quarta-feira, 23 de março de 2011

A imagem do Mal...


Para começo de conversa, precisamos entender que o ser humano é um ser gregário. Ou seja, nós seres humanos necessitamos da companhia de nossos pares para que possamos sobreviver e nos adaptarmos ao meio ambiente. E isso é resultado da nossa condição biológica! Ao nascermos somos muito frágeis e precisamos de cuidados constantes por um longo período de tempo até que possamos caminhar com as próprias pernas. Além disso, o mundo primitivo de nossos antepassados era altamente inóspito do ponto de vista das condições de sobrevivência, logo um ser humano sozinho teria nenhuma chance de sobreviver.

Tal arranjo levou a humanidade a se organizar em grupos para que tivéssemos mais chances de caçar, coletar alimentos e criar nossos filhotes. Já que todas essas atividades eram extremamente perigosas diante dos riscos à vida oferecidos pelos animais selvagens e pelas adversidades climáticas e geográficas do mundo primitivo. Com isso podemos entender que, para o ser humano, a sobrevivência do grupo significaria a sobrevivência do indivíduo. Sendo assim o grupo tornou-se o fundamento da existência humana e qualquer coisa que o colocasse em risco deveria ser entendida como nociva.

Aqui chegamos no ponto em que ocorre uma cisão entre o que seria o bem e o que seria o mal ao nível do imaginário coletivo da humanidade. Se para a sobrevivência humana o grupo era essencial – e o desejo de viver constitui-se num instinto básico da condição humana – tudo  àquilo que pudesse colocar o grupo em risco de dissolução, seria naturalmente tido como maléfico. Já que a dissolução do grupo representaria a morte do indivíduo e conseqüentemente a extinção da espécie humana. Por outro lado, tudo aquilo que pudesse fortalecer o grupo seria visto como benéfico, posto que o fortalecimento do grupo implicaria em maiores chances de sobrevivência individual e perpetuação da espécie.

Seguindo esse raciocínio podemos pensar que diferentes grupos coroaram o mal com diferentes atributos. Muito embora todos esses atributos falassem de alguma forma de desobediência, de indisciplina, de rebeldia, de recusa… Ora, se o mal estava intimamente relacionado àquilo que poderia colocar a sobrevivência do grupo em risco, toda atitude que se opusesse às regras do grupo haveria de cair na denominação de mal. Mitos como o de Adão e Eva,LilithLúciferPrometeu e Pandora ilustram maravilhosamente esse aspecto do mal associado a desobediência.

O fato dos diferentes grupos humanos enfrentarem diferentes obstáculos para a sua sobrevivência devido a diferenças geográficas, climáticas, etc., fez com que a Mitologia em torno do mal adquirisse contornos muito particulares em cada povo. Se não, vejamos:

Os povos Semitas pré-cristãos fundamentavam sua organização social e econômica em torno do pastoreio. Mesmo quando o contato com a agricultura já havia se firmado, a criação do gado continuou a ser o alicerce da atividade econômica, e da identidade cultural e material, desse povo. Como em geral acontece com os povos de origem pastoril, os Semitas eram pastores nômades que viviam deslocando-se com seus rebanhos de um lugar para outro a fim de trocar e negociar lã, leite, couro, carne e quaisquer outros derivados do seu rebanho, e essa era sua fonte de sobrevivência. Com isto havia constante luta por territórios favoráveis ao pastoreio e rotas para escoamento e troca de produtos. Logo, tudo o que fosse empecilho para obtenção do pasto e para o deslocamento necessário para as negociações haveria de ser visto como mal, porque obviamente colocava a sobrevivência do grupo em risco.

E o que poderia impedir o bom andamento de um grupo como esse? O mitólogo romeno Mírcea Elíade (1907-1986), nos faz pensar sobre essa questão abordando o papel da mulher nessas sociedades pré-cristãs do Oriente Médio. Segundo Elíade, as mulheres nas sociedades Semitas (como na maioria das culturas da antiguidade) eram responsáveis pelo cultivo da terra, pela organização da casa/tenda, pelo preparo dos alimentos e pelos cuidados das crianças e velhos. Adicione-se a isso o fato de serem elas (as mulheres), quem a engravidar, pare, amamenta… Ou seja,  para exercer todas essas funções, as mulheres precisavam carregar consigo os filhotes e todas as “tralhas” requeridas para a execução de suas tarefas diárias com a casa e a terra. Para um povo que precisa constantemente estar se deslocando e guerreando por espaço isso é um estorvo!!

É interessante observar que na natureza dificilmente encontramos grupos de animais nômades constituídos por machos e fêmeas adultos que convivem harmonicamente. O nomadismo na natureza é quase sempre caracterizado por grupos animais em que fêmeas e machos adultos vivem em bandos separados, ou em que as fêmeas submetem-se aos machos. É como se de alguma forma as necessidades e características dos dois sexos não pudessem ser harmonizadas de forma igualitária num estilo de vida nômade. Da mesma forma, observa-se que o tratamento dispensado às mulheres nas sociedades humanas nômades, ainda hoje, é consideravelmente mais desigual do que àquele conquistado nas sociedades sedentárias. Haja vista, a condição das mulheres Ciganas, Eskimós e de outros grupos nômades como Thuaregs, etc.

Seguindo o raciocínio de Elíade, fica mais fácil compreender como sociedades nômades produziram Mitos ligados ao Arquétipo do feminino como o de Lilith – mulher parideira que reivindica os mesmos direitos dos homens – ou Eva que, apesar de sua condição de auxiliar idônea de Adão, é curiosa o suficiente para desobedecer as ordens do patriarca. Ou ainda, de como surgiram Mitos como o de Caim e Abel. Em todas as versões desse Mito, Abel que é visto como o bem é pastor. Porém, Caim aparece em duas diferentes atividades dependendo da versão do Mito, as atividades em questão são agricultor e ferreiro!! Tanto a atividade agrícola quanto a de ferreiro exigem assentamento, fixação num mesmo lugar. A atividade de ferreiro em especial, está diretamente ligada a constituição da cidade; e a cidade é por excelência o fim do modo de vida nômade. Em algumas versões do Mito de Caim e Abel, Caim é tido como o fundador da primeira cidade na terra dos homens.

Uma outra origem para os Mitos associados a Imagem Arquetípica do Mal, diz respeito as dificuldades ambientais enfrentadas pelos primeiros grupos humanos. A escuridão da noite que trazia a ameaça de predadores escondidos nas sombras, tempestades violentas, raios e trovões incontroláveis e vulcões em erupção capazes de incendiar, matar e ferir representavam o excesso da força natural que fugia ao domínio da humanidade; e poderia colocar em risco a frágil vida dos primeiros seres humanos sobre a terra. Portanto, as forças indomáveis da natureza poderiam ser associada ao mal, da mesma forma o frio ou calor intenso, que representavam para nossos ancestrais a morte inequívoca e colocava em risco a sobrevivência do grupo e da espécie.

Pensemos então no frio excessivo do norte da Europa; pensemos no Mito nórdico do deus Loki que, miticamente falando, aparece  como uma das clássicas representações arquetípicas do Mal. O povo Viking tinha na conquista de “terras” alheias não só a chance de acumular riquezas mas principalmente de permitir a própria sobrevivência, posto que sua organização como um povo associava-se aos valores atribuídos à função de guerreiro.  Além do mais qualquer inverno mais rigoroso e prolongado do que o esperado era suficiente para dizimar  as chances de sobrevivência dos habitantes da Escandinávia, minando as promessas de semeadura e colheita vindouras e a saúde dos rebanhos. Diante disso, uma das possíveis soluções para a sobrevivência seria a guerra e o saque advindo desta. Não é de espantar que para os Vikings a virtude se encontrasse em valores como: Coragem, Verdade, Honra, Fidelidade, Disciplina, Diligência, Perseverança e Autoconfiança. Todos esses atributos tão valorizados pelos povos Vikings, nada mais são do que elementos necessários para se conduzir um exército vitorioso, afinal é disso que se necessita para entrar numa guerra e sair dela vivendo.

Então o que poderia ameaçar a harmonia de um grupo Viking? A covardia, a traição, a trapaça… elementos que podem colocar uma guerra a perder! E esses são os atributos de Loki, o deus nórdico que alguns gostam de associar a figura do Satã judaico-cristão. No entanto, embora tanto Loki quanto Satã sejam Mitos representativos da Imagem Arquetípica do Mal, eles possuem origens diversas e os atributos que representam são de diferentes ordens. Arquétipos são universais, Mitos não!! Mitos são regionais e falam da história e origem de cada grupo/povo distintamente, e é por isso que um mesmo tema arquetípico pode ter várias representações, pois cada grupo representa o Arquétipo – confere-lhe significado simbólico e o expressa por meio de imagens – de acordo com sua vivência e realidade espaço-temporal.

Contudo, existe uma diferença básica entre a visão mítica do mal para os judaico-cristãos e para os povos pagãos do ocidente – e aqui incluo, Celtas, Vikings, Gregos, etc. – Essa diferença diz respeito ao lugar do mal no universo e na nossa vida. Para os povos pagãos o mal era tão somente uma outra face do processo da vida. Loki, apesar de representar aquilo que os Vikings mais condenavam não foi banido ou punido, muito menos desprezado ou negado. Ao contrário ele era um deus entre outros deuses e suas características eram reconhecidas como estando presentes em nossas vidas e em nós mesmos, tanto é que, muitas vezes, os outros deuses do panteão Viking recorreram a essas mesmas características “condenáveis” de Loki para conseguirem o que queriam. E mais do que isso, Loki era associado ao fogo, elemento do paraíso mítico Viking e fonte de acolhimento para quem vive em terras geladas. Isso revela um aspecto particularmente interessante da visão do “Mal” nas culturas pagãs, que é o entendimento deste como o ponto de equilíbrio necessário para a conquista do “Bem”. O que aponta para um entendimento mais tolerante da pluralidade afetiva da condição humana.

Da mesma forma, Mitos como o do deus grego Dionísio que exemplificam características não muito desejáveis para o convívio em grupo – devemos lembrar que Dionísio enlouquecia as mulheres. Isso não pode ser muito bom para o grupo, não é mesmo?!! – falam de maneiras de lidar com o indesejável como algo que trazemos em nós e que precisa ser enfrentado. A loucura é socialmente entendida como o ápice da recusa, da rebeldia e da desobediência, e do ponto de vista da sobrevivência do grupo nada há na loucura que possa contribuir para sua manutenção. Porém, quando o Mito nos fala da loucura que Dionísio causava às mulheres, ele nos fala da necessidade de confrontarmos aquilo que é indomado em nós, aquilo que é selvagem e que tentamos reprimir. Se não o fazemos por determinação própria lá estará Dionísio para nos forçar a encará-lo e o resultado dessa recusa só pode ser a loucura, o caos.

Como podemos ver nesses breves exemplos, a definição arquetipica do Mal esta intimamente associada aos nossos medos, às nossas dificuldades para atuar na vida e continuar vivendo como um grupo. Acontece que também somos indivíduos, mesmo sendo integrantes de um grupo, e ao reconhecermos e nomearmos aquilo que é mal para o grupo, também o fazemos para nos mesmos como indivíduos. Portanto, o mal do ponto de vista individual também é aquilo que expressa nossos medos, nossas dificuldades para atuar na vida!!!!

Talvez por essa razão o judaísmo-cristão tenha propiciado a cisão total entre o bem e o mal, relegando para sempre o mal aos confins do indesejado, do não dito, do inconsciente. Devemos ter em mente que o cristianismo foi disseminado no ocidente por Roma. Roma era um império militar. Ou seja, Roma era uma nação que tinha como propósito não só sobreviver mas dominar todo o mundo conhecido. Ora, se eu quero dominar a todos eu não posso permitir a possibilidade da desobediência, da rebeldia, da recusa. Para dominar eu necessito que todos sob meu comando acreditem numa só verdade, num só modelo… Para isso eu devo eliminar todo e qualquer vestígio de contestação.

É interessante pensar que muitos povos houveram que conquistaram territórios estrangeiros, que escravizaram povos vencidos e que lutaram pela supremacia muito antes de Roma. Porém, nunca antes na história humana o mundo havia conhecido um império como o Romano, tal sede de conquista e tal poder militar. Talvez, por isso, Roma tenha sido na história humana o melhor exemplo de dominação cultural. Roma não queria somente ganhar o território inimigo, Roma queria transformar o inimigo em romano. E transformar o inimigo em romano significava fortalecer o império e as idéias propagadas pelo império. Nesse contexto não há idéia divergente que possa ser tolerada. Ainda que em seus derradeiros dias de Império efetivo, a Roma Imperial, que grassava no Imaginário ocidental, favoreceu a delimitação das fronteiras cristãs na nova Era (a Idade Média). Assim tudo o mais que não era cristão deveria ser conquistado (dizimado, exterminado). Dessa forma, nada mais natural do que delegar a toda cultura não romana e não cristã a alcunha do Mal; para que então, assim, o bem seja àquilo que a nova Roma – sede da Igreja cristã – eleja como tal.

Bem, se eu divido o mundo em dois, se eu recuso qualquer oposição, tudo que se opõe será mal. E dessa forma o mal foi mandado para o subterrâneo do imaginário humano. A Imagem Arquetípica do mal passa assim a ser representada por toda e qualquer forma de rebeldia, por toda e qualquer tentativa de perturbar a ordem, por todo e qualquer modelo que conteste a lei e aquilo que está estabelecido. Logo, o Mito primordial que representa o mal no Imaginário ocidental não mais se relaciona as limitações do grupo/indivíduo para lidar com a vida, mas se torna  a própria representação da contestação ao pensamento judaico-cristão. Assim o mal passa a ser representado pelo Mito de Satã, contado e descrito pelos povos judaico-cristãos, ao mesmo tempo que incorpora elementos das culturas pagãs subjugadas (e/ou miscigenadas) pela cultura da Roma cristianizada.

É fato que, do ponto de vista do desenvolvimento do imaginário coletivo ocidental, as características indesejáveis de nossa condição humana tornaram-se indelevelmente associadas a figura do Diabo judaico-cristão. A luxúria, a arrogância, a ganância, o ódio, o autoritarismo, a violência, a inveja, enfim qualquer sentimento ou comportamento vinculado aos excessos passou a pertencer ao reino das trevas, território em que a Imagem Arquetípica do Mal é representada pela figura de Satã.

Na cultura de povos politeístas as paixões humanas pertenciam a todos os deuses. Ninguém em sã consciência poderia dizer que qualquer deus de um panteão politeísta é totalmente bom, no sentido de que a bondade é aquilo que não destrói ou interfere no caminho de outrem. Todos nós sabemos que os deuses dos povos politeístas são capazes de amar e odiar, de construir e destruir.
Essa distribuição dos sentimentos e comportamentos humanos não desejáveis/agradáveis por vários deuses não dependia do fato de que, apenas, uma única entidade espiritual fosse a portadora do mal. Mesmo havendo deuses como o escandinavo Loki, ou o grego Dionísio – cuja função era concentrar esses aspectos indesejáveis – o fato de todas as divindades serem portadores de sentimentos contraditórios (bons e maus), fazia com que no imaginário humano tais sentimentos não se encontrassem totalmente dissociados.

Por outro lado, numa sociedade monoteísta que cultua um único deus, a organização do bem e do mal ao nível do imaginário tende a polarizar os diferentes aspectos da emoção e do comportamento humano. Se do ponto de vista psicológico nós, querendo ou não, necessitamos lidar com esses aspectos indesejáveis, eles, de alguma forma, precisam ser elaborados no nosso imaginário. Como a figura divina tende a estar originalmente associada à vida, torna-se necessário a existência de uma figura oponente que possa representar tudo aquilo que se opõe à vida; e obviamente a deus. Como visto anteriormente, a disseminação do cristianismo no ocidente estabeleceu uma nova ordem cultural, cujas conseqüências determinaram mudanças em todos os níveis da organização humana. A religião monoteísta, com seu modelo arquetipico polarizador das emoções e do comportamento humano, conferiu aos sentimentos indesajados a alcunha do mal absoluto. Com isso subtraímos de nossa consciência àquilo que não considerávamos adequado ao bem estar individual ou do grupo.

E, psicologicamente falando, aquilo que foi subtraído é a Sombra. A Sombra é tudo aquilo que consideramos feio, destrutivo, maligno, sujo, impuro, desarmônico, selvagem, egoísta, etc., mas que trazemos dentro de nós. Em geral associamos a Sombra a sentimentos e comportamentos negativos, mas podemos suprimir sentimentos e comportamentos considerados positivos se não nos sentimos confortáveis neles. Por não considerá-los adequados para o convívio em grupo tentamos reprimir, negar, destruir. O confronto com a Sombraé o confronto com aquilo que habita em nosso interior mas que preferiríamos que não estivesse lá. Pois esse confronto inevitavelmente nos obriga a despir a máscara social e civilizada que adotamos como nossa personalidade (aPersona), e que usamos para sermos aceitos no grupo e garantir nossa sobrevivência junto a nossa espécie.

Contudo há um fato sobre o Arquétipo que é válido ressaltar. De certa forma nós somos “prisioneiros” da trama em que os arquétipos são tecidos, até que nos conscientizemos disso e vivenciemos suas conseqüências.  Por mais que nos esforcemos não é possível “deletar” o papel exercido por um Arquétipo em nosso imaginário, não é possível simplesmente fugir a influência do Arquétipo, não é possível negá-la!!! É por isso que quando tentamos reprimir ou esconder sentimentos e comportamentos não desejáveis eles retornam como Sombra. Ao retornarem como a Sombra esses aspectos indesejáveis costumam causar uma total desestruturação, provocam rupturas, sintomas, doenças e ressentimentos. Isso se dá porque em geral tais aspectos não são trazidos à tona por nossa livre vontade. Há uma tendência de nos “encontrarmos” com eles por meio de uma outra pessoa com quem nos deparamos em nosso caminho. Na verdade eles estão dentro de nós, mas como não conseguimos enfrentá-los os projetamos em outra pessoa. É o outro que nos afronta com aquilo que queremos negar em nós mesmos!!

Por essa razão a Sombra esta intimamente ligada aos processos de Individuaçãoe Iniciação. No processo de Individuação, que é o processo de tornar-se si mesmo, a descoberta e integração daquilo que somos torna-se possível ao confrontarmos a Sombra. Esse confronto ocorre por meios altamente dolorosos que incluem a perda e a destruição da antiga imagem que carregamos como nossa por toda a vida (Persona). Similar a esse processo é a Iniciação mística, descer aos “infernos” faz parte do processo iniciático, deparar-se com o lado obscuro e enfrentá-lo é essencial para a iluminação. Não é a toa que Jung identificou o processo de encontro com a Sombra com o Fogo! O fogo pode iluminar mas pode queimar, ele tanto traz o conforto como a dor. Difícil é “brincar” com o fogo sem se queimar.

Se a Imagem Arquetípica do Mal se nos apresenta como Satã, é porque é esse motivo mítico que coroa o nosso imaginário. É através da figura de Satã que organizamos em nosso imaginário aquilo que é ruim, aquilo que é “mal” – muitas vezes esse “mal” é algo positivo que percebemos como ruim, algo que nos desafia e nos amedronta. Logo, se não conseguimos lidar com isso de forma equilibrada é porque esse mal que projetamos no Mito não esta bem trabalhado dentro de nós mesmos. Esse desequilíbrio permite que a força do Arquétipo nos domine e assim passamos a vivenciar tudo aquilo que atribuímos ao Mito, seja através de pessoas, de sentimentos, de ações ou de idéias que muitas vezes nos parecem “coincidências” do destino.

O fato é que não estarmos em equilíbrio com aquilo que somos, seja de bom ou de mal, nos torna frágeis e vulneráveis. Contudo, é justamente essa vulnerabilidade que nos permite crescer, que nos possibilita viver tanto aIndividuação quanto a Iniciação. Quem não está fragilizado não muda, não se expõe, não erra e portanto não pode aprender. E para ser um Indivíduo em acordo com Si-mesmo, ou um Iniciado, é preciso estar disposto a errar, por mais doloroso que isso possa ser. A separação e a dissolução acompanham tanto o sujeito em processo de Individuação quanto o neófito em processo de Iniciação, pois que não há transformação sem dor. Para que o chumbo vire ouro é preciso fogo intenso, moderado no inicio mas plena chama no final! Ninguém que desce aos infernos retorna o mesmo! Seja Perséfone ou CristoInanna ou Odim, eu ou você… Sinceramente, não creio que seja um mero acaso ilustrativo o fato de que a morada de Satã, o Mito angular do Arquétipo do Mal em nossa sociedade, seja alimentada pelo fogo!!!


*Angelita Viana Corrêa Scárdua é Psicóloga Clínica; Mestre em Psicologia Social pela USP (SP); Especialista em Abordagem Junguiana, em Neurociências e Comportamento e Professora Universitária. 

terça-feira, 8 de março de 2011

Visão de dentro...

Envio parte de meu Trabalho de Conclusão de Curso - TCC, para conhecimento dos amigos que me acompanham...
 Umbanda é conhecida por ser uma religião genuinamente brasileira. Congraçamento das três raças matrizes deste povo, sua origem ainda é controversa e sujeita a muitas discussões. O fato é que a riqueza da diversidade de escolas e, portanto, do entendimento do Sagrado, desperta a curiosidade de estudiosos e acadêmicos. Mas, de onde surgiu esse nome?
        Umbanda foi um termo encontrado apenas a partir de 1936, através da obra O Negro Brasileiro, do professor Artur Ramos (1934). Para Artur Ramos este termo teria significado feiticeiro ou sacerdote. Nenhum autor da época, entre eles Nina Rodrigues, João do Rio, Manoel Quirino, Roger Bastide, Donald Pierson, Gonçalves Fernandes, citam este termo. Nem mesmo Gilberto Freire cita Umbanda em 1934, no Primeiro Congresso Afro-Brasileiro. Certamente pelo fato de todos terem escrito sobre a cultura Afro-Brasileira, avaliando apenas os Cultos de Nação.
            Padre Manuel da Nóbrega (1549), um dos renomados nomes da Companhia de Jesus, relatou a manifestação de um pajé, que na ocasião apresentava a voz de criança, e induzia o transe nos nativos (PRIORI, 2004, p. 52). Pela descrição, podemos suspeitar que esta seja a primeira documentação escrita de uma entidade que, posteriormente, seria conhecida como a Criança da Umbanda. Então, a partir de 1860, manifestações de entidades como Caboclos, Pretos Velhos e Crianças, através de Juca Rosa (SAMPAIO, 2000), negro carioca alforriado, e de João de Camargo (RIVAS, M. E., 2008), negro paulista, começaram a ser relatados oficialmente.
Portanto, se as entidades umbandistas já se mostravam desde 1549, por que somente a partir de Zélio Fernandino de Moraes em 1908, considerou-se o surgimento da Umbanda? O fato de ser branco e kardecista teria alguma relevância? Na visão eurocêntrica, etnocêntrica, xenófoba da sociedade da época, somente a raça branca seria apta a confirmar uma fé (Mito de fundação).
            Fundada ou não em 1908, a Umbanda é o resultado do congraçamento das três matrizes formadoras deste país, o branco europeu, o negro africano e o indígena.
            Xambá, Toré, Babassuê, Terecô, Candomblé de Caboclo, Jurema e, enfim, Umbanda.
            Exatamente pelo fato de estarem contidas em sua raiz as três matrizes brasileiras, a Umbanda mostra uma riqueza incalculável de conceitos religiosos, ritualísticos, cerimoniais e lingüísticos. Essa mistura de conceitos Brahmânicos, Védicos, Judaico-Cristãos, Católicos, ameríndios e africanos é de extrema beleza e harmonia. A Umbanda é o recipiente onde convivem e se complementam os conceitos como reencarnação, chackras, Cabala Cristianismo, ervas, fumo, Orixás, guias, caboclos, crianças e pretos-velhos.
Somente em um país tão peculiar como o Brasil, onde raças e culturas tão diversas habitam e se misturam, poderia haver a formação de uma religião assim, adequada à diversidade do solo onde nasceu.
O denominador comum entre estas culturas era a tradição oral. Joseph Ki-Zerbo fala dos conflitos entre os historiadores, e de toda a polêmica acerca da autenticidade e da fidelidade da tradição oral. Afirma, porém, que a “maioria dos historiadores da África admite a validade da tradição. Mas, muitos ainda a consideram uma fonte menos consistente que a escrita.” E ainda cita inúmeros autores, entre eles H. Deschamps, J. Vansina, D.F. McCall e Person que consideram a tradição oral uma fonte tão respeitável como a Escrita, embora em geral, menos precisa (KI-ZERBO, 1972, p. 19-20).
Formação do Povo Brasileiro
O povo brasileiro formou-se da miscigenação de três povos, o vermelho, o branco e o negro.
Raiz Ameríndia
            O Planalto Central tem sido apontado como a região mais antiga do globo terrestre, segundo Lund, Hartt, Ameghino, Hardick, entre outros. Estes pesquisadores desafiaram com suas conclusões a hipótese européia vigente de que o continente africano seria a origem da vida humana na Terra (ITAOMAN, 1990, pág. 24). Como admitir que esteja errada? Como admitir que índios seriam os ancestrais da Humanidade se até bem pouco tempo eram considerados seres sem alma, selvagens e imorais?
             Pior ainda é recorrer ao Popol Vuh, quando ele diz: “de barro fizeram a carne dos Homens” (GORDON, B; MEDEIROS, S, 1997, pág. 58). Como admitir que a primeira raça fosse vermelha e não negra? Se já era humilhante admitir que não fosse branca a primeira raça, imagine admitir a indígena.
            Exemplos de respeito à Natureza, foram dizimados por uma Civilização dita culta, mas que se caracterizou como parasita e decadente, que espalhou terror e morte nas linhas da história deste continente. Predadores destruíram e dilapidaram os tesouros naturais de seu continente, e quando tudo já parecia pequeno demais para a ambição desmedida, resolveram invadir o que lhes parecia de direito.
              A equipe da Profª Maria Beltrão (Unicamp) registrou inúmeras grutas em uma região denominada Tocas, em Xique-Xique/Ba. Nelas, instrumentos neolíticos comprovaram a datação do homem ameríndio. Os indícios da raça ameríndia datam em aproximadamente 300.000 anos. Desenhos rupestres associam o Homem a animais pré-históricos como o Toxodonte (Toxodon platensis) que viveu do plioceno ao plistoceno. Mas, impressionante é a toca do Cosmos, onde o teto mostra pinturas com desenhos que sugerem o céu e, principalmente, um cometa. Todos estes desenhos geométricos sugerem conhecimentos astronômicos. E devido à característica desta gruta, é possível que tenha sido utilizada como um observatório astronômico. (ITAOMAN, 1990, pág. 25)
            No Brasil, existem hoje diversos troncos indígenas e cada tronco, com suas ramificações e inúmeras línguas, dialetos próprios. O tronco Tupi é o mais conhecido e maior de todos. Dele surgiram as famílias: Guarani, Arikém, Aweti, Juruna, Mawé, Mondé, Purobora, Munduruku, Ramarama, Tupari. O Tronco Macro-Jê originou: Jê, Bororó, Gnató, Karayó, Krenak, Maxakali, Ofayé, Rikbakbá, Yatê. Outras famílias importantes também se destacaram pela riqueza de seus dialetos: Tukanos, Pano, Karib, Mura, Katukira, Yanomami, Maku, Gwaikuru, Nambikwara, Txapakura, Aruak, Arawá. (PINTO, 2000)
            Quantas tribos teriam sido encontradas quando os portugueses aqui chegaram? Quais as características desses povos que eram os verdadeiros americanos?
            O conflito básico entre os europeus e os ameríndios ocorreu devido ao fato de não possuírem Lei, Rei e Fé (MAGALHÃES, 2004, pág. 133-34). As diferenças entre as culturas foram de tal modo insuportáveis que uma subjugou a outra, chegando quase ao total extermínio dos ameríndios. A pólvora, as doenças, a desmoralização ética e religiosa, foram armas eficazes e letais para um povo não acostumado aos ardis da civilização européia. De donos da terra, conceito que eles também não conheciam, pois a terra era de todos, transformaram-se em poucos anos em escravos, caracterizados como selvagens, brutais, imorais, ignorantes e até antropófagos. (RIVAS, M. E., 2008)
            Os ameríndios não tinham um Estado constituído. Tinham como primazia o respeito e igualdade de Direitos e Deveres. Desprezavam a moeda e não faziam comércio. Não reconheciam a autoridade centralizada em um indivíduo, pois viviam em regime de seres comuns e livres. Cada um era responsável por suas atitudes diante da comunidade. Eram também detentores de uma Teogonia e Cosmogonia ímpares, onde o sagrado era a natureza, sem necessidade de Templos fixos, ou ídolos. Não admitiam dogmas e moralismos (RIVAS, 2008). Pesquisadores como De Bry, Hans Staden e Pe. Simão relataram a profunda espiritualidade dos Tupis (RIVAS, M. Elise, 2008, pág. 26).
            Os pajés referiam-se a uma língua sagrada, o Abanheengá, como língua matriz de todas as outras línguas. E outra língua sagrada, mais jovem, a Nheengatú.
            Os Tupi-Guaranis tinham Tupã como Ser Supremo, mas tinham em sua teogonia a Trindade Manifestadora do Poder Divino, Guaracy, Yacy e Rudá, e um messias Yurupari e sua mãe virgem Chiucy (ITAOMAN, 1990, pág. 31).  Esta semelhança com o Cristianismo foi fatal para os Tupi-Guaranis. Ardilmente, os Jesuítas pouco a pouco foram introduzindo conceitos Cristãos, modificando nomes, alterando histórias e distorcendo a teogonia tupi, minando as tradições e disseminando a necessidade de conversão para receber a salvação (RIVAS, M. Elise, 2008).
            Os jesuítas foram fundamentais para a miscigenação do povo indígena. Facilitando a aceitação do elemento branco, os colonos passaram a gostar do tabaco, das frutas, das nativas. Os filhos gerados mestiços eram preciosos, pois eram os elos das alianças que buscavam fazer com as tribos inimigas. (RIVAS, M. Elise, 2008)
            A interação entre o Catolicismo e a cultura ameríndia foi responsável, pela origem da Pajelança (PA, AM), pelo Encantamento (Piauí) e pelo Caatimbó (demais regiões). (BASTIDE, 1960; ITAOMAN, 1990, pág. 27-31)
            Padre Manuel da Nóbrega (1549), um dos renomados nomes da Companhia de Jesus, foi o primeiro a relatar a riqueza da religiosidade indígena e, principalmente, de seus pajés. E citava detalhadamente uma cerimônia onde os feiticeiros traziam a Santidade. Na ocasião:
... ele escolhia uma maloca, pegava um maracá, e falando em voz de menino, começava a pregar. Para adquirir o espírito da santidade, todos deveriam se deixar defumar e assoprar. O pajé, bebia, fumava tabaco, baforava os aspirantes, e estes começavam a tremer e transpirar, as mulheres rolavam por terra em convulsões.( PRIORE, 2004, pág. 52)
Como fruto do sincretismo religioso, desenvolveu-se o culto indígena dos Caboclos Encantados. Ambos usavam tabaco e Jurema (bebida feita de ervas, usada em rituais religiosos, com o intuito de induzir o transe mediúnico).  A mistura destes dois cultos deu origem ao Caatimbó. (ITAOMAN, 1990, pág. 27-31)
            Roger Bastide cita que os altares do Caatimbó representavam a perda de valores iniciáticos dos índios, substituídos pela miscigenação religiosa e apresentam, estampas, santos católicos, charutos, aguardente, pequenos arcos e flechas, flautas, maracás, ervas, animais secos e outros objetos portadores do “Maná” indígena. A Princesa é um tacho que repousa sobre um rolo de fumo, cercado por um pano que nunca foi usado. Ela seria o elo com o passado indígena, pois é nela que é moída e misturada a raiz da “Jurema”, que induz agora a descida dos espíritos, para provocar o estado de Santidade. (BASTIDE, 1960)
É o Caatimbó que pela primeira vez fala de 7 Reinos: Vajucá, Tigre, Canindé, Urubá, Juremal, Josafá e Fundo do Mar.  E é nesta vertente que o negro africano dará entrada no sincretismo religioso, principalmente os de origem Bantu, pois a Pajelança e o Catimbó se assemelhavam muito com cerimônias de sua tradição. (RIVAS, M. E., 2008)
A partir do século XVIII, os cultos Yorubas ou Nagôs foram se sincretizando com os cultos indígenas e os das nações Bantu, Congo e Angola, surgindo então o Candomblé de Caboclo. Mantiveram-se ainda algumas formas antigas. Oxalá como Tupã, Yemanjá como Janaína, Ogun como Cariri, Oxosse como Sultão das Matas, Exu como Caipora, os Babás e Eguns como Caboclos Tupinambá, Tupiara, Jaú, Irerê, Pedra Negra, entre outros. (ITAOMAN, 1990, pág 30)
Então, mantiveram-se preservados os conceitos de Tupã (Deus Único), Messias (Yurupari), Culto da Cruz Sagrada (Curuçá), Trindade Manifestada (Guaracy, Yacy e Rudá), culto aos antepassados (Ráangá), e rito da Mediunidade (Guayú), uso da linguagem sagrada (Nheengatú), a Sabedoria dos Velhos Pajés (Tuyabaé-Cuaá). (ITAOMAN, 1990, pág. 30-1)

Raiz Africana
            Infelizmente, o Brasil conheceu esta portentosa raça através da Escravidão. Esta mácula ainda envergonha nosso povo e manterá acesa a chama de uma eterna dívida com esta fabulosa civilização.
            A escravidão já era um processo antigo e bem conhecido em diversos povos e civilizações, datando de pelo menos 10.000 anos o relato mais antigo (PRIORE, 2004, pág. 36-40).  A história nos remete à construção das Pirâmides do Egito, feita por escravos; À Grécia, onde a Democracia tinha o regime de escravidão.
E por quais motivos escravizavam? Nas diversas culturas, era comum vender seus parentes ou a si mesmo para saudar dívidas, fugir da fome ou aprender algum ofício, ou até mesmo servir alguma raça específica. Era comum escravizar mulheres e crianças para aumentar o número de seus servos, procriação e aumento de renda familiar, por disputa de poder ou por questões religiosas. Mas os motivos mais comuns eram de fato as guerras entre povos e tribos.
Seja entre os povos brancos ou entre os povos negros, a escravidão era um processo comum e até bem aceito.  Joseph Ki-Zerbo fala que a escravidão na África era bem tolerada:
 ... O escravo tinha direitos cívicos, e mais ainda, direitos de propriedade, e até mesmo seus próprios escravos. O pai chama o escravo pelo vocábulo nvana (filho), e a ambigüidade é tal que para designar com precisão um verdadeiro filho se emprega a expressão filho do ventre e pega nas partes genitais dele para confirmar.” Mais adiante ele cita que “o estádio patriarcal e comunitário impedia que o escravo negro fosse um bem no sentido romano e catoniano do termo. (KI-ZERBO, 1971, p. 265-66).
Portanto, mesmo sendo tão antigo o regime escravocrata, jamais atingiu o sentido mercantilista da época em que o Brasil foi colonizado. E foi isso que tornou a escravidão hedionda.
A Teóloga Maria Elise Rivas (RIVAS, M. E., 2008) cita que os europeus se interessaram pelo tráfico negreiro quando perceberam o mercado lucrativo que tinham em sua frente com a descoberta do mundo novo. Terras imensas, produtivas, sedentas de mão de obra barata, já que os indígenas estavam sendo mortos e os que resistiam não prestavam para o trabalho nas lavouras. 
Interesses africanos (guerras tribais e a islamização, que culminava com a venda dos infiéis), associados aos interesses europeus mercantilistas e ao silêncio da Igreja, foram os precursores e os estimuladores deste vil mercado.
Como um povo pode ser comercializado como animais, humilhado, agredido e submetido às mais violentas privações e maus tratos por tanto tempo sem despertar indignação e revolta nos demais povos? Será que todos lucraram com isso? Claro que não. Então, quais motivos justificariam este absurdo, que repercute na história mundial até hoje?
Segundo Rivas (2008):
 ... o negro, que entrou no Brasil, já habitava e muito o imaginário europeu, como um ser inferior, demoníaco, infernal, herege e sem alma. O fato de ser considerado como um ser sem alma impossibilitava a sua salvação. Assim, não era necessário justificar sua escravidão, tornando-se um bem para a humanidade, que estava sendo expurgada de um elemento “infecto” e “animalizado”, que poderia contaminar os homens com sua cultura satânica.  ...a discriminação iniciada na geografia (África) estendeu-se para a cor e mais tarde para a cultura. A culminância entre cor, cultura e expatriados fez do negro no Brasil, não um ser invisível como o índio, mas sim, um ser indesejado socialmente.
Tivemos na cultura grega, base do ocidente, desde Aristóteles em sua Política, a sustentação de que os negros só poderiam ser úteis por meio da eterna escravidão (SANTOS, 2002, pág. 275-89).
Revue Spirite, “o artigo publicado no Journal d´Études Psychologiques em Paris, abril de 1862, p.97, posiciona o lugar dos negros frente à cultura ocidental, como sendo um modo inferior de vida, mas não imutável, deixando claro a sua potencialidade “civilizatória”, bastando o contato com as “luzes” da civilização e da moral dos povos brancos (“qui a donné peuvres de la superioridade de as intelligence”) que tinham como missão retirar os negros da “ignorância” e “maus hábitos”.(FERRETI, 2001, p. 13-26)
Mas, apesar de tudo isso, as palavras de Frobenius nos fazem pensar:
... a religião iorubana encontrava-se num requintado estágio de evolução, podendo medir-se pela religião grega, quer pela riqueza de episódios, quer pelo número de personagens, quer pela complexidade dos rituais, que pela profundidade das instituições. (FROBENIUS, 2007, pág. 13)
Teria esse povo perdido sua cultura, suas tradições, sua dignidade? O que teriam trazido para o Brasil? Quais foram os povos que aqui chegaram? Quais contribuições foram incorporadas na cultura do povo brasileiro que se formava?
Foi Nina Rodrigues quem lançou a primeira luz sobre a questão, e, na Bahia, identificou a grossa massa da população negra como sendo de procedência “sudanesa”: “iorubas”, “jejes”, “haussás”, “minas”... sem embargo da existência lá, em menor número de negros de origem “banto”: “angolas”, “cabindas”... entraram no  Brasil, negros dos dois grandes grupos “sudaneses” e “bantos”.O primeiro grupo foi introduzido inicialmente nos mercados de escravos da Bahia, de lá se espalhando pelas plantações do recôncavo e secundariamente por outros pontos do Brasil. Desses negros sudaneses, os mais importantes foram os “iorubas”, ou “nagôs” e os “jejes” (“Ewes” ou “daomeanos”) e em segundo lugar, os “minas” (“Tshis” e “Gás”), ou os “haussás”, os “tapas”, os “bornus”e os “gruncis” ou “galinhas”...Com esses negros sudaneses entraram dois povos de origem berbere-etíope e influência maometana: os “fulas”, e “mandês”. Os “bantos” foram introduzidos em Pernambuco (estendendo-se a Alagoas), Rio de Janeiro (estendendo-se ao Estado do Rio, Minas e São Paulo) e Maranhão (estendendo-se ao litoral paraerense), focos primitivos de onde se irradiaram posteriormente para vários pontos do território brasileiro. “Bantos” foram os “angolas”, os “congos” ou “cabindas”, os “benguelas”, os negros de Moçambique (incluindo os “macuas” e “angicos” a que se referiram Spix e Martius). As demais denominações que tanta confusão originou nada mais são do que províncias ou regiões do vasto território afro-austral, “habitat” dos povos bantos.
“Sudaneses” e “bantos” entrados no Brasil aqui se fundiram uns com os outros, constituindo uma população escrava que progressivamente se foi amalgamando aos demais contingentes da população brasileira – em cruzamentos biológicos e interinfluições de ordem psico-sociológica”. (RAMOS, 1934, pág. 26-7)
            E foi em terras brasileiras que essas etnias, envolvidas há tanto tempo em guerras e disputas tribais, equiparadas agora pela escravidão, que a todos tornava iguais, encontraram o silêncio e a reflexão. Diante da necessidade de sobreviverem e preservarem sua cultura, fé e tradição, tornaram-se irmãos novamente.
            E assim como interesses financeiros os fizeram escravos, os tornaram livres. A mesma Inglaterra, que usufruiu da escravidão e dela lucrou, agora respondendo à pressão exercida por movimentos abolicionistas, a partir de 1807 aboliu o tráfico e em 1933, a escravidão, forçou o resto do mundo civilizado a fazer o mesmo. (ALBUQUERQUE; FRAGA, 2006, pág. 58)
            Todo o conhecimento destes povos foi mantido através da tradição oral. (KI-ZERBO, 1972, pág 19-20). E o que resistiu a aculturação foram as características religiosas, sincretizadas com o catolicismo, e a pajelança.
            O conceito de Deus Supremo (Olorun), eterno masculino (Obatalá), eterno feminino (Oduduá), seu conceito Dinamizador da Existência (Exu Yangi), o conceito de Forças Vitais (Iwá-Aché-Abá), o conceito de mediador entre Deus e sua obra (Orixa), o conceito de universos paralelos (Aiyé e Orum), destino individual (Odu), a veneração aos Ancestrais (Egun-Agbá), as sociedades secretas (Egungun e Geledé), e na Iniciação e seus Pais Babalawos. (ITAOMAN, 1990, pág, 39-40)
            Raça Branca
            A raça branca chegou ao Brasil representado por duas raízes, a Indo-Européia e a Heleno-Semítica (ou Judaico-Cristã).

Raiz Indo-Européia (Ariana)
            É de Fabre d’Olivet a citação de que a localização geográfica da civilização Hiperbórea (branca) é incerta, mais duvidoso ainda é tentar estabelecer a época em que começaram a ser reunir. (OLIVET, 1997, pág 42-3)
Os Vedas (Livros Sagrados dos Arianos) falam de uma raça que evoluiu na terra onde o sol fazia a volta no horizonte sem se deitar, e que seria a mãe dos Árias.  (ITAOMAN, 1994, pág. 40-2)
Moisés fala em Gibóreos (Gênesis), e diz que a origem deles data dos primórdios dos tempos. 
Deodoro da Sicilia diz que moravam próximos à Lua (latitude onde viviam).
Heródoto, Hesíodo, Plínio, Virgínio, e Cícero também mencionam este povo. Também Homero em sua Epígones os cita.
Ésquilo, em Prometeu, os situava nos Montes Rifeus.
Aristeas de Proconeso que os teria visitado, e escrito um poema sobre eles, afirmou que este povo ocuparia a região nordeste da Alta Ásia, chamada hoje de Sibéria. Outra localização possível, já que o sol brilharia 24 horas por dia, e se poria apenas uma vez ao ano, seriam os países nórdicos (Finlândia, Noruega,e Suécia).
Hecateus de Ábderas, da época de Alexandre, dizia que eles estavam entre os ursos brancos de Nova Zembla, numa ilha chamada Elixóia. (OLIVET, 1997, pág. 42-3)
            Seja como for, mudanças climáticas bruscas e violentas (desequilíbrio do planeta sobre o seu próprio eixo) modificaram a localização dos pólos, e a região Hiperbórea sofreu intenso resfriamento. O povo que lá habitava necessitou procurar novos horizontes. Chegaram assim à Ásia Central, onde foram conhecidos historicamente como Árias.
Os Vedas datam 6000 anos e relatam a rivalidade entre os clãs Vanes e Ases, daí originando o grande Cisma de Irshu, que dividiu os Árias. Os Ases ocuparam o sul e o leste da Ásia. Em guerra com os Dravidianos (melanidas), habitantes do sul, os Sindhus arianos conquistaram o território ao sul da Ásia, passando a chamar a região de Índia (Indhus).  A partir daí impuseram o Brahmanismo, baseado no sistema de castas. Os Dravidianos foram colocados na última delas, hoje conhecida como Chudras ou Párias (Intocáveis).
Nascido em 560 a.C. no Nepal, Siddhartha, que era príncipe (descendente dos Arianos, clã Sakya, casta real Kshatryas), abandonou a riqueza para buscar a Iluminação, passando a ser conhecido como Buda. Seus ensinamentos disseminaram-se por toda a Ásia, chegando à China.
O Império construído pelos Sindhus Arianos somente foi ameaçado por Alexandre, o Grande. E, posteriormente, influenciado pelos Persas, Árabes, Maometanos e Portugueses. Finalmente, conquistado pelos Ingleses. 
Ironicamente, foram os ingleses que trouxeram ao Ocidente toda a riqueza do esoterismo ariano. Merecem ser citados Helena Blavatsky, Anne Besant, David Neels, Leadbeather, por meio da Teosofia. Portanto, com profunda inspiração Brahmânica e Budista, a Teosofia viria a influenciar definitivamente o Kardecismo.
Quais as contribuições trazidas pelos Hindo-Europeus?
. Reencarnação: ciclos de nascimento-morte.
. Karma: Lei de causa e efeito.
. Prâna: energia sutil astral.
. Chakras: locais de condensação energética no corpo astral.
. Kundalini: Energia sutil telúrica.
. Tantra: sistema de atuação astral sobre o mundo físico (ITAOMAN, 1990, p. 40-2)

Raiz Judaico-Cristã ou Heleno-Semítica
            Toda a bacia do Mediterrâneo foi influenciada profundamente pela fusão de raças e conhecimentos esotéricos do Egito. Suas tradições são mais antigas que as greco-latinas. Afinal, filósofos gregos bebiam em suas fontes, localizadas em Thebah, onde seus templos Iniciáticos iluminavam todo o mundo conhecido. Entre eles estavam Sólon, Heródoto, Platão, Estrabão, Diodoro e Pitágoras.  Diodoro da Sicília relata: “Os egípcios, aproveitando-se das condições favoráveis, fizeram da Astrologia a sua ciência própria, a qual foram os primeiros a estudar. Os caldeus da Babilônia eram emigrados do Egito e, com estes, haviam aprendido Astrologia.” (OLIVET, 1997, p. 42-3)
            Toda a sua sabedoria como a matemática, geometria, medicina, alquimia, astrologia, gnose, foi preservado através dos gregos. Os gregos preservaram todo esse conhecimento em Alexandria, no delta do rio Nilo.
            Persas e depois os árabes herdaram a Biblioteca de Alexandria. Mas foram os árabes que traduziram para a sua língua todo esse conhecimento.
            Com a invasão do território europeu, fundaram seus Califados e Emirados em locais que hoje são a Espanha e Portugal. Durante todo o período em que permaneceram, transferiram a formidável cultura greco-egípcia.  A este período denominamos Renascença.
            Hebreus e Árabes pertencem ao mesmo grupo racial semita. Quando ocorreu a dominação da Europa pelos maometanos, os hebreus também os acompanharam. Dos árabes, herdaram a Alquimia, dos hebreus, a Kabbalah.
            A Espanha torna-se fonte de Iniciação. Aí brotaram os ensinamentos de Jabir Ibn Hayyan (Geber), Al Razi e Ibn Sina (Avicena) e os cabalistas Akiba e Semeon Bem Jochai. Nicolas Flamel, Paracelso e Saint Yves D’Alveydre foram exemplos de sábios que beberam nesta fonte. Daí surgiu a Magia Européia Ocidental.
            No momento em que os árabes começaram a perder poder, os sábios árabes e hebreus, detentores deste conhecimento, receberam proteção desde que se convertessem ao catolicismo, surgiu então os Cristãos Novos.
Moisés (Iniciado no Templo de Osíris e também recebeu a iniciação negra através de seu sogro Jethro) liderou seu povo, os semitas para fora do Egito. Sua doutrina religiosa está contida no Torah.  E foi entre os semitas hebreus que nasceu o Jesus (Rabi Iesu Bem Iossuf, essênio). Diante de tudo que ele ensinava e praticava, foi chamado Messias (Maschiah), o ungido de Deus. Após sua morte, foi Saulo - Paulo (judeu fariseu, de cidadania romana, e cultura helênica) que tornou o cristianismo primitivo em Catolicismo. O Cristianismo primitivo tinha como pontos fundamentais: a ascese, a reencarnação, o vegetarianismo, e a imposição de mãos e os dons do espírito (mediunidade).
E então, a partir de 1532, tanto árabes quanto hebreus, convertidos em Cristãos Novos, passaram a chegar ao Brasil, fugindo da perseguição da Santa Inquisição. Trocaram-se os nomes, mas se mantiveram com seus traços culturais, ainda que velados e secretos, restritos ao lar.
IV – Referências


ALBUQUERQUE, W. R; FRAGA, F. W. Uma História do Negro no Brasil? Brasília: Centro de Estudos Afro-Orientais/ Fundação Cultural Palmares,2006,  pag. 58.
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FERRETTI, S. F. Notas sobre o Sincretismo Religioso no Brasil- modelos, limitações, possibilidades. Revista Tempo. Niterói: UFF/Dep. De História, nº 11, Julho 2001 – Religiosidade na História, pág. 13-26.
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