Os naturalistas alemães Johann Baptist von
Spix (1781-1826) e Carl von Martius (1794-1868) percorreram
o Brasil desde 1817 até 1820,
quando retornaram à Europa com uma coleção de 6.500 plantas, 2.700
insetos, 85 mamíferos, 350 pássaros, 150 anfíbios e 116 peixes, que foi
incorporada ao Museu de História Natural de Munique. (Imagine o que o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
– Ibama – teria a dizer a respeito disso hoje!)
Os relatos fascinantes feitos pela dupla peripatética sobre o nosso país
encantaram o jovem pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), que
veio para o Brasil em 1821, aos 19 anos. Rugendas foi inicialmente
contratado como pintor em uma expedição à Amazônia comandada pelo Barão Langsdorff,
o Cônsul-Geral da Rússia, mas se desentendeu com ele e acabou abandonando
a excursão.
Ele ficou então por sua própria conta no Brasil até 1825, documentando
aspectos da nossa natureza e da nossa sociedade. Seus trabalhos foram
reunidos no maravilhoso livro Viagem pitoresca através do Brasil (uma
tradução sumarizada desse livro para o português foi publicada pela
Editora Itatiaia em 1998).
Rugendas se encantou particularmente com a ampla variedade de povos
africanos no Rio de Janeiro, que captou em sua arte (ver figura). Como
relatado por ele, “em um só golpe de vista o artista pode conseguir
resultados que, na África, só atingiria através de longas e perigosas
viagens a todas as regiões dessa parte do mundo”.
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Montagem (feita pelo
colunista) de retratos de escravos de várias origens geográficas,
pintados por Johann Moritz Rugendas no Rio de Janeiro, durante a
década de 1820. Cada escravo(a) é identificado(a) por sua etnia,
como se segue: (1) Angola, (2) Congo, (3) Bengüela, (4) Monjolo,
(5) Cabinda, (6) Quiloa, (7) Rebolo, (8) e (9) Moçambique, (10)
Mina. As etnias de 1-5 e 7 são da África central, 8-9 são do
sudeste africano e 10 é da África ocidental. A presença de um
escravo Quiloa é peculiar, pois essa é uma etnia da África
Oriental, região da qual vieram muito poucos escravos para o
Brasil. Todos, com exceção da escrava da Mina, falavam dialetos da
família Bantu.
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Escravos bantus no Brasil
Em um artigo fascinante, Robert Slenes, professor do Departamento de
História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), relata como
Rugendas argutamente observou que muitos daqueles escravos africanos,
angolas, congos, bengüelas, monjolos, cabindas, rebolos, moçambiques,
vindos das regiões mais variadas da África, rapidamente podiam conversar
entre si.
De volta à Europa em 1825, Rugendas passou essas informações a
estudiosos, incluindo um geógrafo e etnólogo italiano chamado Adriano
Balbi (1782-1848). No seu tratado Atlas ethnographique du globe (‘Atlas
etnográfico do globo’), Balbi proclamara a existência de uma grande
família lingüística ao sul do Equador na África (excluindo os bosquímanos
e hotentotes, é claro).
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Cerca de três mil anos
atrás, iniciou-se a chama “expansão bantu”. Um grupo
lingüisticamente homogêneo da parte sudoeste da região onde hoje
fica Camarões (mancha negra) iniciou um processo de migração,
conquista territorial e expansão populacional que durou mais de mil
anos e terminou com a ocupação pelos descendentes desse povo de
grande parte da África central, austral e oriental.
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Em seu artigo, Slenes cita Balbi: “No
momento de soltar esta folha para ser impressa, um feliz acidente nos
levou a conhecer o Sr. Maurice (Johann Moritz) Rugendas, chegado há pouco
do Brasil”, onde “tivera a perspicácia de interrogar os numerosos
africanos que o abominável comércio de escravos ainda leva a esse império
do Novo Mundo”.
Somente em 1860 essa família lingüística (que sabemos hoje conter 87
línguas) receberia o nome de Bantu, palavra que significa “homem” na
grande maioria desses idiomas. Como diz Slenes, “pode-se dizer, portanto,
sem exagero, que através de Rugendas a Europa descobriu no Brasil uma
parte importante da África”.
Como explicar tal unidade em uma grande região da África, continente
caracterizado por extremo mosaicismo lingüístico? A explicação é que
ocorreu uma notável expansão populacional histórica em escala
continental, a chamada expansão Bantu (ver figura).
Cerca de 3 mil anos atrás, um grupo lingüisticamente homogêneo da parte
sudoeste da região que é hoje Camarões iniciou um processo de migração,
conquista territorial e expansão populacional. Esse processo durou mais
de mil anos e terminou com a ocupação pelos descendentes desse povo de
grande parte da África central, austral e oriental.
Um estudo genético de brancos brasileiros
Com base nos critérios de autoclassificação do censo de 2000 do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira era
composta por 53,4% de brancos, 6,1% de pretos e 38,9% de pardos. O que
representam esses números em termos de ancestralidade genética?
Em preparação para as comemorações em torno de 500 anos da chegada dos
portugueses ao Brasil, fizemos uso de marcadores genômicos para mapear,
na população autodeclarada branca do Brasil, as distribuições geográficas
das ancestralidades ameríndia, européia e africana. O trabalho foi
publicado na Ciência Hoje de abril de 2000, mês exato da
comemoração, com o título "Retrato molecular do Brasil".
Para isso, amostras de DNA da população do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul
do Brasil foram estudadas com dois marcadores moleculares: o cromossomo Y
para estabelecer linhagens paternas (patrilinhagens) e o DNA mitocondrial
para estabelecer linhagens maternas (matrilinhagens) – leia na coluna de
agosto sobre como essas ferramentas permitem a realização de pesquisas de
genealogia.
Nosso estudo revelou que a esmagadora maioria das linhagens paternas da
população branca do país veio da Europa. Porém, surpreendentemente, as
linhagens maternas no Brasil como um todo mostraram uma distribuição
bastante uniforme quanto às origens geográficas: 28% de linhagens
africanas, 33% de ameríndias e 39% de européias.
Como esperado, a freqüência relativa desses três grupos filogeográficos
variou consideravelmente entre as quatro regiões brasileiras analisadas.
A maioria das linhagens
mitocondriais no Norte era de origem ameríndia (54%), enquanto a
ancestralidade africana era mais comum no Nordeste (44%) e a européia no
Sul (66%). O Sudeste apresentou um equilíbrio nas freqüências das três
origens geográficas.
Origem das linhagens africanas
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O gráfico da esquerda
mostra a distribuição das linhagens mitocondriais dos brasileiros
autodeclarados brancos. O da direita mostra a distribuição de
haplogrupos nas linhagens africanas.
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Quando fizemos a análise detalhada das
linhagens matrilíneas africanas presentes em brasileiros brancos,
observamos que apenas três haplogrupos eram responsáveis por 69% delas:
30% das linhagens pertenciam ao haplogrupo L3e, 20% ao L2 e 19% ao L1c.
Ao examinarmos em 2000 a literatura sobre as freqüências dos vários tipos
mitocondriais em africanos, não encontramos nenhuma região que
apresentasse alta freqüência dos haplogrupos L3e e L1c.
Também não encontramos na época nenhum estudo publicado sobre os
haplogrupos mitocondriais em Angola ou no Congo, territórios de onde
sabidamente havia se originado a maioria dos escravos trazidos para o
Brasil. Estas eram regiões conhecidamente habitadas por Bantus.
Assim, fizemos uma inferência reversa, propondo em dois artigos que os
três haplogrupos que havíamos observado, especialmente L3e e L1c,
deveriam ser os mais freqüentes em Angola e no Congo.
Posteriormente, publicações de estudos de populações africanas feitos por
Antonio Salas e seus colegas na Universidade de Santiago de Compostela,
na Espanha, confirmaram que a nossa inferência estava correta. Assim, de
uma maneira quase paradoxal, a população branca brasileira provou ser, em
2000, uma excelente fonte para estudo da filogenia do DNA mitocondrial na
África central.
Mais recentemente, tivemos a oportunidade realizar estudos mais
detalhados sobre as linhagens mitocondriais da população negra
brasileira, em colaboração com a equipe de Maria Cátira Bortolini, no
Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande Sul
(UFRGS). Emergiram então muitos fascinantes dados novos sobre as raízes
africanas dos negros brasileiros, apresentados em duas publicações.
Mas ainda sou especialmente orgulhoso do nosso trabalho de 2000, no qual,
assim como fizera Rugendas dois séculos antes, descobrimos no Brasil uma
parte importante da África.
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
10/10/2008
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