Por Laura Morandini & Ariell Chris
O
homem em sua necessidade constante de progresso e avanço tecnológico, com o
passar do tempo foi pouco a pouco desprezando a forma de pensamento simbólico e
mítico, considerando-o como mera fantasia dos povos primitivos assim como
contraproducentes para sua evolução.
As
culturas dos povos antigos (Babilônios, Egípcios, Maias, entre outros)
desenvolveram um complexo sistema de pensamento abstrato/sagrado sendo a
Qabalah, a Alquimia, a Astrologia e O Tarot manifestações que chegaram até nós,
mas que ainda são consideradas pelos profanos puras superstições. Este
conhecimento universal se expressa fundamentalmente através de símbolos que os
iniciados estão obrigados a dominar já que as imagens míticas outorgam a
possibilidade de conexão com o atalho sagrado e a memória da natureza, o qual
resulta totalmente inacessível por meio do pensamento lógico.
Dentro
da história da Psicologia, foi C. G. Jung quem recuperou estes conhecimentos
herméticos e traduzindo-os a uma linguagem psicológica, conseguiu introduzi-los
na cultura ocidental moderna, revalorizando-os. Sua missão esteve encaminhada
em compreender as manifestações do inconsciente: sonhos, fantasias, visões,
alucinações, que aparecendo de forma aparentemente confusa, desconexa e caótica
deviam encerrar um significado e um sentido.
É
por isso que ante as imagens que proporciona o mundo obscuro se poderiam tomar
duas atitudes básicas: ou as deixar passar lentamente –o que significa que
pouco a pouco seguirão apresentando cada vez com maior força e até sob forma de
sintoma físico- ou assumir o compromisso de trabalhar o material apresentado e
tentar lhe dar um sentido e significado pessoal para integrá-lo à consciência.
Foi esta a opção de Jung, quem, a partir de sua própria experiência arquetípica
teceu sua teoria, amplificando-a através dos anos enquanto percorria e vivia
seu mito pessoal. Sem sabê-lo, Jung era guiado por forças invisíveis a cumprir
um rol xamânico.
Nas
tribos animistas, o sacerdote chamado shamán era quem possuía a chave
para penetrar no mundo dos espíritos e assim ser mediador entre a vontade dos
Deuses e os homens. Seu rol de historiador, curador, sábio conselheiro e chefe
espiritual não lhe era outorgado ao acaso. O candidato ao shamán era
identificado por determinados sinais que ia mostrando ao longo de sua infância
e puberdade, que consistiam em sintomas físicos e psíquicos particulares:
isolamento, convulsões, visões terroríficas, enfermidades físicas
desconhecidas, linguagem incoerente, etc. Por volta dos 15 anos se isolava o
candidato em uma gruta e o submetia a uma rigorosa iniciação, a qual consistia
em submetê-lo a provas que implicavam a confrontação com o mundo dos espíritos
elementares da natureza. Nesta luta cruenta se o candidato saía vitorioso os elementares
o serviam como aliados e intermediários com outros espíritos dotando-o de
poderes curadores, do dom para interpretar sonhos, a capacidade para viajar de
tempo e espaço, a magia para adotar formas animais diversas e o conhecimento
curador das ervas. Se fracassava na prova, seria vencido por estas mesmas
forças sob forma de morte ou enfermidade, loucura e sofrimento constante. Terá
que recalcar que este mesmo resultado era a conseqüência de rechaçar a
experiência iniciática por temor.
Em
sua autobiografia Mémórias, Sonhos e
Reflexões, Jung descreve esta mesma experiência através da qual entra em
contato com os conteúdos de seus sonhos e visões, a escuridão e riqueza de sua
psique e o enfrentamento com suas dúvidas e temores, devido às imagens que o inconsciente
lhe proporcionou durante os anos 1912-1920. Foram para o Jung "a matéria
prima de um trabalho que durou toda a vida". Precisava achar a resposta às
inquietações que as teorias e os dogmas não tinham podido lhe oferecer.
Depois
da ruptura com Freud, para Jung começou um período de confusão, dava-se conta
que não possuía um marco de referência teórico no qual apoiar-se, por isso
assumiu uma atitude de tipo "vivencial". Trabalhava com seus
pacientes sem seguir regras preestabelecidas e tratava de ajudá-los a entender
as imagens oníricas que estes lhe proporcionavam através da intuição e seu
próprio trabalho pessoal de introspecção. Sentia que podia obter ajuda da
mitologia para acessar ao mundo do inconsciente, entretanto esta não lhe
oferecia maiores respostas já que ainda não tinha conseguido decifrar seu
próprio mito.
Em
um sonho de 1912 Jung entra em contato com imagens relacionadas com mortos e
com a lenda alquímica do Hermes Trimegisto, tenta dar significado ao sonho, mas
se dá por vencido pensando que o melhor é "continuar vivendo",
tratando de emprestar atenção às fantasias e imagens que se apresentariam.
Outro sonho em que apareciam tumbas de mortos que voltavam para a vida à medida
que Jung os observava, sugeria-lhe a existência de restos arcaicos
inconscientes que cobram vida através da psique; este conteúdo lhe serve
posteriormente para formular sua teoria sobre os arquétipos.
Todo
este material simbólico contribuído pelos sonhos Jung não conseguia
compreendê-lo e vencer assim o estado de desorientação, sentia uma grande
opressão interna e chegou a pensar que sofria algum tipo de transtorno
psíquico. Através de uma revisão dos acontecimentos concretos de sua vida
tentou encontrar alguma explicação a sua confusão, mas sendo este caminho também
infrutífero, decidiu entregar-se por completo ao mundo do inconsciente.
O
primeiro que recordou foi um episódio de sua infância quando estava acostumado
construir casas e castelos com pedra e lama. Esta lembrança serve de conector
com sua parte mais genuína e criativa, por isso decidiu reviver esse momento
retomando esta atividade de "construção". Começou a criar uma cidade
na qual colocou uma igreja, mas notou que resistia a colocar o altar. Um dia,
caminhando perto do lago, encontrou uma pequena pedra piramidal de cor
vermelha, e ao vê-la compreendeu que devia tratar do altar. No momento que a
colocou em seu sítio, voltou para sua mente a lembrança do falo subterrâneo que
tinha sonhado de menino, e sentiu um grande alívio. Parecia que o inconsciente
o estava guiando à compreensão daquelas coisas que no passado não tinham tido
resposta.
À medida que realizava esta
atividade de construção, sentia que seus pensamentos se esclareciam e que se
encontrava no caminho adequado para descobrir seu próprio mito. Desde este
momento Jung afirma que ao longo de sua vida, nos momentos de escuridão,
recorria à criatividade como uma porta de entrada aos pensamentos e idéias que
queria desenvolver.
No
outono de 1913, o sentimento de opressão interna parecia cobrar vida
externamente através de feitos concretos. Começaram a apresentar visões
repetitivas que profetizavam uma grande catástrofe de tipo coletivo onde
preponderavam conteúdos de morte e acontecimentos de sangue, enquanto que uma
voz interna lhe assegurava que tudo o que percebia era certo. Jung não
conseguia explicar estas visões e chegou a pensar que estava psicótico. As
visões duraram quase um ano, com intervalos de meses entre umas e outras; todas
aludiam ao mesmo contido. Em Agosto de 1914 começou a primeira guerra mundial.
Nesse momento Jung compreendeu que existia uma conexão entre sua experiência
pessoal e a coletiva, por isso sentiu a necessidade de explorar a fundo sua
própria psique e começou a anotar todas as fantasias que lhe chegavam em seus
momentos de jogo e construção, quando dava liberdade à sua criatividade.
Começa
um período no qual é invadido por toda classe de fantasias e imagens, afirmava
sentir-se indefeso ante este mundo difícil e incompreensível, mais de uma vez
intuía o amparo convencido de ter que obedecer a uma "vontade
superior". Recorria a exercícios de ioga para dominar suas emoções e
encontrar calma para assim inundar-se de novo em seu enfrentamento com o
inconsciente. Traduzia suas emoções em imagens, em um intento pelas entender e
não ser possuído por elas. Esta vivência lhe serve de ferramenta para o
processo terapêutico, quer dizer: não ficar na emoção e sim chegar às imagens
subjacentes.
Jung
concebia este encontro com o inconsciente como um experimento científico sobre
si mesmo, onde as maiores dificuldades radicavam no domínio de seus sentimentos
negativos assim como na incompreensão do material que surgia de sua psique, o
que lhe produzia resistência, oposição e temor. Temia perder o controle e ser
possuído pelos conteúdos do inconsciente, mas ao mesmo tempo sabia que não
podia pretender que seus pacientes fizessem aquilo que ele não podia fazer
consigo mesmo. Apesar de considerar uma experiência penosa submeter-se a isto,
sentia que o destino o exigia. Obtinha as forças para enfrentar-se nesta luta
na idéia que não era só por seu bem, mas sim pelo de seus pacientes. Por outro
lado, a família e a atividade profissional foram ingredientes indispensáveis
para ajudar Jung em todo este processo. Ambas lhe recordavam que era um homem
comum. O mundo real e cotidiano complementava seu estranho mundo interior e
representava a garantia de sua normalidade. Jung afirma que isto marcou a
diferença entre ele e Nietzsche, que tinha perdido o contato com a realidade e
vivia submerso em seu mundo interno caótico.
Surgiram
então duas imagens importantes. A primeira aludia a transformação, morte e
renascimento, enquanto que a segunda sugeria que devia deixar de identificar-se
com o herói, aniquilar sua atitude consciente e apartar a vontade. Quer dizer,
abandonar as demandas do Ego para poder acessar à consciência transpessoal.
Em
outra imagem encontrava duas figuras bíblicas: Elías e Salomé - acompanhadas
por uma serpente negra- que afirmava que pertenciam à eternidade. Jung
interpretou estas figuras como a personificação de Logos e Eros. Entretanto
sentia que esta era uma explicação muito intelectual pelo que preferiu pensar
que eram a manifestação de processos profundos do inconsciente.
Posteriormente
apareceria em sonho outra figura chamada pelo Jung "Filemón". Era um
velho com chifres e asas de martín pescador, que levava consigo 4
chaves. Com ele, Jung conversava e Filemón lhe dizia coisas que lhe eram
desconhecidas, ensinou-lhe a "objetividade psíquica", o que ajudou
Jung a distinguir entre si mesmo e os objetos de seus pensamentos. Para Jung
esta imagem representava uma inteligência superior, um guru espiritual que lhe
comunicava pensamentos iluminados. Mais tarde surgiu a imagem de "Ka"
que representava uma espécie de demônio da terra, um espírito da natureza, que
em certa medida complementava a figura do Filemón.
Enquanto
Jung anotava suas fantasias, perguntava-se o que era em realidade o que estava
fazendo, já que certamente não se tratava de ciência. Uma voz feminina que
provinha de seu interior -que Jung associava com a voz de uma de seus
pacientes- respondeu-lhe que "era arte". Ele se opunha a pensar que
fosse arte, entretanto deixou fluir esta "mulher interior", embora se
sentisse assustado ante esta presença desconhecida. Chamou-a "anima",
referindo-se à figura interna feminina arquetípica do homem, enquanto que o
"animus" representava a figura masculina. Descreveu os
aspectos negativos da "anima" como sedução, astúcia e
ambigüidade mas com a qualidade de ser a mediadora entre a consciência e o
inconsciente. Jung afirma que durante anos serve-se de sua "anima"
para acessar aos conteúdos de seu inconsciente, enquanto que em sua velhice já
não recorria a ela porque conseguia captar estes conteúdos de forma direta.
Através
de sua "anima", Jung conseguia estabelecer um diálogo com o
inconsciente, acessar aos conteúdos do mesmo e diminuir a autonomia que exercia
sobre sua pessoa. O poder que tinha as imagens voltou menos violento. Já não
havia um salto do inconsciente para a consciência, mas sim estabelecia um
intercâmbio dinâmico criativo.
Estas
fantasias Jung as escreveu no "Livro Negro" e posteriormente no
"Livro Vermelho", no qual se encontram seus mandalas e as ilustrações
realizadas por ele mesmo. Entretanto sentia que não conseguia pôr em palavras
aquilo que experimentava, por isso preferiu dedicar-se em profundidade à
compreensão das imagens para assim tirar conclusões concretas das mensagens que
o inconsciente lhe sugeria. Esta foi a tarefa de sua vida, já que sentia uma
responsabilidade moral. Afirmava que o homem não pode limitar-se a ver surgir
as imagens e surpreender-se ante elas, deve compreendê-las porque de outro modo
está condenado a viver de forma incompleta. "É grande a responsabilidade
humana ante as imagens do inconsciente".
Em
1916 Jung experimenta uma nova visão: sua alma voava fora dele, o que
interpretou como a possibilidade de conectar-se com a terra dos mortos, dos
antepassados ou do inconsciente coletivo. Pouco depois desta visão percebia a
presença de espíritos que habitavam a casa -também seus filhos os percebiam-,
até que uma tarde os espíritos tocaram o timbre gritando "Retornamos de
Jerusalém, onde não encontramos aquilo que procurávamos". Jung então
escreve durante três noites os "Septem Sermones ad Mortuos" e
posteriormente os espíritos desapareceram. Afirma que esta experiência devia
ser tomada pelo que foi: a manifestação externa de um estado emotivo favorável
à aparição de fenômenos parapsicológicos. A evasão de sua alma o tinha
conectado com os espíritos. Estes escritos, que são diálogos com os mortos,
Jung os considera uma preparação daquilo que devia comunicar ao mundo sobre o
inconsciente e seus conteúdos.
Neste
período Jung se encontra frente a uma encruzilhada: ou seguir aquilo que lhe
ditava seu mundo interno, ou continuar com sua profissão acadêmica. Considerava
que não podia seguir ensinando aos estudantes quando em seu interior havia só
dúvidas. Decide então deixar seu posto como docente na universidade porque
"sentia que estava ocorrendo algo grandioso", e ele precisava
descobri-lo ou entendê-lo antes de poder compartilhá-lo publicamente. Como
conseqüência desta decisão, inicia um período de solidão já que não pode
compartilhar seus pensamentos com outros: não o teriam compreendido. Nem sequer
ele conseguia entender as contradições entre seu mundo interno e o externo. Só
quando pudesse demonstrar que os conteúdos psíquicos eram reais e coletivos,
então, nesse momento poderia comunicar sua nova visão sobre a psique. O risco
era grande, já que se não o compreendiam ficaria totalmente isolado.
Entre
os anos de 1918-19 começou a sair da escuridão em que se achava, e isto o
atribuiu a dois fatores: por um lado, distanciou-se se a voz feminina que
queria convencê-lo que suas fantasias eram de valor artístico e por outro,
começou a compreender os mandalas. Todos os dias desenhava pequenas figuras
circulares através das quais observava suas transformações psíquicas.
Considerava-as a totalidade do "Self". À medida que as
desenhava se expor a finalidade desta atividade, mas sabia que não podia
compreender o significado a priori, a não ser através do processo em si.
Dava-se conta que o desenvolvimento da psique não era um processo linear, mas
circular, que "tudo tende para o centro". Esta certeza lhe permitiu
encontrar paz interior e estabilidade. Era como se ele mesmo estivesse
encontrando seu próprio centro.
Em
1927 teve um sonho que confirmava esta idéia e o representou através de um
mandala que titulou "Janela para a Eternidade". No sonho Jung
se encontrava em uma cidade de forma circular, em um ambiente nublado e escuro,
em companhia de alguns suíços. Apesar deste ambiente opaco, no centro da cidade
havia um lugar com uma pequena ilha no centro onde se achava uma árvore de
magnólias que tinha luz própria. Só Jung tinha notado esta presença de
luminosidade, e então compreendeu que essa era a meta. Respeito a este sonho
Jung afirma " O centro é a meta e tudo se dirige para o centro. Graças a
este sonho compreendi que o "Self" é o princípio e o arquétipo
da orientação e do significado... reconhecê-lo para mim quis dizer ter a
intuição inicial de meu próprio mito”.
Sem
esta imagem teria perdido a orientação e abandonado o caminho que tinha
iniciado, depois de tanta escuridão tal imagem devia conceber-se como um
"ato de graça", como a manifestação do numinoso.
No
ano seguinte desenhou outro mandala que tinha um castelo de ouro no centro, a
forma e as cores lhe sugeriam um estilo chinês. De maneira sincrônica R.
Wilhelm lhe enviava uma carta com um manuscrito de um tratado de alquimia
taoísta titulado "O mistério da flor
de ouro". Esta coincidência ajudou Jung sair de sua solidão, já que
lhe dava a esperança que existiam pessoas com as quais podia ter afinidade e
compartilhar suas idéias.
Para
Jung estes foram os anos mais importantes de sua vida: sem cortar os laços com
sua realidade de homem comum e apesar da solidão, correu o risco de inundar-se
em sua própria escuridão tratando de lhe encontrar um significado e uma
finalidade a tudo aquilo que experimentava. Assumiu a responsabilidade de
analisar e compreender o material que o inconsciente lhe proporcionava e foi em
busca de seu próprio mito.