Se nos
perguntarmos qual o significado do africano que insiste em permanecer no
interior de diversas práticas culturais, veremos que só há um, que é o de primitivo. Ver resquícios
africanos onde quer que seja nada mais é do que procurar identificar elementos
primitivos no interior de uma sociedade civilizada, ou moderna ou capitalista (BIRMAN,
1980: 18).
A construção dos estudos sobre o
Candomblé esteve marcada pela busca da África em seu interior. A pureza e a
impureza são lidas através de uma linguagem simbólica construída através de
relações sociais, que por sua vez, ao serem apropriadas pelo discurso escrito,
traduzem suas distinções, em reduções interpretativas. A impureza do contexto
brasileiro proporcionado pelo contato com as práticas indígenas, caboclas e
angolas, pode ser entendida como um subproduto da organização nagô - construída
como oficial - na medida em que ordenar pressupõe repelir os elementos não
apropriados; fixando-se em um domínio simbólico (DOUGLAS, 1991).
Tal problemática é entendida, como
iniciada pelos estudos de Nina Rodrigues e Artur Ramos no início do séc. XX,
através do modelo litúrgico nagô elaborado como um padrão analítico de
diferenciação entre religião e magia, associando a religião aos terreiros nagôs
africanizados e a magia aos cultos misturados de Candomblés
angolas e caboclos.
A antropóloga sergipana Beatriz
Góis Dantas (1988) informa que essa distinção foi produto, da iniciativa
intelectual de transplante fidedigno da organização religiosa africana para
compreensão dos Candomblés. Através de continuidades com a África, a
intelectual afirma que a academia foi responsável pela nagoização.
Desenvolvendo quadros associativos, a religião estaria relacionada
aos terreiros nagôs puros em contraste com a
magia/feitiçaria dos Bantos (DANTAS, 1988:125).
A africanidade eleita como
referencial na construção do modelo binário do Candomblé, é um fator
diferencial, um capital simbólico, podendo ser verificada na contemporaneidade
como recurso utilizado por Candomblés antigos para se distinguir dos de
fundação recente. Certamente Beatriz Dantas, merece ressalvas quanto ao seu
posicionamento unilateral de explicação do privilégio nagô na escrita.
Penso a nagoização como uma
experiência tangível, para além de um movimento discursivo nos estudos do
Candomblé. Os processos de identificação foram construídos no próprio devir dos
Candomblés em Salvador, com discursos próprios de distinção, sendo a África, um
elemento entre tantos, utilizado para a legitimação de um circuito de Candomblés
em detrimento dos demais.
A produção científica dos
intelectuais brasileiros e não brasileiros sobre os Candomblés em Salvador são
construções fragmentadas de memórias e experiências dos terreiros analisados. A
autoridade da escrita contribui analiticamente, como mais um aspecto para a
interpretação de como os segredos de Iyami foram abordados em seus relatos.
Estas obras exercem certa influência sobre os iniciados, que ali
descobrem, por exemplo, características míticas
de espíritos que antes desconheciam
(CAPONE, 1999: 82).
Os lugares de escrita ocupados por
Nina Rodrigues (1977, 2005), Edson Carneiro (1961), Deoscóredes dos Santos
(1962), Pierre Verger (1992) e Juana Elbein (1986) são importantes referências
para a compreensão das distintas situações do culto a Iyami,
presente nos estudos sobre o Candomblé baiano. A escrita sobre o culto de Iyami envolve
limites de conhecimentos e restrições em sua observação, a decadência por Edson
Carneiro e a emergência por Deoscóredes dos Santos, demonstra como esses
processos vividos na realidade religiosa dos Candomblés são expressos no
discurso escrito, interferidos por níveis de relacionamento antropológico e
iniciático, definidos como duas metades de um obí(semente africana
de cunho litúrgico).
Por Paul Johnson (2002), o
processo de retenção e aquisição do conhecimento é identificado como secretismo,
garantido pela sociedade mais ampla, que não tem acesso a essas
sabedorias e legitima o longo complexo da iniciação, através do
controle dos conhecimentos entre os pares. Se pensarmos essa bibliografia
selecionada, através da perspectiva de Johnson (2002), os segredos do culto de Iyami foram
revelados através de suas etnografias, pois, ao descreverem os processos
rituais e as cerimônias privadas, contribuiu para transmissões de conhecimentos
destituídos de regras/rituais internas, revelando seus conhecimentos.
O segredo é um fenômeno social
cujo valor deriva da sua circulação dentro de comunidades delimitadas, como as
hierarquias rituais do Candomblé, mas, diferentemente da epistemologia
ocidental que o reduz a enigma e a resolução, entre as comunidades de santo,
ele é concebido como awô (fundamento, segredo), manifestando a
partir de sinais diacríticos visualizados em rituais públicos ou internos, sem
perder o mistério que o circula.
Os conhecimentos descritos sobre
as versões do culto a Iyami na bibliografia selecionada, não
poderá ser compreendida como revelação dos mistérios das mães ancestrais, já
que o segredo no Candomblé, de forma particularizada, possui uma dinâmica de
linguagem composta de inúmeros mecanismos comunicacionais que inibem a sua
compreensão, requerendo conhecimento cosmológico situacional para que os
eventos sejam passíveis de interpretação (APTER, 1992).
O médico, o cientista e Iyami Ajé Chálugá
Nina Rodrigues (1862-1906) em sua
escrita demonstra ser um leitor interessado nas produções acadêmicas
desenvolvidas na Europa Ocidental, particularmente no eixo de produções
acadêmicas entre França e Inglaterra sobre grupos sociais na África Ocidental,
no início do processo colonialista. O Animismo Fetichista dos Negros
Bahianos foi publicado na Revista Brasileira no Rio de Janeiro em 1896
e traduzido para francês em 1900, considerada como uma elegante monografia por
Marcel Mauss[2] em 1902
(FERRETI, 2006:58). Os Africanos no Brasil, publicado em 1932 foi
deixado na gráfica brasileira antes de Nina Rodrigues viajar e falecer na
França em 1906.
Almejava a inserção de sua obra no
circuito internacional das pesquisas acadêmicas, que no contexto correspondia
ao período de hegemonia do evolucionismo no pensamento antropológico. A escrita
monogênica dos missionários na África Ocidental era alvo de críticas científicas.
Rodrigues acreditava menos na capacidade intencional dos missionários
conferirem erros as suas interpretações, daqueles induzidos através dos
próprios informantes africanos pela natural tendência do seu espírito
e educação (RODRIGUES,
1977:217).
Nicolau Parés (2006) informa que a
leitura de Ellis (1894) por Nina Rodrigues, foi possivelmente favorecida pela
intervenção de Martiniano do Bonfim (PARÉS, 2006: 27). Não será possível
confirmar tal relação, mas, é certo que as publicações do administrador Ellis
chegaram às mãos de Nina, inferindo em sua produção características
particulares. Nina Rodrigues influenciado diretamente pela obra de Ellis e pelo
pensamento de finais do séc. XIX mapeou as divindades yorubás cultuadas pelos
terreiros fetichistas da Bahia e atribuiu definições sociais a sua presença
nesse sagrado quadro sistemático.
A obra The yoruba-speaking
people of the slave coast of Africa (ELLIS, 1894) está repleta de preconcepções
baseadas no padrão de moral do período vitoriano na Inglaterra. Nesse período
diferentes formas de materialismos começavam a surgir no cenário acadêmico
europeu; o materialista positivista, o evolucionista, o utilitarista, o
dialético em constante diálogo com uma onda de puritanismo de caráter
religioso, delineando o comportamento social marcado por dogmatismos e
radicalismos.
O
coronel Ellis emprenha-se em mostrar que Olorum não passa de uma personificação do firmamento
com funções puramente meteóricas a quem ele nega todo e qualquer sentido, noção
ou idéia de um ser onipresente (RODRIGUES, 1977:217).
Entre muitos elogios, Rodrigues
nos indica a proposta de escrita do administrador inglês. O primeiro cientista a
invocar em favor da elevação da concepção
religiosa dos nagôs, através de
um brilhante estudo comparativo das crenças religiosas dos
povos da Costa dos Escravos (RODRIGUES, 1977: 217). O discurso relaciona-se a
uma compreensão mais ampla do panorama de
produções escritas no Golfo do Benin, distinguindo Ellis das demais escritas
missionárias, que poderiam ser caracterizadas como uma sobrevivência
da revelação divina do Paraíso
(RODRIGUES, 1977: 217).
O nosso
estudo teve de inspirar-se pura e exclusivamente na observação direta e pessoal
do fenômeno estudado. E é com satisfação que o encontramos agora quase todo
confirmado pelas observações daquele cientista. Em muitos pontos se corroboram
nesta observação independente deduções e reflexões que sempre veio acordo os
mesmos fatos nos surgiram a ele em África e a mim no Brasil. No entanto, são os
trabalhos do coronel Ellis que nos habilitam a discriminar as partes de que se
compuseram no Brasil as práticas fetichista e, ao mesmo tempo, a julgar das
modificações que aqui têm elas experimentado (Rodrigues, 1977: 216)
As cosmologias e comportamentos
tendenciaram Rodrigues a entender os princípios da originalidade africana em
detrimento das contaminações da nova realidade social do
negro no Brasil. Para tanto, baseado no modelo exposto por Elllis, o panteão
dos orixás foi reproduzido. Fruto de um estupro mítico do ventre de Yemanjá
nasceu Dadá, Xangô,
Ogum, Olokun, Oloxá, Oyá, Oxum, Otá,
Oko, Oxossi, Okê, Ajê-xalagá,
Xaponã, Orun, Oxu, de seus seios monstruosos
nasceram dois rios e uma lagoa. Nina indica problemas no mito por ser
reducionista, como também motivado pelas informações pessoais transmitidas por
africanos que contestaram ou mesmo ignoraram essa versão mítica.
Ajê Xalagá e Agê-Chálugá são
nomes para designar a mesma divindade, trata-se de diferentes ortografias
empregadas no processo de transcrição. Essa divindade foi descrita como orixá
da medicina, da saúde, riqueza e dos mercados, muito estimados pelos nagôs
(RODRIGUES, 1977: 230; RAMOS, 2001). Nina Rodrigues desconsiderou o contexto de
feitiçaria que Ellis situou essa divindade. O termo ajé (feiticeira)
não aparece nas duas obras citadas de Nina Rodrigues, sendo silenciada e
desconectada das características atribuídas a Ajé Chálugá no
interior do Gantois.
Outra divindade cultuada no Brasil
como Iyami recebe o nome deApaoká, a árvore. Ellis
teceu consideráveis informações sobre o seu poder e culto entre os yorubás.
Diferentemente da divindade masculina Iroko, a gameleira (fícus
religiosa), descrito como objeto de culto fervoroso e sob o título de
planta-deus (RODRIGUES, 2005:36), Apaoká, não é citada por Nina
Rodrigues como existente na cosmogonia no Gantois e nos outros terreiros
observados. Há um misto de segredo e poderes mágicos em sua escrita, quando o
assunto é o inanimado e o culto aos vegetais. Descreve que nos arbustos que
cercam o tronco muita gente tem visto alta noite bruxulear fraca luz que
extingue pela madrugada (RODRIGUES, 2005:37).
Para Nina Rodrigues as árvores
são antes altares ou residências
temporárias dos deuses (...) é bem possível que a árvore seja a um tempo uma e
outra coisa (2005:39), possui acepção dupla, a árvore
pode ser um fetiche animado ou representar apenas moradia ou altar. Pontua que
os conhecimentos sobre a fitolatria estavam em franco processo de
desaparecimento com a morte dos últimos africanos na Bahia, pois, não fazia
parte de seus interesses transmitirem esses conhecimentos específicos e formar
discípulos.
Os mitos e o pensamento
mágico-religioso do culto aos orixás têm na simbologia da árvore um de seus
temas recorrentes. Na cosmogonia, a árvore, surge como o princípio da conexão
entre o mundo sobrenatural e o mundo material. As árvores estão associadas à ìgbá
ìwà ñû (o princípio da criação), ou seja, em uma época em que o homem
adorava árvores. Conforme o mito de fundação a árvore ao pé da
qual o caçador[3] encontrou mel,
e em cujo redor desenvolveu-se a cidade de Ketu (LÉPINE,
1978:252).
Os estudos folclóricos surgidos na
segunda metade do século XIX estavam interessados na sobrevivência dos
elementos inadaptados e nas relíquias de culturas quase desaparecidas,
objetivando através do modelo comparativo a continuidade cultural. Para o
antropólogo Tylor o que poderia ser popularmente visto como mais indefinido e
incontrolável que os produtos da imaginação
revelados em mitos e fábulas? (TYLOR, 1871:90).
Dentro desse questionamento, Nina
Rodrigues adentra nos estudos sobre o folclore (RODRIGUES, 1977:183). Afirma o
médico e pesquisador maranhense que não é possível identificar se foram os
negros que trouxeram de suas terras respectivas, na África,
ou se aprenderam uns dos outros no Brasil (RODRIGUES, 1977:
213).
Entre alguns contos transcritos na
narrativa de Nina Rodrigues, dois se tornam pertinentes. O primeiro conto
intitulado Por que, das mulheres, umas têm os peitos grandes e outras pequenos (pessoal) (RODRIGUES, 1977: 205)
aborda a imagem das mulheres-monstros, associando a condição
feminina aos aspectos anti-sociais que compõe a sociedade mais
ampla, designando relações de poder e papéis
sociais particulares. O segundo intitulado A feiticeira que tirava os
olhos e os braços (pessoal) (RODRIGUES, 1977: 207) abarca a
antropofagia das mulheres velhas, a inexistência de aspectos sociais e a
presença de aspectos negativos e malignos na imagem das mulheres segregadas da
vida social.
Ao pensarmos a obra de Nina
Rodrigues em relação à produzida por Ellis, verificamos similaridades na
construção das identidades relacionadas ao gênero feminino, pois tanto no
contexto do sudoeste nigeriano quanto entre os grupos africanos na Bahia, a
imagem antropozoomorfica e antropofágica dessas entidades estão presentes,
mesmo que circunscritas pelo âmbito dos estudos do maravilhoso.
A feitiçaria foi identificada como
manifestação de um poder físico anti-social oriundo de pessoas situadas nas
regiões não estruturadas da sociedade. Nina Rodrigues informa que no final do
séc. XIX que o feiticeiro, o adivinho, o
sacerdote, o médico e o sábio
começaram por se confundir num mesmo
indivíduo (RODRIGUES, 2005:64),
pois, para o negro tudo pode ser enfeitiçado
(RODRIGUES, 2005:60). A feitiçaria apoiada na interpretação de Nina Rodrigues
ultrapassaria a categoria de instituição social, ampliada e integrada na forma
de se relacionar socialmente com as pessoas e os objetos em um discurso
particularizado.
A decadência e a descrição densa de Iyami Apaoká
Edson Carneiro (1912-1972) foi um
leitor e crítico da obra de Nina Rodrigues. Formado em direito, trabalhava como
jornalista e era muito ativo nas práticas etnográficas em terreiros Ketu de
Salvador. Sua produção escrita é o resultado de seu posicionamento político.
Para ele, a produção do discurso escrito tanto jornalístico
quanto etnográfico oferecia uma oportunidade
para reconstruir a opinião pública sobre o Candomblé, de
uma maneira mais favorável (CASTILLO, 2008:117). O que
tendia a confundir devido à nova realidade dos africanos no Brasil, como
pontuou Nina Rodrigues se tornou para Carneiro, alvo de distinções; o
feiticeiro não é o sacerdote.
Essa
tentativa de separação entre sacerdote e feiticeiro remete ao esforço
desenvolvido pelos intelectuais no sentido de mostrar o Candomblé como
verdadeira religião, por oposição à magia, particularmente à magia negra, pois
se reconhecia que a feitiçaria era ilegal no Brasil e também que não havia lugar para ela na atmosfera amável do
Candomblé da Bahia. (LANDES, 1967: 233).
Em meados dos anos 40 Edson
Carneiro em Candomblés da Bahia(1948) afirmava que o culto das Iyabás,
como Apó Oká, Yamaçã
Yaamalê (mãe de Xangô),
Euá e Ônilé,
estão em franco processo de
desaparecimento (CARNEIRO, 1961:80). Diferentemente na década de sessenta
Deoscóredes dos Santos emHistória de um Terreiro Nagô, verificou algo
distinto do apresentado por Carneiro duas décadas atrás. Deoscóredes dos
Santos, o Mestre Didi, descreve o culto de Apaoká como
integrante do calendário religioso do Ilê Axé Opô Afonjá, formado por ritos e
práticas particulares. Os assentamentos das Iyami permanecem junto
a grandes árvores como a jaqueira e, geralmente são enterradas, pois, a terra
representa o seu ventre (SANTOS, 1986).
Todos os
anos, após as festas de Oxun, realiza-se a segunda-feira de Rokô e Apaoká,
ainda dentro do ciclo de festas de Oxalá. Rokô é simbolizado por uma gameleira
e Apaoká uma jaqueira, ambas as árvores sagradas. É oferecida aos dois orixás
certa quantidade de obi, orobô, galos e galinhas para a matança. (...) Ao
amanhecer dessa segunda-feira, depois do último domingo das festas de Oxun,
faz-se a limpeza e o asseio nos pés das duas árvores. Depois de tudo bem limpo,
do osé feito com a mudança das águas de todas as vasilhas que ficam entre as
raízes do Apaoká e do Rokô, a pessoa encarregada de tomar conta das oferendas
recebem das mãos da Iyalorixá todos os ingredientes necessários àquela
obrigação. Encaminham-se então todos para as árvores sagradas, amarram em cada
uma delas um grande ojá branco e colocam ali por perto todos os ingredientes da
obrigação. Os festejos começam com a matança. (SANTOS, 1962:71-72)
A descrição densa do culto a Apaoká realizada
por Mestre Didi em 1962 foi legitimada por Mãe Senhora, sua mãe genética e
Iyalorixá do Opô Afonjá entre 1940 a 1967, e pelo casamento com a antropóloga
Juana Elbein, que permitiu o seu contato com a escrita acadêmica de forma mais
sistemática. Há que se destacar que Mãe Senhora, Maria Bibiana do Espírito
Santo (1890-1967) era consagrada a Oxum Miwá e possuía o título de Iya
Egbé. Título que representa o princípio e a liderança feminina na
comunidade, como também dos poderes das ancestrais femininas nas decisões
sociais, além de pertencer ao quadro sacerdotal do culto a Baba Egum, onde
Mestre Didi possui o cargo de Alapini.
Iyá mi agbá ijexá orá iyêiyê Eniti
ayabá teni bu omi ô
Iyá mi kê sóró kê mãmá só
bibá égun ayabá ô mo ô
Ebé ri odô ni kôdô
Ora iyêiyê ô!
(SANTOS, 1962:73-74)
Em uma cantiga a Oxum reproduzida
por Mestre Didi, termos e definições como Iyá mi Agbá (minha mãe
mais velha); ayabá (termo honorífico dado às divindades femininas na
região yorubá) e iyami (minha mãe) estão relacionadas a
Oxum. Cânticos e rezas direcionadas a outras divindades femininas, como
Yemanjá, Oba, Oyá, Nanã, demonstram tais associações. As aproximações do culto
as Iyabás e o culto de Iyami podem ser sustentadas, pela
condição feminina ancestral que precede o fenômeno da variação de termos e
nomes para essas divindades.
O pouso do pássaro na
escrita
Três anos após a publicação, uma
importante narrativa sobre Iyami se insere nesse cenário pelo
fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger (1902-1996) intitulada Grandeur
et decadence du culte de Ìyámi Òsòròngà
(ma mére sorcière) chez les yorouba publicada em Paris no ano de 1965[4], baseada em
histórias de tradição oral. Essa narrativa é resultante das pesquisas
realizadas em Oshogbô na Nigéria, entre os anos 1963 e 1966 como parte de sua
pesquisa de doutoramento, defendida na Sorbonne no ano de 1966 (LUHNING, 1999).
A compreensão de Iyami no
interior do Candomblé por Pierre Verger é construída através de Iyami
Oxorongá, o pássaro sanguinário que habita a copa das árvores e se alimenta
de intestinos humanos. Localizado em um ritual muito bem preservado, Iyami
Oxorongá está presente em uma cerimônia especial antes das danças
públicas, denominado padê· (VERGER, 1992; SANTOS, 1986; LAWAL, 1996; CUNHA,
1984). Nestas ocasiões, muito freqüentes, orações são feitas sucessivamente a
Exu, o mensageiro dos orixás, aos esa, os antigos africanos que instituíram os
cultos iorubas na Bahia, aos diversos orixás dos cultos em questão, e, enfim, Iyami
Osorongá é saudada com as mesmas palavras usadas na África (VERGER,
1992).
Para Juana Elbein dos Santos
(1986) a imagem do pássaro se identifica com a do peixe, pois, as penas e as
escamas são visualizadas como pedaços do corpo materno, representando o símbolo
da fecundidade e do poder da gestação de Iyami. Rego (1980)
informa que a vagina, cultuada como o órgão
sagrado, a Iya Mapô, cultuada na Bahia como uma qualidade de Iyami (REGO,
1980:270). Referente à Iya Mapô, Makinde (2004), a relaciona
com todas as divindades a partir de sua ligação com a água da vagina (liquido
amniótico), considerada como o local que abriga o segredo do poder da mulher e
por onde a criança emerge. (MAKINDE, 2004:169)
Para Monique Augras (2000) nada
pode aquecer o velho pássaro, pois, ele mesmo é fonte de calor, e assim, o medo
de ficar preso para sempre dentro do corpo materno é claramente assumido
através do órgão sexual feminino, representando o limite, uma barreira,
simbolizando a tampa da cabaça, fechando o ventre da mulher, pois, que
cilada é essa, se não a própria vagina aterradora?(AUGRAS, 2000: 18-19; LAWAL, 1996).
Como persistência de uma memória
que configura as Iyami em mães antropofágicas (REGO, 1980) é
constituída a relação entre Iyami e os órgãos sexuais. A uma
história do odu osá meji que conta como Iya Mapô,
a mãe da vagina, recorreu aos bons ofícios de Iyami Osorongá, para
colocar o sexo no devido lugar na mulher. Várias
partes do corpo tinham sido experimentadas, mas, todas se revelam
inconveniente. Foi Exu que mediante ebó, com duas bananas e
um pote, acertou o lugar definitivo. Assim, para a definição do
lugar que os órgãos sexuais irão
assumir no corpo é realizado um acordo mítico entre
o princípio feminino e masculino (REGO, 1980:19).
A antropóloga Juana Elbein dos
Santos confere a sua narrativa o discurso de dentro para fora
(1986:16), justificada pela perspectiva interna que seu discurso escrito esteve
respaldado. Para tanto, em sua tese de doutoramento defendido na França em
1970; Os nagô e a morte, hoje uma referência
nos estudos do Candomblé (castillo, 2008: 149), afirma que
o aumento do interesse por Iyami e a crescente publicação de
pesquisadores estrangeiros, propiciou a mudança do significado de Iyami de
boa mãe ao sentido mais pejorativo de bruxa (SANTOS, 1986:113),
O corpus histórico analisado
abordou unilateralmente os significados da presença e culto de Iyami nos
Candomblés baianos. A antropóloga define as abordagens de Iyami como limitadas
e associadas ao estudo da bruxaria (...) estabelecido em um dito pacto vergonhoso
entre o sacerdote e a bruxa, tendo seu símbolo total confundido com uma
representação persecutória e castradora (SANTOS, 1986: 113-114).
Informa que a dicotomia do símbolo
Iya-mí fez com que o estudo dos
ancestrais femininos fosse separado da religião Nagô, limitado e associado ao
estudo da bruxaria (ibid, 1986:114). A separação de Iyami aos Orixás
por esse pensamento é conseqüente
de um processo intencional e não terminológico,
pois, conceitos como àse, iwà,
orisà, òrun, odú, iya-mi,
podem ser analisados, mas, não traduzidos (ibid, 1986: 22).
Esse posicionamento dicotômico é
direcionado à pesquisa de Pierre Verger, gerando um contraditório artigo Pierre
Verger e os resíduos coloniais (1982), pois, muitas das críticas
inferidas a Verger deveriam ser direcionadas a sua própria escrita, já que é
baseada em categorias sistêmicas e universais, gerando uma confusão intencional
dos contextos citados. O leitor se perde entre as descrições do contexto
africano e a etnografia no Ilê Axé Opô Afonjá.
Fig. 1 - Assento de Iyami Oxorongá -
Olga de Alaketu. Aquarela de Carybé (1980: 79)
Em entrevista a pesquisadora
Teresinha Bernardo, a Iyalorixá Olga do Alaketu comenta sobre o assentamento de Apaoká.
O assentamento foi registrado por Carybé em (1980: 79) sob o nome de Oxorongá.
A doçura e o afeto estão presentes no tratamento da Iyalorixá para com as
divindades nomeadas deSanta da Barriga, diferentemente do povo de
santo que tem medo de Ia mi (...). Tanto é que a sacerdotisa tem Iapaocá
assentada em seu terreiro e (...) está relacionada com os ovários, o útero, a
gravidez, o aborto e todos os demais aspectos que constituem a singularidade
feminina (BERNADO, 2003: 131).
O terreiro do Alaketu em relação
ao Gantois e o Opô Afonjá demonstrou, certa falta de agilidade em atrair a atenção
dos produtores do discurso etnográfico resultando
em uma relativa marginalização etnográfica
(CASTILLO, 2008: 128). É interessante pensar na relativa
marginalização do terreiro e na exposição material do culto a Iyami.
Considerado tanto pela etnografia quanto pelo povo de santo como um dos mais
secretos da liturgia afro-religiosa. No entanto, o medo das Iyami pelo
povo de santo não pode ser retirado da fala positiva de Mãe Olga, pois, a
superposição de categorias é fruto do discurso escrito, já que na realidade
experienciada dos Candomblés, os orixás cultuados são constituídos como todos
completos e compartilhados de uma mesma natureza sagrada.
Considerações finais
Os segredos que envolvem o culto
de Iyami expressam a interação entre a racionalidade e a magia
desenvolvida pela postura etnográfica. O modo particular como se deu esse
imbricamento possibilita perceber que as religiões mágicas não se opõem como um
todo, às práticas racionais exigidas pelo mundo moderno. O medo e o afeto
coexistem, o respeito e o caos dialogam na postura do povo de santo para com as Iyami,
independente do nome assumido, mas, dependente da situação que lhe é
presenciada.
São muitas as formas de cultuá-las
e de percebê-las. Sua presença nos mitos de criação e nas dinâmicas sociais dos
Candomblés, a que estão presentes, confere as Iyami uma complexidade mítica que
rompe o tempo e o espaço, sendo atualizadas no cotidiano dos Candomblés através
dos sentimentos e posturas prestadas as ancestrais.
Baseada em citações retalhadas e
identificações descontextualizadas, a trajetória etnohistoriográfica do culto a Iyami em
Salvador, realizada por meio do material escrito exposto permitiu questionar as
lacunas e orientar-me com os avanços de suas escritas, que certamente ampliou o
trivial e reduziu potenciais antropológicos.
por Luciana de Castro Nunes Novaes(1)
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[1] Licenciada
e Bacharel em História (UCSAL). Mestranda em Estudos Étnicos e Africanos
(PÓS-AFRO/UFBA) . Mestranda em Arqueologia (PROARQ/UFS)
[2]
MAUSS, Marcel. Nina Rodrigues, L´animisme fetichiste des nègres de Bahia. In:
L´Année Sociologique 1900-1901. Paris, Librairie Felix Alcan, 1902.
[3] Ver
mito: Oxossi mata o pássaro das feiticeiras; Ode respeita proibição ritual e
morre. Oshosi, que também é um dos que vieram de Iemanjá, é o patrono dos
caçadores. Ele mora na floresta, e leva o jogo para os laços e armadilhas de
seus fiéis seguidores, a quem ele também protege os animais de rapina. (ELLIS,
1894:68)
[4] Mais
tarde publicado duas vezes em português, uma vez excluindo os itans (1992) e a
outra com estes (1994).
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