sexta-feira, 26 de julho de 2013

Texto muito bom, vale a pena ver...



VIVER DIONISO
- UMA EXPERIÊNCIA ARQUETÍPICA -


Mônica Helena Weirich de Santana
Psicóloga Clínica, Arteterapeuta, Especialista em Dependência Química, Especialista em Psicologia Junguiana pelo IBMR, Analista Trainee do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro.

RESUMO

 O presente texto apresenta uma visão do deus grego Dioniso como uma força arquetípica presente na psique humana desde a antiguidade até a atualidade. Esta força, quando vivenciada pelas pessoas na época presente, assim como era na Grécia antiga, pode trazer benefícios psicológicos através da compensação entre a atitude da consciência e os conteúdos do inconsciente.


INTRODUÇÃO
Dioniso é realmente um deus misterioso, complexo, múltiplo e paradoxal. Quanto mais se estuda sobre ele, mais há a descobrir e estudar, num paralelo com seus mistérios sobre a morte e renascimento, sobre a vida que sempre se renova. Ele é o estranho estrangeiro, que simplesmente surge e impõe sua força arrebatadora, que Kerényi (2002) denomina zoé, a vida infinita, de todos os seres viventes, energia coletiva que não admite a experiência de aniquilação. Esta é a essência dos rituais da religião dionisíaca, que expressavam a alternância das estações e ciclos da natureza, assim como a trama estrutural do deus morto e ressuscitado, que simboliza, segundo Chevalier e Gheerbrant, "o esforço de espiritualização da criatura viva, desde a planta até o êxtase: Deus da árvore, do bode, do fervor e da união mística, ele sintetiza, em seu mito, toda a história de uma evolução". (1994:341).
Dioniso possui vários nomes e inúmeros epítetos, como menção aos locais de seu culto, a seus atributos e às variações de seu mito. São mais conhecidos os nomes Dioniso e Baco. Segundo Junito Brandão (1995), o teônimo Diónysos não apresenta etimologia definida, sendo possivelmente composto por Dio, céu em trácio e Nysa, filho, significando então "filho do céu". Baco, ou Bákkhos, aparece na literatura grega a partir do século V a.C. com Heródoto e Sófocles, em Édipo Rei, significando "ser tomado de um delírio sagrado", de onde deriva a palavra Bacante.
Outros nomes que freqüentemente aparecem na literatura são Iaco, Brômio e Zagreu. Iaco, em grego Íakkhos, "grande grito", é considerado um introdutor dos mistérios dionisíacos no cortejo dos Iniciados, que antecedia a multidão de peregrinos a Elêusis. Brômio, etimologicamente ligado a brómos, estremecimento, frêmito, ruido, traz a denominação de "ruidoso, fremente, palpitante" que se associava ao transe dos ritos dionisíacos. Zagreu é o nome cretense de Dioniso, significando "o grande caçador", em sua mitologia mais arcaica, que os Órficos consideram o primeiro Dioniso. Zagreu é comparado em Creta a Zeus ctoniano ou subterrâneo ou ainda a Hades, o senhor dos mundos inferiores, por sua ligação com a morte e o reino dos mortos
Entre os epítetos de Dioniso estão o jovem deus, o deus nascido duas vezes, o deus triturador de homens, o louco, o Delirante, o Fremente, o Murmurante, Bakkheîos (o que pratica loucura), Lýsios (libertador), Meilíkhios (suave e doce como o mel), Bougenés (filho da vaca ou boi honrado), Kissós (florente de hera), Oínopos (cor de vinho), Eleútheros (filho de Zeus), Diòs phós (luz de Zeus), Kretogenés (nascido em Creta), Melanáigis (o da negra pele de cabra), Omádio (comedor de carne crua), Pyrísporos (nascido do fogo), Évio e ainda Ditirambo, identificando-o com seus cantos rituais. De acordo com alguns rituais, recebia também a denominação de Diónysos Orthós, o "Dioniso Ereto", cuja representação era um falo e Diónysos Pélekys, "Bipene", a machadinha de dois gumes utilizada nos rituais de sacrifício. Homero o chama de mainómenos Diónysos, o delirante Dioniso, mesmo adjetivo que Platão utiliza para o vinho, pois a embriaguez dionisíaca parecia comparável à bebedeira.
Estes diversos nomes e atributos tornam mais evidente a natureza paradoxal de Dioniso, com seus aspectos luminosos e sombrios simultâneos. Segundo Kerényi (2002), em Leis, Platão menciona duas dádivas da estação da vindima, da segunda metade de julho ao começo de setembro: os frutos e algo mais sublime, o júbilo dionisíaco. A pura luz do fim do verão é considerada pelos gregos dionisíaca ou o próprio Dioniso.
Otto, em citação de Kerényi (2002), sustenta que o divino ser de Dioniso, sua natureza básica, é a loucura, mas uma loucura inerente ao próprio mundo, não um estado degenerativo, mas algo que acompanha a perfeita saúde, isto é, a própria vida em oposição e contato permanente com a possibilidade da morte. São as profundezas primitivas onde moram as forças da vida, cujo contato pode tanto destruir quanto beneficiar. É a fusão de consciente e inconsciente num único transbordamento, estado em que é possível contemplar a visão de Dioniso.



DIONISO, IMAGEM ARQUETÍPICA DA TRANSCENDÊNCIA

Vem, Dioniso Herói
Ao templo à beira-mar
Vem com as Graças ao puro templo
Vem raivando, com os pés de touro
Cântico das Dezesseis Mulheres de Élis (Plutarco)

Junito Brandão narra da seguinte maneira o mito de Dioniso: "Dos amores de Zeus e Perséfone nasceu o primeiro Dioniso, chamado mais comumente de Zagreu. Preferido do pai dos deuses e dos homens, estava destinado a sucedê-lo no governo do mundo, mas o destino decidiu o contrário. Para proteger o filho dos ciúmes de sua esposa Hera, Zeus confiou-o aos cuidados de Apolo e dos Curetes, que o esconderam nas florestas do Parnaso. Hera, mesmo assim, descobriu o paradeiro do jovem deus e encarregou os Titãs de raptá-lo e matá-lo. Com o rosto polvilhado de gesso, a fim de não se darem a conhecer, os Titãs atraíram o pequenino Zagreu com brinquedos místicos: ossinhos, pião, carrapeta, "crepundia" e espelho. De posse do filho de Zeus, os enviados de Hera fizeram-no em pedaços; cozinharam-lhe as carnes num caldeirão e as devoraram. Zeus fulminou os Titãs e de suas cinzas nasceram os homens, o que explica no ser humano os dois lados: o bem e o mal. A nossa parte titânica é a matriz do mal, mas, como os Titãs haviam devorado Dioniso, a este se deve o que há de bom em cada um de nós. [...] Atená, outros dizem que Deméter, salvou-lhe o coração que ainda palpitava. Engolindo-o, a princesa tebana Sêmele tornou-se grávida do segundo Dioniso. O mito possui muitas variantes, principalmente aquela segundo a qual fora Zeus quem engolira o coração do filho, antes de fecundar Sêmele. [...] Tendo, pois, engolido o coração de Zagreu ou fecundada por Zeus, Sêmele ficou grávida do segundo Dioniso. Hera, no entanto, estava vigilante. Ao ter conhecimento das relações amorosas de Sêmele com o esposo, resolveu eliminá-la. Transformando-se na ama da princesa tebana, aconselhou-a a pedir ao amante que se lhe apresentasse em todo o seu esplendor. O deus advertiu Sêmele de que semelhante pedido lhe seria funesto, uma vez que um mortal, revestido da matéria, não tem estrutura para suportar a epifania de um deus imortal. Mas, como havia jurado pelas águas do rio Estige jamais contrariar-lhe os desejos, Zeus apresentou-se-lhe com seus raios e trovões. O palácio da princesa se incendiou e esta morreu carbonizada. O feto, o futuro Dioniso, foi salvo por gesto dramático do pai dos deuses e dos homens: Zeus recolheu apressadamente do ventre da amante o fruto inacabado de seus amores e colocou-o em sua coxa, até que se completasse a gestação normal. Tão logo nasceu o filho de Zeus, Hermes o recolheu e levou-o às escondidas para a corte de Átamas, rei beócio de Queronéia, casado com a irmã de Sêmele, Ino, a quem o menino foi entregue. Irritada com a acolhida ao filho adulterino do esposo, Hera enlouqueceu o casal. Ino lançou seu filho caçula, Melicertes, num caldeirão de água fervendo, enquanto Átamas, com um venábulo, matava o mais velho, Learco, tendo-o confundido com um veado. Ino, em seguida, atirou-se ao mar com o cadáver de Melicertes e Átamas foi banido da Beócia. Temendo novo estratagema de Hera, Zeus transformou o filho em bode e mandou que Hermes o levasse, dessa feita, para o monte Nisa, onde foi confiado aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros, que lá habitavam numa gruta profunda".
(1995:117-20).
Há variações em torno do mito do duplo nascimento de Dioniso, sendo que seu segundo nascimento, a partir da união de Zeus e Sêmele, com o término da gestação na coxa de Zeus é o mais célebre. Também para o mitologema do nascimento a partir da coxa há uma variação importante, citada por Eurípedes em As Bacantes:
"Quando Zeus extinguiu o fogo de seu raio e transportou para o Olimpo o deus-menino, Hera tentou precipitá-lo das alturas celestiais; Zeus, como grande deus que é, opôs à intenção da deusa um artifício condizente com sua condição divina: tirou do éter sobreposto à terra-mãe uma porção suficiente e fez com ela um simulacro igual à imagem de Dioniso e o entregou a Hera como seu refém, suavizando assim o ciúme da esposa. Mais tarde pensou-se que o deus recém nascido tinha sido enxertado na coxa de Zeus por causa de um mal-entendido com palavras". (s/d: 220).
O autor continua o verso explicando que a circunstância do deus ter sido refém de Hera, embora somente em aparência, é a origem da versão mais divulgada do mito. Isto se deveu ao jogo de palavras que, em grego, são semelhantes, ou seja, hômeros (refém) e mêros (coxa). O simbolismo contido nos principais mitologemas é muito rico, dando origem aos ritos religiosos do dionisismo, a religião ou seita que veio revolucionar espiritualmente a história religiosa da Grécia. Kerényi (2002), coloca que, na genealogia dos deuses, Dioniso assumiu seu lugar depois de Cronos e Zeus, num paralelo com os estágios da alimentação dos deuses, pois  com  Cronos e Zeus foi criado o hidromel e, com Dioniso, a dádiva do vinho. Como um deus da vegetação, Dioniso mantém estreita relação com o sofrimento, a morte, a ressurreição e a iniciação, sendo dinâmico e soteriológico, isto é, trata da salvação humana. Além disso, como  uma criança abandonada após o nascimento, Dioniso representa a criança primordial, em sua absoluta e invulnerável solidão cósmica e em sua unicidade. O aparecimento de tal criança coincide com um momento de criação de um mundo novo, de uma nova época histórica.
M. Eliade, em seu Tratado de História das Religiões, comenta que:
 "Tanto as grandes correntes da religiosidade popular como as sociedades secretas dos mistérios egeo-orientais se cristalizaram em volta das chamadas divindades da vegetação, que são primordialmente divindades dramáticas, responsáveis pelo destino do homem, conhecendo, como ele, as paixões, o sofrimento e a morte.
Jamais a divindade se aproximou tanto dos homens. [...] As divindades soteriológicas partilham os sofrimentos desta humanidade, morrem e ressuscitam para resgatá-la. Esta mesma 'sede de concreto' que sempre empurrou para segundo plano as divindades celestes - longínquas, impassíveis, indiferentes ao drama cotidiano - manifesta-se na importância concedida ao filho do deus celeste (Dioniso, Osíris, Alein, etc.). Na maior parte das vezes o filho reclama sua paternidade celeste; todavia, não é essa descendência que justifica o papel capital que ele desempenha na história das religiões, mas a sua 'humanidade', o fato de se ter integrado definitivamente na condição humana, ainda que consiga ultrapassá-la pela ressurreição periódica". (1993:89-90).
Na primeira parte do mito há o sincretismo com o orfismo, seita que valorizava os ritos de morte e renascimento de Dioniso-Zagreu, proveniente de mitos mais antigos, que remontam ao período minóico e anterior. Kerényi (2002) menciona que foi encontrada uma plaqueta em Pilos, localidade situada na esfera da cultura minóica, com o nome do deus, di-wo-nu-so-jo (Dionysoio) na escrita Linear B, anterior ao grego. Nesta mesma localidade também foi encontrado um documento sobre o deus Eleuthér, filho de Zeus, a quem eram sacrificados os touros, identificado com Dioniso. Este texto do século XIII a.C. já documenta o culto dionisíaco, a linhagem do deus e seus rituais. Em Creta, uma placa encontrada no palácio de Cnossos traz o nome pe-te-u (Pentheús), que significa "cheio de sofrimento". Nas versões do mito que chegaram até nós, especialmente a tragédia As Bacantes, Penteu é um adversário do deus, a quem faz sofrer e é punido com sofrimento. Originariamente, o sofredor, "Penteu", era o próprio Dioniso e estas alterações ou adaptações aconteceram por causa da relação entre o homem e os deuses, pois no período histórico os gregos não davam a um homem um nome que o relacionasse tão intimamente com o deus quanto no período minóico.
Os ritos minóicos e gregos na época da vindima evocam a morte e renascimento de Dioniso. Homero menciona os apanhadores de uvas que entoavam cantos de lamentação e Hesíodo indica o tempo da vindima e a fabricação do vinho, mas ambos os poetas excluem de suas obras a etapa do lagar, o espremer das uvas, fato que se repete por toda a literatura do período clássico. Os espremedores de vinho cantavam o mélos epilénion, uma canção camponesa dedicada ao lagar, que envolvia a morte de Dioniso. Estes cantos eram muito tristes, pois invocavam a dilaceração do deus, assim como a própria vinha, que "morre" no inverno para renascer no início da primavera. Dioniso representa esta força de vida que faz brotar novamente Publicado em a vinha, como uma manifestação da realidade viva, da vida que se regenera periodicamente.
M. Eliade (1993), menciona a concepção primitiva da vinha como árvore cósmica do conhecimento e da redenção. O vinho seria a incorporação da luz, da sabedoria e da pureza, que os textos clássicos trazem como a "dádiva" de Dioniso. Em As Bacantes, Tirésias, o velho sábio, canta o vinho como aquele que cura as amarguras da triste raça humana, dá paz e esquecimento dos males cotidianos, sendo Dioniso um profeta cujo dom divinatório é revelado aos homens em seus delírios, quando ele penetra nos corpos humanos e, embriagando-os, revela o que está por vir. Aqui há uma idéia de que a "embriaguez" dionisíaca seria induzida por outros fatores presentes nos rituais, como o transe, que leva ao êxtase e ao entusiasmo, seguindo-se a liberação e, por fim, a purificação. A "embriaguez" sagrada permitia participar, ainda que de maneira imperfeita, da natureza divina. Ela realizava o paradoxo de viver uma existência plena e, ao mesmo tempo, se tornar; de ser força e equilíbrio.
Junito Brandão (1995), denomina Dioniso deus do êxtase e entusiasmo, dois estados próprios da religião dionisíaca que levavam os humanos a estarem mais próximos do deus.
Êxtase, do grego ekstasis, é um estado da alma em que os sentidos se desprendem das coisas materiais, absorvendo-se no enlevo e na contemplação interior; um arrebatamento dos sentidos causado por uma grande admiração ou por um vivíssimo prazer que absorve todo e qualquer sentimento, um estado de inspiração absoluta. Entusiasmo, do grego enthousiasmos, é a excitação da alma quando admira excessivamente, paixão viva, arrebatamento, dedicação e exaltação criadora. Entusiasmo significa, além disso, "estar pleno de deus", de acordo com sua origem etimológica a partir da palavra grega theos, deus. Por isso os mais importantes filósofos, poetas e artistas da Grécia cantam a importância de Dioniso e de seu culto.
Não é possível afirmar que a religião dionisíaca pregasse a crença na reencarnação, mas é certo que continha a mensagem de salvação após a morte, com a possibilidade de transcendência, o que era não só uma revolução em relação à antiga religião homérica, mas também algo muito confortador para o homem. Dioniso é mais do que o deus sofredor, é o deus trágico como nenhum outro. Seus ritos religiosos garantiam que a morte não é o fim de tudo, pois o fato de morrer e renascer levava seus fiéis seguidores a crer que a alma vive para sempre. Dioniso, mais do que Perséfone, representa aquele que venceu a morte e, em sua ressurreição, ele simboliza a Publicado em encarnação da vida, por isso tornou-se o centro da crença na imortalidade. M. Eliade (1993) menciona que todas as estatuetas de Dioniso encontradas nos túmulos beócios possuem um ovo na mão, sinal de regresso à vida. Edith Hamilton cita que o escritor grego Plutarco, por volta do ano 80 d.C. escreveu a seguinte carta à sua mulher a respeito da morte de uma filha de ambos, ainda criança:
"Quanto àquilo que ouviste, querida esposa, no sentido de que, uma vez separado do corpo, o espírito se transforma em nada e nada sente, sei que não acreditas em tais afirmações, em nome das promessas sagradas e fiéis contidas nos Mistérios de Baco, que conhecemos pelo fato de pertencermos a esta irmandade religiosa. Temos a firme certeza de uma verdade inquestionável: nossa alma é incorruptível e imortal. Para nós, os mortos vão para um lugar melhor, onde viverão mais felizes do que foram aqui. Comportemo-nos de acordo com essa crença, ordenando em função dela nossa vida exterior, ao mesmo tempo em que, no íntimo, tudo deve ser mais puro, mais sábio, incorruptível". (1995:76).
Rituais de sacrifício e desmembramento de animais também eram realizados para lembrar a morte trágica do deus, que aparecem nos mitos e, posteriormente, nas tragédias. O nome Dioniso-Zagreu está relacionado com a caça da presa viva, para que fosse posteriormente dilacerada e sua carne comida crua pelos participantes do ritual, revivendo assim a faceta da vida selvagem que Dioniso também representa. Kerényi (2002), menciona que, em tempos muito arcaicos, uma criança, filha de uma das mulheres dedicadas a Dioniso, era sacrificada nestes rituais de desmembramento, o que passou a ser feito posteriormente com animais ou então sacrifícios simbólicos, com a evolução cultural do povo grego.
Vários outros mitos estão relacionados com a chegada de Dioniso aos locais onde ele desejava que seu culto fosse instituído. Já adulto, Dioniso viajava pelo mundo então conhecido para levar os mistérios da nova devoção, ensinar o cultivo da vinha e a preparação do vinho. Os mitos relatam que, ao voltar para a Grécia, encontra oposição em várias regiões além de Tebas, conforme é narrado na tragédia As Bacantes. Licurgo, rei da Trácia, Perseu, rei de Argos e Mínias, rei de Orcômeno, na região da Beócia, opuseram-se ao chamado de Dioniso às Bacantes e foram cruelmente punidos. Estas histórias de chegada e resistência ajudaram a estruturar o culto dionisíaco fora da Ática, pois isto faz parte da experiência religiosa que o deus suscitava, colocando em risco a antiga religião olímpica. Atenas tornou-se, posteriormente, o mais Publicado em importante local de festejos dionisíacos da Grécia, mas também aí demorou a chegar, pois tais festejos ficaram bastante tempo restritos às áreas camponesas.
Dioniso é o deus da epifania, da chegada repentina, o que, na Grécia, era conhecido também como epidemia, a incursão de algo avassalador, o aflorar imprevisível de uma nova experiência. O culto dionisíaco pode ser considerado também como uma religião missionária, precursora do Cristianismo, pelas inúmeras histórias de chegada e peregrinação. Graças à riqueza cultural de Atenas, assim como por sua democracia, o ano festivo dionisíaco da cidade foi o mais importante da Grécia. As comunidades vinicultoras da Ática preservavam a memória do fato de que tiveram que aprender a fazer vinho, mas não aprenderam de modo profano, mas de acordo com os mistérios, pois não poderiam ter inventado nem compreendido por si mesmas estas técnicas. Kerényi (2002), menciona que o mito segundo o qual Dioniso veio à Ática trazendo a vinicultura é mais antigo que o de Dioniso nascido em Tebas. Dioniso, trazendo para a Ática a vinicultura, foi recebido como hóspede na casa do herói Sêmaco, onde foi cuidado pelas mulheres. O relato mítico está de acordo com os usos consagrados pelos quais as mulheres desempenhavam o papel principal no culto de Dioniso e todas as sacerdotisas do deus eram consideradas sucessoras das filhas de Sêmaco. Outra versão deste mito é a recepção de Dioniso pela filha de Icário, Erígone, que se tornou a primeira mulher de Dioniso. Estes mitos e outras versões tornam verossímil que Dioniso tenha sido levado a Atenas por mulheres, sendo as mulheres de Atenas as guardiãs do culto dionisíaco na cidade.
Elas tomavam posse do deus por meio da cerimônia de sua união com a rainha, que representava a união de Dioniso e Erígone e, assim, a cidade participava desta posse. Em Atenas as mulheres eram as senhoras do vinho, sendo ativas no Lénaion, o santuário de Dioniso, que também servia de lagar público e era sagrado. Elas eram identificadas como aquelas a quem, depois do deus, o vinho era devido.
Os festivais dionisíacos eram variados e complexos, de acordo com a região em que se realizavam. Junito Brandão (1995), destaca as Dionísias Rurais, Lenéias, Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias e Antestérias. As Dionísias Rurais eram celebradas na segunda metade de dezembro aproximadamente, nos demos da Ática. A cerimônia central constituía-se numa alegre e barulhenta procissão com cantos e danças, em que se transportava um enorme falo e cujos Publicado em participantes usavam máscaras ou disfarçavam-se de animais, em alusão à fertilidade dos campos. No século V, estas falofórias, como eram chamadas, foram enriquecidas com concursos de tragédias e comédias, pois em vários demos havia bons teatros.
As Lenéias eram celebradas no inverno, correspondendo ao final de janeiro e início de fevereiro. Este nome alude ao Lénaion, santuário de Dioniso, onde havia também um teatro. A respeito desta festa sabe-se muito pouco, apenas que Dioniso era invocado por meio do daduco, o "condutor de tochas"; o sacerdote e os participantes também gritavam para provocar a epifania do deus, que deveria presidir as festividades.
As Dionísias Urbanas celebravam-se na primavera, no final de março e duravam seis dias. No primeiro dia havia uma grande procissão com a participação de toda a cidade, em que se transportava a estátua do deus de seu templo até um antigo templo de Baco. Nos dois dias seguintes realizavam-se concursos de Coros Ditirâmbicos e, nos três últimos dias, havia concursos dramáticos numa tetralogia, isto é, três tragédias e um drama satírico. Junito Brandão (1995), cita Aristóteles, informando que a tragédia teve origem nos solistas do ditirambo, num processo de transformação dos dramas satíricos, que passaram de fábulas curtas com tom jocoso a assuntos mais elevados e trágicos. O ato sacrificial da morte de Dioniso, que representa a indestrutibilidade da vida em meio à destruição deu origem à tragédia grega, sendo o mais universal dos ritos dionisíacos.
As Antestérias marcavam o elemento fundamental da religião dionisíaca, a transformação, a que seus adoradores eram transportados pelo êxtase e entusiasmo, rompendo as barreiras sociais cotidianas. As danças vertiginosas faziam com que os participantes saíssem de si para que o deus os tomasse, o "estar pleno de deus" e, assim, superassem a condição humana.
As Antestérias eram denominadas de "festa das flores", pois se realizavam na primavera, com o rejuvenescimento da natureza. Em seu primeiro dia, denominado Pithoiguía, abriam-se os tonéis de terracota em que se guardava o vinho, transportando-os ao santuário de Dioniso para serem dessacralizados e bebidos pela população. O segundo dia denominava-se Khóes, consagrado aos concursos de beberrões. Também se realizava uma procissão para comemorar a chegada do deus à pólis, em que Dioniso era representado chegando em uma embarcação, de acordo com seus mitos de chegada. Nesta embarcação era levado também um touro destinado ao sacrifício e, ao Publicado em chegar ao santuário, consumava-se a união da rainha com o sacerdote, que representava o deus e simbolizava a união deste com toda a pólis.
O terceiro dia recebia o nome de Khýtroi, vasos de terracota consagrados aos mortos e às Queres. Era um dia nefasto, em que todos oravam pelos mortos e pela Queres, que vagavam pela cidade. Oferecia-se a Hermes, deus psicopompo, uma sopa com todas as espécies de sementes, pois os mortos estavam ligados à fertilidade da terra e subiam ao mundo em busca de agradecimento pelas riquezas que proporcionavam aos vivos. Quando a noite chegava todos gritavam: "Retirai-vos, Queres, as Antestérias terminaram".
A liberdade concedida pelos festejos dionisíacos favorecia a adesão das mulheres, dos pobres, camponeses e escravos aos cultos. De fato, Dioniso é o deus das mulheres e as Antestérias simbolizavam sua libertação e valorização, um momento em que saíam da condição de repressão e humilhação a que estavam atreladas. As mulheres representavam as nutrizes míticas do deus. Seu culto também exigia a presença do thíaso, o grupo de pessoas que celebrava o sacrifício em honra do deus, na esperança de renovação espiritual. Em suas festas, muitas vezes o aspecto sombrio do deus precedia o aspecto luminoso, catártico e purificador, de crença na imortalidade.
Kerényi reproduz em sua obra uma citação de Otto sobre a importância das mulheres nos ritos dionisíacos:
"Nunca devemos esquecer que o mundo dionisíaco é, acima de tudo, um mundo de mulheres. As mulheres aviventam e nutrem Dioniso. Mulheres o acompanham onde quer que ele esteja. Mulheres o assistem e são as primeiras a ser dominadas por sua loucura. E isso explica por que o genuinamente erótico se encontra apenas na periferia da paixão e da libertinagem reveladas com tanto atrevimento nas bem conhecidas esculturas. Muito mais importantes que o ato sexual são os atos de dar à luz e criar a criança. O terrível trauma do parto, a selvageria que pertence à maternidade em sua forma primal, selvageria essa que pode irromper de forma alarmante não apenas nos animais - tudo isso manifesta a natureza íntima da loucura dionisíaca: o encrespar-se da essência da vida cercada pelas tempestades da morte. Desde quando esse tumulto latente no mais fundo das profundezas se dá a conhecer, a plenitude do êxtase da vida, tocada pela agitação da loucura dionisíaca, é capaz de romper todos os limites do arrebato em perigosa selvageria. A condição dionisíaca é o fenômeno primal da vida, de que mesmo o homem pode participar, em todos os momentos de nascimento de sua existência criativa". (2002:116).
Nesta combinação de elementos sensuais, imanentes e transcendentes, chegamos à união de Dioniso com aquela que foi eleita sua esposa divina, a Senhora do Labirinto: Ariadne.
Em plaquetas de argila encontradas em Cnossos, vê-se uma deusa e a seguinte inscrição: pa-si-te-o-i / me-ri / da-pu-ri-to-jo / po-ti-ni-ja me-ri, "para todos os deuses, mel... para a senhora do labirinto, mel...". Isto indica que ela foi uma grande deusa, pois recebe tanto mel quanto os outros deuses. Vê-se também uma representação do labirinto, que simbolizava a descida aos mundos inferiores e a volta para a luz. Em Cnossos, um grande corredor com afrescos labirínticos em meandros leva para a mais importante fonte de luz do palácio: um pátio com sete colunas, informando o que o vocábulo da-pu-ri-to-jo significava para os minóicos: " um caminho para a luz". Na cultura minóica eram oferecidos mel e danças em honra da Senhora do Labirinto, sendo este traçado em forma de labirinto também uma pista de danças rituais, que de fato existia e foi encontrada nas escavações arqueológicas.
Na versão mítica mais conhecida, a Odisséia de Homero, Ariadne era mortal e filha do maligno Minos, sendo o labirinto um lugar de morte. Teseu foi salvo graças ao famoso fio que Ariadne lhe deu e esta, apaixonada, acompanhou o príncipe estrangeiro. Isto foi um pecado e Ariadne foi morta de parto por Ártemis. Esta história mostra uma relação muito próxima de Ariadne com a Senhora do Labirinto, embora tenha sido humanizada. No período grego de Creta, a deusa recebeu o nome de Arihágne, a "toda pura", sendo Ariadne uma forma dialetal do idioma lá utilizado.
Kerényi (2002) sustenta que Ariadne não só representava grandes deusas como Ártemis, Afrodite e Perséfone, mas que ela seria realmente Ariadne e Perséfone em uma só pessoa, que deu à luz no mundo subterrâneo seu filho Dioniso. Ariadne pertencia a Dioniso, como donzela e esposa e sua fuga com Teseu foi não só uma traição ao deus como também um pecado contra o princípio feminino, por isso foi punida por Ártemis. No porto marítimo de Falero há uma festa em ação de graças por Ariadne ter sido "abandonada" por Teseu e se unido a Dioniso, mas conta o mito que fora o próprio Dioniso, com auxílio de Atená, que livrou o herói do risco de dominar completamente Ariadne e levá-la para casa como sua esposa.
Em Argos há um altar onde eram feitas oferendas a Ariadne como uma rainha do mundo subterrâneo, que os habitantes dizem ser seu túmulo. Este mesmo local é um santuário Publicado em subterrâneo de Diónysos Krésios, indicando que pertence à esfera da religião dionisíaca de Creta.
Nos mitos de Creta, o falecimento de Ariadne durante o parto tem paralelismo com o parto prematuro de Sêmele, sendo que Ariadne não deu à luz, mas foi enterrada em uma gruta sagrada com o filho no ventre, levando consigo seu filho para o mundo subterrâneo e identificando-se com Perséfone.
Dentre todos os deuses, Dioniso é o único que veio ao mundo ainda como um feto, e um nascimento na morte é algo realmente místico. Segundo Kerényi (2002), os Mistérios de Elêusis giravam em torno deste nascimento e seu valor místico seria ainda maior se, como Sêmele, Ariadne tiver dado à luz Dioniso. Em Cnossos, a dança ritual em homenagem à Senhora do Labirinto era executada numa pista de danças e a Senhora localizava-se no centro deste labirinto, que representava o mundo subterrâneo. A Senhora dava à luz um menino misterioso que trazia a esperança de um retorno à luz.
Ariadne foi sem dúvida uma grande deusa lunar do mundo Egeu e sua associação com Dioniso mostra sua grandeza. Tanto o fato de ter vencido o Minotauro quanto a união com Dioniso em Naxos após o abandono por Teseu demonstram a superação de estágios inferiores para atingir a transcendência. Em Naxos acontece a ascenção aos céus de Ariadne, levada por Dioniso, que lhe deu uma tiara de estrelas, a corona borealis. Kerényi relata assim esta união transcendental:
"Assim como Dioniso é a realidade arquetípica de zoé, Ariadne é a realidade arquetípica do dom da alma, do que faz de um vivente um indivíduo. A alma é um elemento essencial de zoé, que dela carece para transcender o estágio seminal. Zoéexige alma e toda concepção é psicogonia. Em cada concepção nasce uma alma. A imagem deste evento é a mulher como concebedora, que dá alma a viventes, e o reflexo desta imagem é a lua, sede mitológica da alma. Em imagem e em reflexo, a fonte feminina de almas, para a Creta Minóica, era a grande deusa, Réia e Perséfone - uma díade só em aparência, fundamentalmente uma unidade. A imagem em questão é arquetípica, expressiva da mesma unidade e continuidade que, em Elêusis, exprimem Deméter e Perséfone. Na união das duas imagens arquetípicas, o casal divino, Dioniso e Ariadne, representa a eterna passagem de zoé na, e pela, gênese dos viventes. Isso acontece de contínuo, e sempre está a acontecer, de modo idêntico sempre e de forma ininterrupta. Não apenas na religião grega, mas também no culto e na mitologia minóica, zoé assume a forma masculina e a gênese das almas reveste a feminina". (2002:108-9).

VIVENDO DIONISO - UMA VIAGEM AO MUNDO DO INCONSCIENTE
A ele clamai:
Cantaremos Dioniso
Nestes dias santos -
O por doze meses ausente.
Agora é o tempo, agora as flores chegam.
Ditirambo - Canto dionisíaco de triunfo.

Viver Dioniso em nosso mundo atual pode ser uma tarefa difícil. Não são muitas as expressões genuínas da cultura dionisíaca na sociedade atual e, muitas vezes, quando elas acontecem, evidencia-se o lado negativo, sombrio, que não deixa margem para a purificação e transcendência finais, mas somente para vivências de desmembramento ou dissociação. As festas rave de que os jovens atualmente participam exemplificam bem esta questão, pois duram dias, há uma dança frenética ao som de músicas hipnóticas e o consumo, entre outras, de uma droga com nome sugestivo: ecstasy. Talvez seja possível falar em um desejo de transcendência que seria atingido através das fortes emoções e do transe, que não se completa, pois não há a profundidade de uma experiência religiosa, no sentido amplo da palavra.
López-Pedraza (2002), enfatiza que atualmente predomina nossa natureza titânica, permanecendo nossa parte dionisíaca extremamente reprimida. Em algumas versões do mito, a parte recebida por nós de Dioniso é justamente o coração, motivo simbólico muito rico para que se compreendam as implicações que tal repressão traz ao homem moderno. O modelo socialmente aceito e procurado por todos é titânico, ou seja, uma energia desproporcional e desenfreada que se manifesta nas várias esferas de nossa vida: na política, nos estudos, nos negócios, na religião, na ciência, na tecnologia, nas comunicações, na arte, na sexualidade, na criminalidade, etc. A característica titânica é a insolência agressiva e sem limites e sua presença na sociedade contemporânea é opressiva. Para este autor, o titanismo aparece em teorias pré-concebidas, atitudes missionárias, técnicas e fantasias de manipulação, estratégias astutas e na destrutividade tão comum à natureza humana.
A sombra humana estaria então mais ligada ao titanismo e à repressão do dionisíaco, o que é verdadeiro levando-se em consideração a hýbris, o descomedimento e a soberba, próprios da natureza titânica. A manía dionisíaca é de natureza diferente; pode ser violenta como é a força da vida e do inconsciente, mas é também a fonte de criatividade, cultura, emotividade, sentimento, consciência e transcendência. Dioniso é um deus humilde e sua experiência emocional intensa pode ser purificadora.
A experiência dionisíaca pode nos conectar com os níveis mais profundos da psique, com os complexos mais arcaicos da humanidade, onde cenas de desmembramento ou dissociação podem ser vislumbradas. É necessário ter o devido cuidado à aproximação destas imagens ou vivências, mas a importância de experimentá-las num nível simbólico pode ser benéfica, como o faziam os gregos em suas festas e cerimônias anuais em honra a Dioniso, em que todas as atividades cotidianas eram interrompidas e até quem estivesse preso era libertado para participar. A vivência do sofrimento e o contato com os níveis mais profundos da psique podem prevenir o indivíduo de tornar-se alguém presunçoso e vazio de emoções, embora possa parecer brilhante. Dioniso sofreu a morte por desmembramento e a loucura para mostrar aos seres humanos que eles não precisam passar por isso, assim como mostrar os meios para evitar ou curar a loucura. Nos relatos mitológicos quem sofre e enlouquece é Dioniso e as tragédias gregas, como As Bacantes, apontam para o fato de que, quando não atenta para isso, é o homem quem se torna louco. Aos que se entregam, o milagre; aos que se defendem, a loucura.
Há uma versão mitológica contando que Dioniso, ainda adolescente e acometido de manía, é auxiliado por Réia, que o instrui a refazer todos os passos que havia dado antes de sua crise, terminando por curá-lo. É também Réia, a sábia Grande Mãe, que recompõe o menino Dioniso cortado em pedaços pelos Titãs. Estas imagens evocam não só o princípio da cura pelo semelhante, já que Dioniso, para ser curado, precisa percorrer o caminho anteriormente feito, mas também princípio feminino, ou Anima, como intermediária entre consciente e inconsciente.
Desta maneira, Dioniso pode ser visto como um grande xamã, que passou por uma experiência extrema para ensinar e guiar os homens.
Jung (1974), discorrendo sobre os tipos apolíneo e dionisíaco, coloca que os gregos tiveram que criar os deuses olímpicos para enfrentar o medo enorme ante as forças titânicas da natureza e para poderem viver serenamente sobre uma sombra profunda, a grande questão da Publicado em existência humana. Para Jung, há sempre uma relação de compensação entre a religião de um povo e seu comportamento vital, sendo os deuses olímpicos tão luminosos por causa da obscuridade da alma grega. Haveria uma violenta discórdia na essência grega, uma essência bárbara, também titânica. Daí a ânsia de redenção que dava aos Mistérios do Elêusis extrema importância para a vida popular grega. Mediante uma evolução gradual, a cultura grega pôde conjugar o dionisíaco e o apolíneo no âmbito religioso, o que é algo raro para o homem moderno experimentar. No homem civilizado, as forças instintivas, quando exteriorizadas, são muito mais perigosas e destrutivas que os instintos do homem primitivo, que os pode viver continuamente através de seus ritos religiosos. Isto era também função das celebrações e ritos dionisíacos, pois, através deles, poderia vivenciar sua essência bárbara, integrado na coletividade e unificado ao próprio inconsciente coletivo, exercendo a dýnamis criadora, uma expansão máxima que une a todos, trazendo poderosa compreensão universal que embriaga os sentidos.
Jung (1974), destaca a participação da função percepção, sensível ou afetiva, e uma extroversão de sentimentos ligada à percepção nas vivências dionisíacas. Elas detêm-se na percepção extrovertida e desenvolvem os sentidos, os instintos e a afetividade, em contraposição à introversão, que se detém na intuição de idéias, desenvolvendo a visão íntima. Hillman (1997), tratando de Dioniso na obra de Jung, comenta que a consciência analítica favorece o princípio masculino em detrimento do feminino, ou seja, a luz, a ordem e a distância em lugar do envolvimento emocional. Este autor sugere uma retificação no modo de entender a estrutura arquetípica dionisíaca, que tem sido vista pela psiquiatria e psicologia tradicionais como inferior, histérica, efeminada, desenfreada e perigosa, por ser considerada dissociativa e enfatiza que a psicoterapia não pode trabalhar baseada em noções enganosas sobre Dioniso, por ser ele o Senhor das Almas.
Dioniso pode ser comparado às profundezas do inconsciente e desempenha papel central na tragédia, nos mistérios transformadores, nos níveis instintivos e comunais da alma e na psique feminina. Para Hillman (1997), interpretar mal sua manifestação poderia comprometer seriamente os processos de cura, por ser Dioniso a imagem arquetípica da vida que sempre se renova.
De acordo com Hillman (1997), Jung lembra que Dioniso era chamado de "o dividido", processo que pode ser vivenciado nos sintomas psicossomáticos e aditivos, conversões histéricas, no câncer, no medo de envelhecer e todas as condições desintegradoras incoerentes que possuem um foco corporal, proporcionando, por outro lado, o despertar da consciência do corpo, como sendo composto de elementos distintos: "nossos dilaceramentos podem ser compreendidos como o tipo especial de renovação apresentado por Dioniso". (1997:186).
López-Pedraza (2002), destaca a dança e a música flamencas como uma manifestação do dionisíaco ainda vistas na atualidade. O jazz também pode ser considerado assim. Há uma interessantíssima passagem do filme Nelson Freire, de João Moreira Salles, em que o pianista genial vê uma antiga fita de um dos astros do jazz e exclama que gostaria de saber tocar como ele, de improviso. Esta imagem revela a necessidade do tipo apolíneo em compensar sua vivência com algo de dionisíaco. Também o carnaval de rua, com seus blocos ruidosos, sua irreverência, arrebatamento e intensidade de que todos participam, numa explosão de alegria em que tudo é permitido durante quatro dias. Os festejos do carnaval parecem-se bastante com as Antestérias, pois há muita bebida, um Rei Momo e suas acompanhantes, concursos de fantasias e tudo termina na quarta-feira de cinzas, que evoca a imagem da morte.
No âmbito terapêutico há uma técnica que evoca o dionisíaco para integrá-lo à nossa vida: Os Cinco Ritmos. Os Cinco Ritmos fazem parte de um método transpessoal de movimento expressivo que permite a movimentação corporal de sensações, emoções, sentimentos e imagens, proporcionando maior harmonia e criatividade. O método utiliza música, especialmente o ritmo e o movimento como instrumentos de estimulação para cinco movimentos corporais, que correspondem a determinadas etapas de nossa vida e retratam nossas principais emoções, percepções a arquétipos importantes, efetuando uma passagem simbólica por estas cinco etapas de nosso desenvolvimento emocional, visando o contato com o inconsciente.
A criadora deste método, a dançarina e coreógrafa americana Gabrielle Roth, o denomina também de "dança extasiante" e "dança tribal", o que permite vislumbrar mais claramente sua ligação com o aspecto dionisíaco. Tal ligação também se evidencia no caminho percorrido por ela até chegar a esta técnica, pois sofria de uma grave anorexia que refletia sua dificuldade em aceitar seu corpo, sua sexualidade e sua vida. Passou também pela experiência de um acidente que a deixou impossibilitada de dançar, mas descobriu que poderia ainda movimentar-se e isto Publicado em lhe deu mais ânimo na busca pelo movimento como meio de atingir uma dimensão mais extasiante de transformação e cura. Prestando atenção em seus movimentos e naqueles das pessoas de quem tratava, descobriu os ritmos por onde flui a energia, através da improvisação, das trocas repentinas de intensidade e do estilo próprio de cada um.
Estes ritmos relacionam-se com os movimentos cíclicos da vida, a manifestação do princípio criativo do universo. O ritmo é o elemento da música que mais se aproxima dos movimentos do corpo e seus padrões simples, quando repetidos sucessivamente, podem ter efeito hipnótico sobre os seres humanos, provocando emoções e satisfação. A dança possui a qualidade de unir o ritmo do corpo, as emoções e a música numa só expressão que se completa para a manifestação da alma.
Os Cinco Ritmos são iniciados após um aquecimento onde as várias partes do corpo são movimentadas livremente, ao som de músicas intensamente rítmicas, percussivas ou instrumentais. Assim toma-se consciência e prepara-se o corpo para a prática dos Cinco Ritmos, permitindo uma vivência mais intensa e profunda. O primeiro ritmo é denominado fluir e é feito através de movimentos circulares, calmos, fluidos, contínuos, focalizados no inalar da respiração.
Este ritmo relaciona-se ao medo, à sensação de inércia, ao ciclo de vida relativo ao nascimento, à auto-estima e ao nosso dançarino interno. O segundo ritmo é denominado staccato, sendo curto, afiado, percussivo, pausado e com movimentos em ângulos retos, estando relacionado à raiva, ao ciclo da infância, à amizade, à experimentação da imitação e ao nosso cantor interno.
O terceiro ritmo é o caos, definido como uma passagem para o êxtase, num estado próximo ao transe. Os movimentos são desorganizados, com um intenso chacoalhar do corpo em que somente os pés devem manter contato com a terra. Este ritmo relaciona-se à tristeza, ao ciclo da puberdade, aos amores, à intuição e ao nosso poeta interno. O quarto ritmo denomina-se lírico e seus movimentos são leves, numa busca pela dimensão etérea, pelo vôo, pela faceta lúdica e luminosa do ser. O lírico relaciona-se à alegria, ao ciclo da maturidade, ao companheirismo, à imaginação e ao nosso ator interno. Finalmente, o quinto ritmo é a quietude, onde o foco será acalmar o corpo, centrando e revitalizando a mente através de movimentos lentos e pausados. Este ritmo relaciona-se à compaixão, ao ciclo da morte e à inspiração, suscitando nosso curador interno.
Para a criadora dos Cinco Ritmos, precisamos encontrar todos estes ritmos em nós, para podermos nos relacionar com a possibilidade de uma cura mais profunda. Após a prática dos Cinco Ritmos, que é realizada em silêncio, todos podem expressar suas vivências de diversas maneiras e a expressão artística é uma delas. Esta técnica terapêutica tem sido utilizada no âmbito da Musicoterapia, por unir música e movimento, destinando-se ao trabalho com vários tipos de populações em centros de terapias.
Kerényi (2002), conta que, no dia de Khoés, na celebração ateniense das Antestérias, era costume das meninas balançarem-se em cadeiras suspensas em árvores, sendo permitido aos meninos imitá-las, mas a Festa dos Balanços, como era chamada, era uma festa de virgens. O ato de balançar-se está entre os elementos fundamentais da natureza humana e animal, exprimindo a intensa alegria de viver. É a primeira brincadeira que se faz com os bebês e realiza-se nos momentos felizes da infância ou por toda a vida. O ato de balançar-se inaugura espontaneamente uma festa e, no caso das festas dionisíacas, era um ato mítico e mágico, pois possibilita alcançar um estado extraordinário, uma espécie de êxtase. Este não era um ato comum, pois o dia dos balanços, Aióra, precedia a união da rainha com o sacerdote que representava Dioniso.
Cerimônias dionisíacas como a Festa dos Balanços, as danças extáticas e as danças rituais em homenagem à Senhora do Labirinto, Ariadne, permitem fazer a ligação destes atos míticos com a prática dos Cinco Ritmos, uma vivência atual que possibilita a conexão com tais atos arquetípicos, revivê-los e integrá-los à consciência. Na análise esta é uma condição fundamental, pois Dioniso é chamado de lýsios, aquele que liberta, que afrouxa, palavra esta relacionada a lysis, sílabas finais de analysis, que rompe antigos laços para atingir um novo e mais pleno estado de consciência. Segundo as palavras de Hillman:
"Por outro lado, a luz pode significar a luz da natureza e a mudança da consciência através de semelhanças, onde o semelhante atua sobre o semelhante.
Neste caso, a fragmentação seria imaginada, não a partir do interior do ponto de vista do centramento, mas a partir do interior da própria consciência dionisíaca que atua dentro da dissolução. O pneuma disperso do segundo Dioniso que emerge através da dissolução seria a luz exigida pela voz, implicando a lysis da experiência dionisíaca". (1997:189).

CONCLUSÃO
Quem conduz o tíaso torna-se Dioniso.
As Bacantes - Eurípedes.
Dos mundos subterrâneos surgiram três plaquetas de argila sem inscrições, somente com imagens. A primeira traz o deus de pele branca, olhos e longos cabelos negros, com uma coroa de heras na cabeça, o tirso na mão direita e vestes brancas. Cachos de uva pendem em volta dele e, em sua frente está uma mulher alta e esbelta, com um longo vestido também branco. Ele a convida a participar das danças sagradas em sua honra. A mulher e o deus sorriem um para o outro, numa expressão de cumplicidade. O deus sabe que o caráter emotivo da mulher é o veículo para a sua transcendência e, por isso, revela-se a ela em toda a sua glória.
A segunda traz o deus sentado num trono, com seus cabelos e vestes resplandecentes, seu tirso na mão direita e a coroa de heras sobre a cabeça, circundado por folhas da vinha e cachos de uvas. Ele foi conduzido ao triunfo pelas mulheres, propagadoras de seu culto e de suas verdades. O deus aparece como um rei e seu carisma e presença são de uma grandiosidade jamais vista. A terceira mostra uma parede feita de pedras, muito antiga, talvez do início dos tempos.
Esta parede está levemente entreaberta e deixa transparecer que há algo atrás dela, um caminho para aqueles que lá quiserem penetrar. Na parte da frente da parede de pedras há uma fonte esculpida na pedra, da qual jorra eternamente água fresca e, logo acima da fonte, há uma pira eternamente acesa, com fogo muito vermelho, para nos lembrar que Dioniso é fogo e água, calor e umidade, como a vinha que nasce da terra úmida sob a luz do sol. O que há atrás desta parede não se sabe, mas ela permanece sempre entreaberta para aqueles que quiserem ver e penetrar no mistério. Para aqueles que não vêem, ela está para sempre fechada. EVOÉ BAKKHÓS !

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1995.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo: Mirador  Internacional, 1975.

ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

EURÍPEDES. As Bacantes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, s/d.

HAMILTON, Edith. Mitologia. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

HILLMAN, James (org.). Encarando os Deuses. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.

JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.

KERÉNYI, Carl. Dioniso - Imagem arquetípica da vida indestrutível. São Paulo: Odysseus.2002.

LÓPEZ-PEDRAZA, Rafael. Dioniso no Exílio: sobre a repressão da emoção e do corpo. São Paulo: Paulus, 2002.


NEUMEISTER, Maria Eliane C. O Potencial Terapêutico do Método dos Cinco Ritmos Aplicado à Musicoterapia. Rio de Janeiro: Monografia final para conclusão da Graduação no Curso de Musicoterapia do Conservatório Brasileiro de Música, 1998

terça-feira, 23 de julho de 2013

Mais uma realização para as religiões afro brasileiras.

Com muita alegria e satisfação que realizamos na academia mais uma apresentação dos saberes das religiões afro brasileiras, ofereço esta realização para meu mestre Arhapiagha e a FTU - faculdade de Teologia Umbandista que embasou meus conhecimentos teóricos e 
com isso pude elaborar a pesquisa em si. 
Estamos agora seguindo para a próxima etapa que 
é a ABHR - USP à realizar-se em outubro de 2013.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

A noção de pessoa entre os fula e os bambara.



Amadou Hampâté Bâ

Nas tradições fula e bambara dois termos servem para designar a pessoa. Para os fulas, são eles Neddo e Neddaaku. Para os bambaras, Maa e Maaya. As primeiras palavras significam "a Pessoa" e, as segundas, "as pessoas da pessoa".
A tradição ensina que existe antes Maa, a "Pessoa receptáculo", e depois Maaya, ou seja, os diversos aspectos de Maa contidos no Maa-receptáculo. Como diz a expressão bambara Maa ka Maaya ka ca a yere kono: "As pessoas da pessoa são múltiplas na pessoa". Encontramos exatamente a mesma noção entre os fulas.
A noção de pessoa é, portanto, a princípio, muito complexa. Implica uma multiplicidade interior de planos de existência concêntricos e superpostos (físicos, psíquicos e espirituais, em diferentes níveis), bem como uma dinâmica constante. A existência, que se inicia com a concepção, é precedida por uma pré-existência cósmica onde o homem residiria no reinado do amor e da harmonia, denominado Benke-so.
O nascimento de uma criança é considerado a prova palpável de que uma parcela da existência anônima se destacou e encarnou sobre nossa terra, para desempenhar uma missão. Uma importância muito particular será concedida à cerimônia do batismo, no curso da qual será dado um togo, ou nome, ao recém-nascido. O togo define o pequeno indivíduo. Ele situa-o na grande comunidade.
Três tipos de nascimento podem ocorrer. O aborto ou ji-bon, literalmente "água derramada", é considerado maléfico. O nascimento no prazo correto, chamado banngi, é um fato feliz não somente para os pais, mas para a aldeia, a sociedade e, num plano mais vasto, para a humanidade inteira. O nascimento após o prazo normal, chamado menkono ou nyanguan, literalmente "ventre de muito tempo", é o prelúdio ao nascimento de um ser extraordinário, o nyanguan, o proto-feiticeiro, que vem ao mundo imbuído de um poder potencial.
O desenvolvimento da pessoa vai realizar-se no ritmo dos grandes períodos de crescimento do corpo, a cada qual correspondendo um grau de iniciação. A iniciação tem por objetivo dar à pessoa física um poder moral e mental que condiciona e ajuda a realização perfeita e total do indivíduo. A tradição considera que a vida de um homem normal comporta duas grandes fases. Uma ascendente, até os sessenta e três anos, outra descendente, até os cento e vinte e seis. Por sua vez, cada uma dessas fases comporta três grandes seções de vinte e um anos, compostas de três períodos de sete anos. Cada seção de vinte e um anos marca um grau na iniciação. Cada período de sete anos marca um limiar na evolução da pessoa humana.
Assim, durante os sete primeiros anos de sua existência, quando a pessoa em formação requer o máximo de cuidados possível, a criança ficará intimamente unida a sua mãe, de quem ela dependerá em todos os aspectos de sua vida. De sete a catorze anos, ela se confronta com o meio exterior do qual recebe as influências, mas sente ainda a necessidade de referir-se a sua mãe, que permanece sendo seu critério. Dos quatorze aos vinte e um anos, está na escola da vida e de seus mestres, distanciando-se progressivamente da influência materna.
A idade de vinte e um anos marca o importante momento da circuncisão ritual e da iniciação às cerimônias dos deuses. Durante o segundo bloco de vinte e um anos, o homem vai elaborar os ensinamentos que recebeu no período anterior. Ele é então considerado como estando à escuta dos sábios, e se ocorre que lhe dêem a palavra, é por um favor ou para colocá-lo à prova, não por direito. Aos quarenta e três anos, entretanto, considera-se que atingiu virtualmente a maturidade e figura entre os mestres. Tendo o direito à palavra, ele tem que ensinar aos outros aquilo que aprendeu e sobre o que meditou durante os dois primeiros períodos de sua vida. Aos sessenta e três anos, término da grande fase ascendente, ele é considerado como tendo concluído sua vida ativa. Não é mais compelido a nenhuma obrigação, o que não o impede, eventualmente, de continuar a ensinar, se esta é sua vocação ou capacidade.
Em nenhum momento a pessoa humana é considerada como uma unidade monolítica, limitada a seu corpo físico, mas sim como um ser complexo, habitado por uma multiplicidade em movimento permanente. Não se trata, portanto, de um ser estático ou acabado. A pessoa humana, como a semente vegetal, é evolutiva a partir de um capital inicial que é seu próprio potencial. Este vai desenvolver-se ao longo de toda a fase ascendente de sua vida, em função do terreno e das circunstâncias encontradas. As forças liberadas por essa potencialidade estão em perpétuo movimento, assim como o próprio cosmos.
Para ilustrar esta idéia, lembremos brevemente o mito de criação do homem na tradição bambara:
Maa-Ngala (ou Deus-Mestre) autocriou-se. Depois criou vinte seres, que constituiriam o conjunto do universo. Mas ele apercebeu-se de que, dentre essas vinte primeiras criaturas, nenhuma estava apta a tornar-se seu kumanyon, isto é, seu interlocutor. Então, recolheu um pedaço de cada uma das vinte criaturas existentes. Misturou tudo, o que serviu para criar um vigésimo primeiro ser híbrido, o homem, ao qual deu o nome de maa, ou seja, o primeiro nome que compõe seu próprio nome divino.
Para conter maa, o ser todo-em-um, Maa-Ngala concebeu um corpo especial, vertical e simétrico, capaz de abarcar ao mesmo tempo um pouco de cada um dos seres existentes. Este corpo, chamado fari, simboliza um santuário onde todos os seres se encontram em circundução (1). É por isso que a tradição considera o corpo do homem como o mundo em miniatura, conforme a expressão Maa ye dinye merenin de ye, isto é: "O homem é o universo em miniatura".
O corpo inteiro corresponde a um simbolismo bem preciso. A cabeça, por exemplo, representa o estágio superior do ser, perfurada por sete grandes aberturas. Cada uma delas é a porta de entrada de um estado de ser, ou mundo, e é guardada por uma divindade. Cada porta dá acesso a uma nova porta interior, e esta, ao infinito. O rosto é considerado como a fachada principal da morada das pessoas profundas de Maa. Sinais exteriores permitem decifrar as características dessas pessoas. "Mostre-me seu rosto, e eu lhe direi a maneira de ser de suas pessoas interiores", diz o adágio. Cada ser interior corresponde a um mundo que gira em torno a um eixo ou ponto central.
O psiquismo do homem é, portanto, um conjunto complexo. Como um vasto oceano, sua parte conhecida não é nada comparada à ainda por conhecer. O ditado malinês é eloqüente a esse respeito: "Nunca se acaba de conhecer Maa..."
Por que esta complexidade?
De um lado, o nome divino do qual Maa é investido confere-lhe o espírito, e o faz participar da Força Suprema. Esta chama-o à sua vocação essencial: tornar-se o interlocutor de Maa-Ngala. De outro, os diversos elementos que estão nele o tornam depositário de todas as forças cósmicas, tanto as mais elevadas como as mais baixas. A grandeza e o drama de Maa consistem em ser ele o lugar de encontro de forças contraditórias em perpétuo movimento, que somente uma evolução bem realizada no caminho da iniciação lhe permitirá ordenar, ao longo das fases de sua vida.
As forças múltiplas e variadas que se movem no universo dissimulado de Maa constituem os estados, ou pessoas psíquicas, emanadas do espírito do próprio Maa. O Espírito, princípio imaterial e imortal, não é um ser imaginário. Ele existe. É ele que dá nascimento à Imaginação, faculdade bem real (não confundir com o imaginário), graças à qual Maa torna-se capaz de visões e de relacionamento com espíritos ou seres que habitam fora dele ou fora do mundo visível. Para retomar uma expressão de meu amigo Boubou Hama, ele "concretiza o abstrato", que assume imagem e forma. O espírito de Maa permite-lhe conhecer, compreender e reforçar sua atenção. Desenvolvendo essas aptidões, Maa torna-se capaz de julgar.
A pessoa, assim, não está encerrada sobre si mesma, como uma caixa bem fechada. Ela se abre em diversas direções, diversas dimensões, poderíamos dizer, ao mesmo tempo interiores e exteriores. Os diversos seres, ou estados, que estão nela, correspondem aos mundos que se escalonam entre o homem e seu Criador. Eles estão em relação entre si e, através do homem, em relação com os mundos exteriores. Antes de tudo, a pessoa está ligada a seus semelhantes. Não se saberia concebê-la isolada ou independente. Assim como a vida é unidade, a comunidade humana é uma, e interdependente.
Devido a esse sentimento profundo de unidade da vida, a pessoa humana não é destacada do mundo natural que a cerca. Mantém com ele relações de dependência e equilíbrio, codificadas por regras de comportamento ensinadas pela doutrina tradicional Bembaw-sira. Leis precisas determinam a conduta do homem face a todos os seres que povoam a parte vital da terra: minerais, vegetais e animais. Essas leis não podem ser violadas, sob pena de provocarem, no seio do equilíbrio da natureza e das forças que a sustentam, uma perturbação que se voltaria contra ele.
A noção de unidade da vida é acompanhada pela noção fundamental de equilíbrio, de troca e de interdependência. Maa, que contém em si um elemento de todas as coisas existentes, é chamado a tornar-se o fiador do equilíbrio do mundo exterior, e até mesmo do cosmos. Na medida em que reintegra sua verdadeira natureza (a do Maa primordial), o homem surge, no mundo, como o eixo convocado a preservar a multiplicidade exterior de cair no caos.
Assim, da boa ou má conduta dos reis ou chefes religiosos tradicionais, dependerá a prosperidade do solo, o regime das chuvas, o equilíbrio das forças da natureza etc.
Enquanto o homem não tiver ordenado os mundos, as forças e as pessoas que estão nele, ele é o Maa-nin. Ou seja, um tipo de homúnculo, o homem ordinário, o homem não realizado. A tradição diz: Maa kakan ka sé i yere Ia naate a be to Maa ni yala. Isto é: "Não podemos sair do estado de Maa-nin, para reintegrar o estado de Maa, se não formos o mestre de nós mesmos".
Para concluir, chamarei a atenção sobre o fato de que a tradição se ocupa da pessoa humana enquanto multiplicidade interior, inacabada no princípio, chamada a ordenar-se e a unificar-se, como a buscar seu justo lugar no seio das unidades mais vastas, que são a comunidade humana e o conjunto do cosmos.
Síntese do universo e confluência das forças de vida, o homem é assim chamado a tornar-se o ponto de equilíbrio onde poderão reunir-se, através dele, as diversas dimensões das quais é portador. Então ele merecerá verdadeiramente o nome de Maa, interlocutor de Maa-Ngala, e fiador do equilíbrio da criação. ....

Notas:
1.Rotação de um membro em torno de sua inserção no tronco, conforme um cone, do qual a articulação forma o vértice

Tradução de Daniela Moreau

(texto originalmente editado em francês como capítulo do livro Aspects de la Civilization Africaine, Paris, Présence Africaine, 197