Nos meus próximos post estarei colocando textos de aulas que tive quando da especialização em Ciências das Religiões, em alguns casos citarei os autores, mas em outros declinarei devido os mesmos serem um compilado da própria aula. Acredito que desta forma estarei ajudando a aqueles que possuem vontade em apreender e por um motivo qualquer estão impossibilitados, espero que gostem!
O Mito
É necessário deixar bem claro, nesta tentativa de
conceituar o mito, que o mesmo não tem
aqui a conotação usual de fábula, lenda, invenção, ficção, mas a acepção que
lhe atribuíam e ainda atribuem as sociedades arcaicas, as impropriamente
denominadas culturas primitivas, onde mito é o relato de um acontecimento
ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais. Em
outros termos, mito, é o relato de uma história verdadeira, ocorrida nos tempos
dos princípios, quando com a interferência de entes sobrenaturais, uma
realidade passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou tão somente
um fragmento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma espécie animal ou vegetal, um
comportamento humano. Mito é, pois, a narrativa de uma criação: conta-nos de
que modo algo, que não era, começou a ser.
De outro lado, o mito é sempre uma representação
coletiva, transmitida através de várias gerações e que relata uma explicação do
mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra
"revelada", o dito. E, desse modo, se o mito pode se exprimir ao
nível da linguagem, "ele é, antes de tudo, uma palavra que circunscreve e
fixa um acontecimento". "O mito é sentido e vivido antes de ser
inteligido e formulado. Mito é a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o
acontecimento no coração do homem, emotivo como uma criança, antes de fixar-se
como narrativa".
O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas
cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós
através de várias gerações. E, na medida em que pretende explicar o mundo e o
homem, isto é, a complexidade do real, o mito não pode ser lógico: ao revés, é
ilógico e irracional. Abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-se a
todas as interpretações. Decifrar o mito é, pois, decifrar-se. E, como afirma
Roland Barthes, o mito não pode, conseqüentemente, "ser um objeto, um
conceito ou uma idéia: ele é um modo de significação, uma forma". Assim,
não se há de definir o mito "pelo objeto de sua mensagem, mas pelo modo
como a profere".
É bem verdade que a sociedade industrial usa o mito
como expressão de fantasia, de mentiras, daí mitomania, mas não é este o
sentido que hodiernamente se lhe atribui.
O mesmo Roland Barthes, aliás, procurou reduzir,
embora significativamente, o conceito de mito, apresentando-o como qualquer
forma substituível de uma verdade. Uma verdade que esconde outra verdade.
Talvez fosse mais exato defini-lo como uma verdade profunda de nossa mente. É
que poucos se dão ao trabalho de verificar a verdade que existe no mito,
buscando apenas a ilusão que o mesmo contém. Muitos vêem no mito tão-somente os
significantes, isto é, a parte concreta do signo. É mister ir além das
aparências e buscar-lhe os significados, quer dizer, a parte abstrata, o
sentido profundo.
Talvez se pudesse definir mito, dentro do conceito
de Carl Gustav Jung, como a conscientização de arquétipos do inconsciente
coletivo, quer dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem
como as formas através das quais o inconsciente se manifesta.
Compreende-se por inconsciente
coletivo a herança das vivências das gerações anteriores. Desse modo, o
inconsciente coletivo expressaria a identidade de todos os homens, seja qual
for a época e o lugar onde tenham vivido.
Arquétipo, do grego "arkhétypos", etimologicamente, significa modelo
primitivo, idéias inatas. Como conteúdo do inconsciente coletivo foi empregado
pela primeira vez por Yung. No mito, esses conteúdos remontam a uma tradição,
cuja idade é impossível determinar. Pertencem a um mundo do passado, primitivo,
cujas exigências espirituais são semelhantes às que se observam entre culturas
primitivas ainda existentes. Normalmente, ou didaticamente, se distinguem dois
tipos de imagens:
a) imagens (incluídos os sonhos) de caráter pessoal, que remontam a
experiências pessoais esquecidas ou reprimidas, que podem ser explicadas pela
anamnese individual;
b) imagens (incluídos os sonhos) de caráter impessoal, que não podem ser
incorporados à história individual. Correspondem a certos elementos coletivos:
são hereditárias.
A palavra textual de Jung ilustra melhor o que
expôs: "Os conteúdos do inconsciente pessoal são aquisições da existência
individual, ao passo que os conteúdos do inconsciente coletivo são arquétipos
que existem sempre a priori.
Embora se tenha que admitir a importância da
tradição e da dispersão por migrações, casos há e muito numerosos em que essas
imagens pressupõem uma camada psíquica coletiva: é o inconsciente coletivo.
Mas, como este não é verbal, quer dizer, não podendo o inconsciente se
manifestar de forma conceitual, verbal, ele o faz através de símbolos. Atente-se para a etimologia de símbolo, do grego "sýmbolon", do verbo "symbállein", "lançar com", arremessar ao mesmo tempo,
"com-jogar". De início, símbolo era um sinal de reconhecimento: um
objeto dividido em duas partes, cujo ajuste e confronto permitiam aos
portadores de cada uma das partes se reconhecerem. O símbolo é, pois, a
expressão de um conceito de eqüivalência. Assim, para se atingir o mito, que se
expressa por símbolos, é preciso fazer uma eqüivalência, uma
"con-jugação", uma "re-união", porque, se o signo é sempre
menor do que o conceito que representa, o símbolo representa sempre mais do que
seu significado evidente e imediato.
Em síntese, os mitos são a linguagem imagística dos
princípios. "Traduzem" a origem de uma instituição, de um hábito, a
lógica de uma gesta, a economia de um encontro.
Na expressão de Goethe, os mitos são as relações
permanentes da vida.
Se mito é, pois, uma representação coletiva, transmitida
através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo, então o que é mitologia?
Se mitologema é a soma dos
elementos antigos transmitidos pela tradição e mitema as unidades constitutivas desses elementos, mitologia é o "movimento" desse material:
algo de estável e mutável simultaneamente, sujeito, portanto, a transformações.
Do ponto de vista etimológico, mitologia é o estufo dos mitos, concebidos como
história verdadeira.
Quanto à religião, do latim "religione", a palavra possivelmente se prende ao verbo "religare", ação de ligar.
Religião pode, assim, ser definida como o conjunto
das atitudes e atos pelos quais o homem se prende, se liga ao divino ou manifesta sua dependência
em relação a seres invisíveis tidos como sobrenaturais. Tomando-se o vocábulo
num sentido mais estrito, pode-se dizer que a religião para os antigos é a
reatualização e a ritualização do mito. O rito possui, "o poder de
suscitar ou, ao menos, de reafirmar o mito".
Através do rito, o homem se incorpora ao mito,
beneficiando-se de todas as forças e energias que jorraram nas origens. A ação
ritual realiza no imediato uma transcendência vivida. O rito toma, nesse caso,
"o sentido de uma ação essencial e primordial através da referência que se
estabelece do profano ao sagrado". Em resumo: o rito é a praxis do mito. É
o mito em ação. O mito rememora, o rito comemora.
Rememorando os mitos, reatualizando-os,
renovando-os por meio de certos rituais, o homem torna-se apto a repetir o que
os deuses e os heróis fizeram "nas origens", porque conhecer os mitos
é aprender o segredo da origem das coisas. "E o rito pelo qual se exprime
(o mito) reatualiza aquilo que é ritualizado: re-criação, queda,
redenção". E conhecer a origem das coisas - de um objeto, de um nome, de
um animal ou planta - "eqüivale a adquirir sobre as mesmas um poder
mágico, graças ao qual é possível dominá-las, multiplicá-las ou reproduzí-las à
vontade". Esse retorno às origens, por meio do rito, é de suma
importância, porque "voltar às origens é readquirir as forças que jorraram
nessas mesmas origens". Não é em vão que na Idade Média muitos cronistas
começavam suas histórias com a origem do mundo. A finalidade era recuperar o
tempo forte, o tempo primordial e as bênçãos que jorraram illo tempore.
Além do mais, o rito, reiterando o mito, aponta o
caminho, oferece um modelo exemplar, colocando o homem na contemporaneidade do
sagrado. É o que nos diz, com sua autoridade, Mircea Eliade: "Um objeto ou
um ato não se tornam reais, a não ser na medida em que repetem um arquétipo.
Assim a realidade se adquire exclusivamente pela repetição ou participação;
tudo que não possui um modelo exemplar é vazio de sentido, isto é, carece de
realidade".
O rito, que é o aspecto litúrgico do mito,
transforma a palavra em verbo, sem o que ela é
apenas lenda, "legenda", o que deve ser
lido e não mais proferido.
À idéia de reiteração prende-se a idéia de tempo. O mundo transcendente dos deuses e heróis é religiosamente acessível e
reatualizável, exatamente porque o homem das culturas primitivas não aceita a
irreversibilidade do tempo: o rito abole o tempo profano, cronológico, é linear
e, por isso mesmo, irreversível (pode-se "comemorar" uma data
histórica, mas não fazê-la voltar no tempo), o tempo mítico, ritualizado, é
circular, voltando sempre sobre si mesmo. É precisamente essa reversibilidade
que liberta o homem do peso do tempo morto, dando-lhe a segurança de que ele é
capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar seu mundo. O profano
é tempo da vida; o sagrado, o "tempo" da eternidade.
A "consciência mítica", embora rejeitada
no mundo moderno, ainda está viva e atuante nas civilizações denominadas
primitivas: "O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação
destinada a satisfazer a uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz
reviver uma realidade primeva, que satisfaz as profundas necessidades
religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social e
mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma
função indispensável: ele exprime, exalta e codifica a crença; salvaguarda e
impõe os princípios morais; garante a eficácia do ritual e oferece regras
práticas para a orientação do homem. O mito é um ingrediente vital da
civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é, ao contrário, uma
realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é, absolutamente, uma
teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da
religião primitiva e da sabedoria prática".
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