gameleira e Apaoká uma jaqueira, ambas as árvores sagradas. É oferecida aos dois orixás certa quantidade de obi, orobô, galos e galinhas para a matança. (...) Ao amanhecer dessa segunda-feira, depois do último domingo das festas de Oxun, faz-se a limpeza e o asseio nos pés das duas árvores. Depois de tudo bem limpo, do osé feito com a mudança das águas de todas as vasilhas que ficam entre as raízes do Apaoká e do Rokô, a pessoa encarregada de tomar conta das oferendas recebem das mãos da Iyalorixá todos os ingredientes necessários àquela obrigação. Encaminham-se então todos para as árvores sagradas, amarram em cada uma delas um grande ojá branco e colocam ali por perto todos os ingredientes da obrigação. Os festejos começam com a matança. (SANTOS, 1962:71-72)
A descrição densa do culto a Apaoká realizada por Mestre Didi em 1962 foi legitimada por Mãe Senhora, sua mãe genética e Iyalorixá do Opô Afonjá entre 1940 a 1967, e pelo casamento com a antropóloga Juana Elbein, que permitiu o seu contato com a escrita acadêmica de forma mais sistemática. Há que se destacar que Mãe Senhora, Maria Bibiana do Espírito Santo (1890-1967) era consagrada a Oxum Miwá e possuía o título de Iya Egbé. Título que representa o princípio e a liderança feminina na comunidade, como também dos poderes das ancestrais femininas nas decisões sociais, além de pertencer ao quadro sacerdotal do culto a Baba Egum, onde Mestre Didi possui o cargo de Alapini.
Iyá mi agbá ijexá orá iyêiyê Eniti ayabá teni bu omi ô
Iyá mi kê sóró kê mãmá só
bibá égun ayabá ô mo ô
Ebé ri odô ni kôdô
Ora iyêiyê ô!
(SANTOS, 1962:73-74)
Em uma cantiga a Oxum reproduzida por Mestre Didi, termos e definições como Iyá mi Agbá (minha mãe mais velha); ayabá (termo honorífico dado às divindades femininas na região yorubá) e iyami (minha mãe) estão relacionadas a Oxum. Cânticos e rezas direcionadas a outras divindades femininas, como Yemanjá, Oba, Oyá, Nanã, demonstram tais associações. As aproximações do culto as Iyabás e o culto de Iyami podem ser sustentadas, pela condição feminina ancestral que precede o fenômeno da variação de termos e nomes para essas divindades.
O pouso do pássaro na escrita
Três anos após a publicação, uma importante narrativa sobre Iyami se insere nesse cenário pelo fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger (1902-1996) intitulada Grandeur et decadence du culte de Ìyámi Òsòròngà
(ma mére sorcière) chez les yorouba publicada em Paris no ano de 1965[4], baseada em histórias de tradição oral. Essa narrativa é resultante das pesquisas realizadas em Oshogbô na Nigéria, entre os anos 1963 e 1966 como parte de sua pesquisa de doutoramento, defendida na Sorbonne no ano de 1966 (LUHNING, 1999).
A compreensão de Iyami no interior do Candomblé por Pierre Verger é construída através de Iyami Oxorongá, o pássaro sanguinário que habita a copa das árvores e se alimenta de intestinos humanos. Localizado em um ritual muito bem preservado, Iyami Oxorongá está presente em uma cerimônia especial antes das danças públicas, denominado padê· (VERGER, 1992; SANTOS, 1986; LAWAL, 1996; CUNHA, 1984). Nestas ocasiões, muito freqüentes, orações são feitas sucessivamente a Exu, o mensageiro dos orixás, aos esa, os antigos africanos que instituíram os cultos iorubas na Bahia, aos diversos orixás dos cultos em questão, e, enfim, Iyami Osorongá é saudada com as mesmas palavras usadas na África (VERGER, 1992).
Para Juana Elbein dos Santos (1986) a imagem do pássaro se identifica com a do peixe, pois, as penas e as escamas são visualizadas como pedaços do corpo materno, representando o símbolo da fecundidade e do poder da gestação de Iyami. Rego (1980) informa que a vagina, cultuada como o órgão sagrado, a Iya Mapô, cultuada na Bahia como uma qualidade de Iyami (REGO, 1980:270). Referente à Iya Mapô, Makinde (2004), a relaciona com todas as divindades a partir de sua ligação com a água da vagina (liquido amniótico), considerada como o local que abriga o segredo do poder da mulher e por onde a criança emerge. (MAKINDE, 2004:169)
Para Monique Augras (2000) nada pode aquecer o velho pássaro, pois, ele mesmo é fonte de calor, e assim, o medo de ficar preso para sempre dentro do corpo materno é claramente assumido através do órgão sexual feminino, representando o limite, uma barreira, simbolizando a tampa da cabaça, fechando o ventre da mulher, pois, que cilada é essa, se não a própria vagina aterradora?(AUGRAS, 2000: 18-19; LAWAL, 1996).
Como persistência de uma memória que configura as Iyami em mães antropofágicas (REGO, 1980) é constituída a relação entre Iyami e os órgãos sexuais. A uma história do odu osá meji que conta como Iya Mapô, a mãe da vagina, recorreu aos bons ofícios de Iyami Osorongá, para colocar o sexo no devido lugar na mulher. Várias partes do corpo tinham sido experimentadas, mas, todas se revelam inconveniente. Foi Exu que mediante ebó, com duas bananas e um pote, acertou o lugar definitivo. Assim, para a definição do lugar que os órgãos sexuais irão assumir no corpo é realizado um acordo mítico entre o princípio feminino e masculino (REGO, 1980:19).
A antropóloga Juana Elbein dos Santos confere a sua narrativa o discurso de dentro para fora (1986:16), justificada pela perspectiva interna que seu discurso escrito esteve respaldado. Para tanto, em sua tese de doutoramento defendido na França em 1970; Os nagô e a morte, hoje uma referência nos estudos do Candomblé (castillo, 2008: 149), afirma que o aumento do interesse por Iyami e a crescente publicação de pesquisadores estrangeiros, propiciou a mudança do significado de Iyami de boa mãe ao sentido mais pejorativo de bruxa (SANTOS, 1986:113),
O corpus histórico analisado abordou unilateralmente os significados da presença e culto de Iyami nos Candomblés baianos. A antropóloga define as abordagens de Iyami como limitadas e associadas ao estudo da bruxaria (...) estabelecido em um dito pacto vergonhoso entre o sacerdote e a bruxa, tendo seu símbolo total confundido com uma representação persecutória e castradora (SANTOS, 1986: 113-114).
Informa que a dicotomia do símbolo Iya-mí fez com que o estudo dos ancestrais femininos fosse separado da religião Nagô, limitado e associado ao estudo da bruxaria (ibid, 1986:114). A separação de Iyami aos Orixás por esse pensamento é conseqüente de um processo intencional e não terminológico, pois, conceitos como àse, iwà, orisà, òrun, odúiya-mi, podem ser analisados, mas, não traduzidos (ibid, 1986: 22).
Esse posicionamento dicotômico é direcionado à pesquisa de Pierre Verger, gerando um contraditório artigo Pierre Verger e os resíduos coloniais (1982), pois, muitas das críticas inferidas a Verger deveriam ser direcionadas a sua própria escrita, já que é baseada em categorias sistêmicas e universais, gerando uma confusão intencional dos contextos citados. O leitor se perde entre as descrições do contexto africano e a etnografia no Ilê Axé Opô Afonjá.
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Fig. 1 - Assento de Iyami Oxorongá - Olga de Alaketu. Aquarela de Carybé (1980: 79)
Em entrevista a pesquisadora Teresinha Bernardo, a Iyalorixá Olga do Alaketu comenta sobre o assentamento de Apaoká. O assentamento foi registrado por Carybé em (1980: 79) sob o nome de Oxorongá. A doçura e o afeto estão presentes no tratamento da Iyalorixá para com as divindades nomeadas deSanta da Barriga, diferentemente do povo de santo que tem medo de Ia mi (...). Tanto é que a sacerdotisa tem Iapaocá assentada em seu terreiro e (...) está relacionada com os ovários, o útero, a gravidez, o aborto e todos os demais aspectos que constituem a singularidade feminina (BERNADO, 2003: 131).
O terreiro do Alaketu em relação ao Gantois e o Opô Afonjá demonstrou, certa falta de agilidade em atrair a atenção dos produtores do discurso etnográfico resultando em uma relativa marginalização etnográfica (CASTILLO, 2008: 128). É interessante pensar na relativa marginalização do terreiro e na exposição material do culto a Iyami. Considerado tanto pela etnografia quanto pelo povo de santo como um dos mais secretos da liturgia afro-religiosa. No entanto, o medo das Iyami pelo povo de santo não pode ser retirado da fala positiva de Mãe Olga, pois, a superposição de categorias é fruto do discurso escrito, já que na realidade experienciada dos Candomblés, os orixás cultuados são constituídos como todos completos e compartilhados de uma mesma natureza sagrada.
Considerações finais
Os segredos que envolvem o culto de Iyami expressam a interação entre a racionalidade e a magia desenvolvida pela postura etnográfica. O modo particular como se deu esse imbricamento possibilita perceber que as religiões mágicas não se opõem como um todo, às práticas racionais exigidas pelo mundo moderno. O medo e o afeto coexistem, o respeito e o caos dialogam na postura do povo de santo para com as Iyami, independente do nome assumido, mas, dependente da situação que lhe é presenciada.
São muitas as formas de cultuá-las e de percebê-las. Sua presença nos mitos de criação e nas dinâmicas sociais dos Candomblés, a que estão presentes, confere as Iyami uma complexidade mítica que rompe o tempo e o espaço, sendo atualizadas no cotidiano dos Candomblés através dos sentimentos e posturas prestadas as ancestrais.
Baseada em citações retalhadas e identificações descontextualizadas, a trajetória etnohistoriográfica do culto a Iyami em Salvador, realizada por meio do material escrito exposto permitiu questionar as lacunas e orientar-me com os avanços de suas escritas, que certamente ampliou o trivial e reduziu potenciais antropológicos.

por Luciana de Castro Nunes Novaes(1)
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[1] Licenciada e Bacharel em História (UCSAL). Mestranda em Estudos Étnicos e Africanos (PÓS-AFRO/UFBA) . Mestranda em Arqueologia (PROARQ/UFS)
[2] MAUSS, Marcel. Nina Rodrigues, L´animisme fetichiste des nègres de Bahia. In: L´Année Sociologique 1900-1901. Paris, Librairie Felix Alcan, 1902.
[3] Ver mito: Oxossi mata o pássaro das feiticeiras; Ode respeita proibição ritual e morre. Oshosi, que também é um dos que vieram de Iemanjá, é o patrono dos caçadores. Ele mora na floresta, e leva o jogo para os laços e armadilhas de seus fiéis seguidores, a quem ele também protege os animais de rapina. (ELLIS, 1894:68)
[4] Mais tarde publicado duas vezes em português, uma vez excluindo os itans (1992) e a outra com estes (1994).