quinta-feira, 28 de julho de 2011

Jung e a Gnose.



"Desde o princípio de sua carreira psicanalítica até a morte, Jung manteve um vivo interesse e uma profunda simpatia pelos gnósticos. Já em 12 de agosto de 1912, Jung escreveu uma carta a Freud a respeito dos gnósticos, na qual qualificou a concepção gnóstica de Sofia de reaproveitamento de uma antiga sabedoria que poderia aparecer uma vez mais na moderna psicanálise. Não lhe faltava literatura capaz de estimular seu interesse pelos gnósticos, porque os eruditos do século XIX na Alemanha (embora quase que em nenhum outro país) devotavam-se diligentemente aos estudos gnósticos. Em parte como reação contra a rigidez da Alemanha bismarckiana e a seus efeitos conformistas, tanto teológicos como intelectuais, inúmeros eruditos excelentes (Reitzenstein, Leisengang e Carl Schmidt, entre outros), além de poetas e escritores criativos (Herman Usher,Albrecht Dieterich), e, pelo menos, alguns membros da intelectualidade francesa (M. Jacques Matter, Anatole France) investigaram a tradição gnóstica. Todos os biógrafos de Jung mencionaram seu profundo interesse por assuntos gnósticos. Uma das declarações mais reveladoras a esse respeito é citada por uma de suas ex-colaboradoras, Bárbara Hannah, que lhe reproduz as palavras sobre os gnósticos: "Senti como se finalmente tivesse um círculo de amigos que me entendessem". A mesma biógrafa também ressalta que Jung desenvolveu um interesse por Schopenhauer justamente porque o grande filósofo alemão lembrava-lhe os gnósticos e a ênfase que colocavam no aspecto do sofrimento do mundo; além disso, ele aprovava de todo o coração o fato de Schopenhauer "não falar nem da providência onisciente e todo-misericordiosa de um Criador, nem da harmonia do cosmo, mas ter afirmado abertamente que uma falha fundamental subjazia ao triste curso da história humana e à crueldade da natureza; a cegueira da Vontade criadora do mundo..." Que essas são afirmações completamente gnósticas não é preciso dizer. Como seu interesse por Schopenhauer remonta à infância, podemos considerar Jung, sob muitos aspectos, como um gnóstico "natural', possuidor de uma postura gnóstica mesmo antes de familiarizar-se com alguns dos ensinamentos do gnosticismo.

Apesar de Jung ter tido acesso a certo volume de literatura poética e erudita bem cedo na vida, o que estimulou seu interesse pelo gnosticismo, ele não contou com quase nenhum material de natureza gnóstica procedente de fontes originais à sua disposição. Como muitos outros, para informar-se sobre os gnósticos, Jung teve de se basear nos relatos fragmentados e sobretudo deslealmente distorcidos dos padres da igreja antignóstica, em particular Irineu e Hipólito. As pesadas engrenagens da erudição acadêmica apenas começavam, com extrema lentidão e mesmo relutância, a dedicar-se aos três códices coptas Codex Agnew, Codex Bruce, Codex Askew, que na época mofavam em vários museus, esperando para ser traduzidos e publicados. Pode-se considerar algo miraculoso que Jung tenha sido capaz de obter tanta compreensão e extrair tanta informação valiosa, favorável ao gnosticismo, das polêmicas dos padres caçadores de hereges da Igreja. A contribuição de Jung Aos estudos gnósticos em geral e a uma esclarecida interpretação contemporânea do gnosticismo em particular é pouco menos que notável em alcance e importância. É lamentável que essa contribuição não seja ainda apreciada por um número crescente de especialistas em gnosticismo, dentro do campo de estudos bíblicos, embora isso não seja particularmente surpreendente, em vista do fato de que a maioria desses eruditos provem de escolas de teologia e de religião com tendências ortodoxas. Além disso, muitos deles carecem por completo de qualquer apreciação séria da psicologia, especialmente do tipo de psicologia que Jung proclamou. Afirma-se que a guerra é por demais importante para ser confiada a generais; da mesma forma, seria igualmente justo dizer que o gnosticismo representa uma tradição de muito valor para ser consignada a estudiosos da Bíblia e a sofistas de palavras coptas. A falta de atenção e respeito dispensados a Jung por alguns desses eruditos é ainda mais inacreditável, considerando-se que a influência de Jung consiste praticamente na única responsável pelo projeto vital de publicação do maior acervo de escritos gnósticos originais descobertos na história: a Biblioteca de Nag Hammadi.

Os gnósticos foram prolíficos escritores da tradição sacra. Seus inimigos observaram com desaprovação que os seguidores do instrutor gnóstico Valentino costumavam escrever um novo evangelho a cada dia, e que nenhum deles era muito estimado, a menos que desse uma nova contribuição à sua literatura. Entretanto, de toda essa profusão de textos, muito pouco sobreviveu, devido à incansável supressão e destruição da literatura gnóstica a que se dedicaram os queimadores de livros e caçadores de hereges da Igreja que, com o apoio do poder constituído, obtiveram predominância sobre os seus rivais. Durante muitos séculos, não se soube da existência de nenhuma literatura gnóstica original. Foi somente nos séculos XVIII e XIX que viajantes, como o destemido e romântico escocês James Bruce, começaram a trazer para a Europa, do Egito e localidades vizinhas, fragmentos de papiros antigos contendo textos. Embora talvez escritos originariamente em grego, esses haviam sido traduzidos pelos escribas gnósticos para o copta, a língua popular do Egito helênico. Sendo realmente raros os eruditos coptas e demais pessoas interessadas em gnosticismo, a tradução desses textos procedeu-se muito lentamente. Então, um quase milagre aconteceu. Em dezembro de 1945, pouco após o término da II Guerra Mundial, um camponês egípcio encontrou uma coleção inteira de manuscritos gnósticos enquanto cavava para extrair fertilizantes na vizinhança de algumas cavernas, na caldeia montanhosa de Jabal al-Terif, próximo ao Nilo, no Alto Egito. Aparentemente, esses tesouros fizeram parte, em certa época, da biblioteca do vastocomplexo fundado na região pelo pai do monasticismo cristão, o monge copta São Pacômio.

Como seus predecessores, a descoberta de Nag Hammadi custou muito a se concretizar. Os métodos lentos dos acadêmicos foram, entretanto, bastante acelerados pela influência de um homem que não era nem erudito copta nem especialista bíblico, mas simplesmente um arqueólogo da alma humana. Esse homem era, é claro, Carl Jung. Ele se interessou pela descoberta de Nag Hammadi desde o princípio; foi um antigo amigo e colaborador de Jung, o professor Gilles Quispel, que tornou a iniciativa de traduzir e publicar os livros de Hag Hammadi. E, 10 de maio de 1952, embora a crise política e a dissenção acadêmica paralisassem todos os trabalhos relativos aos manuscritos, Quispel adquiriu um dos códices em Bruxelas, e desta porção da grande biblioteca, realizou-se a maior parte das primeiras traduções, envergonhando assim a comunidade erudita, que se viu na contingência de apressar o trabalho longamente adiado. Esse documento, intitulado Jung Codex, foi apresentado ao Instituto Jung de Zurique por ocasião do octogésimo aniversário do Dr. Jung, tornando-se o primeiro item da descoberta de Nag Hammadi a ser abertamente examinado por eruditos e leigos fora do turbulento ambiente não-cooperativo do Egito dos anos 50. O próprio professor Quispel declarou ter sido Jung, uma peça-chave no despertar da atenção sobre os manuscritos e na publicação da valiosa coleção de Nag Hammadi. Existem boas razões para se crer que, sem a influência de Jung, essa coleção também poderia ter sido relegada à obscuridade pela aparentemente sempre ativa conspiração da negligência erudita. (Para maiores detalhes sobre a história da Biblioteca de Nag Hammadi e a participação de Jung, ver: H.C. Puech, G. Quispel, W.C. Van Unnik: The Jung Codex, Londres, M.R. Mowbray, 1955). Qual era a verdadeira visão de Jung a respeito do gnosticismo? Ao contrário da maioria dos eruditos até bem recentemente, ele jamais acreditou que se tratasse de uma heresia cristão dos séculos II e III. Também nunca deu importância às infindáveis disputas de especialistas a respeito das possíveis origens do gnosticismo: indiana, iraniana, grega e outras. Antes de qualquer outra autoridade no campo dos estudos sobre os gnósticos, Jung reconheceu-se por aquilo que eram: videntes que produziram criações originais e primordiais, a partir do mistério que ele chamou de inconsciente. Quando, em 1940, perguntaram-lhe se o gnosticismo era filosofia ou mitologia, ele respondeu com seriedade que os gnósticos lidavam com imagens reais e originais e não eram filósofos sincretistas, como muitos supunham. Jung reconheceu que imagens surgem ainda hoje nas experiências interiores das pessoas, ligadas à individualização da psique: nisso ele via evidência do fato de que os gnósticos expressavam imagens arquetípicas reais que, como se sabe, persistem e existem independentemente do tempo ou de circunstâncias históricas. Ele identificou no gnosticismo uma poderosa e absolutamente primordial e original expressão da mente humana, uma expressão dirigida para a mais profunda e importante tarefa da alma, ou seja, a obtenção de sua plenitude. Os gnósticos, como Jung os percebia, interessavam-se acima de tudo por uma coisa - a experiência da plenitude do Ser. Considerando que isso incorporava seu interesse pessoal e também o objetivo de sua psicologia, é incontestável que sua afinidade com os gnósticos e com sua sabedoria era realmente grande. Essa visão do gnosticismo não se confinou aos trabalhos psicológicos de Jung, mas logo entrou no mundo dos estudos gnósiticos por intermédio do supracitado colaborador, Gilles Quispel, que, em seu importante trabalho Gnosis als Weltreligion (1951), apresentou a tese de que o gnosticismo não expressa nem uma filosofia nem uma heresia, mas uma experiência religiosa específica, que então se manifesta como mito e (ou) ritual. É de fato lamentável que, após mais de vinte e cinco anos da publicação desse trabalho, tão poucos tenham apreciado suas significativas implicações.

Em vista dessas considerações, pode-se compreensivelmente indagar: Jung era um gnóstico? Pessoas mal informadas responderam sim a essa pergunta, querendo dizer com isso que Jung não era nem um cientista respeitável nem um bom homem, de acordo com o significado religioso ortodoxo do termo. Em virtude do uso pejorativo da expressão gnóstico, muitos dos seguidores de Jung, e ocasionalmente o próprio Jung, negaram que ele fosse um gnóstico. Um exemplo bem típico dessas evasivas foi a declaração de Gilles Quispel, segundo a qual "Jung não era um gnóstico no sentido comum do termo". Por outro lado, é muito duvidoso que jamais tenha havido um único gnóstico no sentido comum do termo. O gnosticismo não constitui um conjunto de doutrinas, mas a expressão mitológica de uma experiência interior. Em termos de psicologia junguiana, poderíamos dizer que os gnósticos deram expressão em linguagem poética e mitológica às suas experiências dentro do processo de individualização. Ao faze-lo, eles produziram uma profusão do mais significativo material, contendo profundas percepções da estrutura da psique, do conteúdo do inconsciente coletivo e da dinâmica do processo de individualização. Como o próprio Jung, os gnósticos não descreveram apenas os aspectos conscientes e pessoais inconscientes da psique humana, mas exploraram empiricamente o inconsciente coletivo e forneceram descrições formulações das várias imagens e forças arquetípicas. Como afirmou Jung, os gnósticos foram muito mais bem sucedidos do que os cristãos ortodoxos na descoberta de expressões simbólicas adequadas do Ser, e essas expressões assemelham-se às formuladas por Jung. Embora Jung não tenha se identificado abertamente com o gnosticismo como escola religiosa , da mesma forma que não se identificou com nenhuma seita religiosa, pouca dúvida pode existir de que ele fez, mais do que qualquer outra pessoa, lançar luz sobre o impulso central das imagens e da prática simbólica gnósticas. Ele viu no gnosticismo uma expressão particularmente valiosa da luta universal do homem para readquirir a plenitude. Embora não fosse prático nem modesto que ele o dissesse, não há dúvida de que essa expressão gnóstica do anseio pela plenitude só foi reproduzida uma vez na história do Ocidente, e isso se deu no próprio sistema da psicologia analítica de Jung.

Que tipo de gnóstico era Jung? Certamente, não um seguidor literal de nenhum dos antigos mestres da Gnose, o que teria sido um empreendimento impossível, diante da insuficiência de informações detalhadas a respeito desses e de seus ensinamentos. Por outro lado, como os gnósticos do passado, ele formulou pelo menos os rudimentos de um sistema de transformações ou individualização, que se baseava não na fé numa fonte exterior (seja Jesus ou Valentino), mas na experiência interior, natural da alma que sempre representou a fonte de toda verdadeira Gnose.

A definição léxica de gnóstico é conhecedor, e não seguidor de alguém que pode ser um conhecedor. Jung sem dúvida era um conhecedor, se é que já houve algum. Negar que ele era um gnóstico nesse sentido equivaleria à negação de todos os dados reconhecidos sobre sua vida e seu trabalho. A mais provável indicação do caráter especificamente da linha seguida por Jung, no entanto, não é outra senão o tratado intitulado Sete Sermões aos Mortos, o qual, segundo admitem proeminentes Junguianos, constitui a fonte e a origem de seu trabalho posterior. Quem, a não ser um gnóstico, escreveria ou poderia escrever uma obra como esses sermões? Quem optaria por revestir suas revelações arquetípicas pessoais, que formam o esqueleto do trabalho de sua vida a terminologia e o estilo mitológico da Gnose Alexandrina? Quem preferiria eleger Basílides, em vez de qualquer outro vulto, como autor dos Sermões? Quem usaria com versada compreensão e finesse, termos como Pleroma e Abraxas para simbolizar estados psicológicos altamente abstratos? Há apenas uma resposta para essas perguntas: somente um gnóstico faria essas coisas. Como Carl Jung realizou tudo isso e muito mais, podemos portanto considera-lo gnóstico, tanto no sentido geral de um verdadeiro conhecedor das mais profundas realidades do ser psíquico como no sentido mais estrito de moderno restaurador do gnosticismo dos primeiros séculos da era cristã.

Jung e a Gnose Pansófica

De acordo com Morton Smith, notável descobridor do Evangelho Secreto de Marco, o termo gnostikoi em geral se aplicava a pessoas de tendência pitagórica e ou platônica, embora naturalmente a expressão Gnose apareça nos escritos de muitos autores ligados a outras escolas, incluindo Padres da igreja ortodoxa cristã, como Orígenes e Clemente de Alexandria. A Biblioteca Gnóstica de Nag Hammadi continha cópias da República de Platão e também de certos tratados herméticos que os eruditos puristas da vindima contemporânea jamais sonhariam incluir na literatura gnóstica. Tudo isso fornece indícios para convicção de que, já em tempos primitivos, quando as escolas gnósticas ainda estavam vivas fisicamente, o gnosticismo caracterizava-se por um considerável ecumenismo e flexibilidade. Os membros da suposta comunidade gnóstica do Alto Egito provavelmente teriam definido a literatura gnóstica como qualquer escritura de valor espiritual, capaz de produzir Gnose no leitor. Acadêmicos versados em gnosticismo podem aspirar ao status de puristas, mas os próprios gnósticos nunca o foram, nem poderiam ser. Assim, nos séculos posteriores, após a destruição das comunidades gnósticas primitivas e de suas escrituras, o espírito gnóstico continuou a viver sob muitos nomes e disfarces, servindo ainda a seus propósitos originais e imorredouros. Enquanto existir uma luz na individualidade mais recôndita da natureza humana, enquanto existirem homens e mulheres que se sintam semelhantes a essa luz, sempre haverá gósticos no mundo. Podemos considerar sua contínua existência resultante em grande medida da sobrevivência dos arquétipos gnósticos no inconsciente coletivo e da própria natureza dos processos de crescimento e desenvolvimento da psique em si. Jung, indubitavelmente sabia disso quando se referiu ao processo de confronto com a sombra (o reconhecimento da parte inaceitável ou má de nós mesmos) como um "processo gnóstico". Os padres da Igreja cunharam a frase anima naturaliter christiana (a alma que é cristã por natureza); entretanto os gnósticos, com muito maior legitimidade, poderiam ter dito que o conteúdo da alma e sua senda de crescimento são por natureza gnósticos. O inegável caráter arquetípico do gnosticismo não constitui a única causa de sua sobrevivência. Além do caráter gnóstico do inconsciente, que tende espontaneamente a produzir sistemas gnósticos de realidade, existe também um desenvolvimento histórico e uma continuidade ligando os antigos adeptos do gnosticismo a seus herdeiros de períodos históricos posteriores.

Movimentos subterrâneos raras vezes se prestam como objetos para o historiador. Compelidos ao segredo pelo ambiente hostil, sua principal preocupação é a sobrevivência, e portanto eles deixam relativamente poucos vestígios perceptíveis no solo do tempo. Grande parte, embora não a totalidade, da história gnóstica posterior aos séculos III e IV constitui-se de especulação e intuição em lugar de fatos. Contudo, nessa tênue estrutura de segredos e subterfúgios, de evasões e ocasionais declarações ousadas, certos dados significativos se sobressaem com singular força e brilho. Como um desses dados encontra-se a vida e o trabalho do esplêndido profeta Mani (215-277 d.C.), cuja estrela se elevou justamente quando a dos gnósticos declinava. Mani foi um gnóstico, tanto pela natureza de seu caráter como em virtude da tradição. Aos doze anos de idade, recebeu a visita de um anjo que lhe anunciou haver sido escolhido para grandes tarefas. Aos vinte e quatro anos o anjo voltou à sua presença e exortou-o a aparecer em público e proclamar a sua doutrina. O termo persa que designa esse anjo significa gêmeo; tratava-se do irmão gêmeo espiritual ou Eu Superior ( o Ser) de Mani. O tratado gnóstico conhecido como Pistis Sophia relata um incidente semelhante na vida de Jesus, que em sua juventude foi visitado por um anjo que parecia irmão gêmeo e a quem Jesus uniu-se quando se abraçaram. Esses mitos expressam o encontro junguiano ente o ego e o Self (Ser), com a conseqüente união dos opostos. Descobertas recentes parecem indicar, no entanto, que o pai de Mani, Patiq, viajou à Síria e à Palestina e lá juntou-se a um grupo judeu ou mandeano de caráter gnóstico. Portanto, com toda a probabilidade, Mani recebeu instrução gnóstica de seu pai ou dos mestres de seu pai.

Mani foi cruelmente executado por um traiçoeiro monarca instigado pelo clero zoroastriano, mas sua religião continuou a florescer em muitos lugares por vários séculos, tornando-se a principal fonte de transmissão da tradição gnóstica. Ainda em s813, a ordem maniqueísta do Lótus Branco e da Nuvem Negra continuava politicamente ativa na China, e parece haver indicações da existência de remanescentes maniqueístas no Vietnã em 1911. Ao contrário dos primeiros mestres gnósticos, Mani era um hábil organizador, e os missionários de sua igreja foram infatigáveis viajantes e pregadores. Na Europa, por duas vezes, a Gnose maniqueísta ergueu a cabeça com poderosa audácia: uma das regiões balcânicas da Bulgária e da Bósnia, onde seus seguidores eram conhecidos como bogomilos, e outra no sul da França, região em que seus adeptos ficaram conhecidos como cátaros ou albigenses. Embora sempre imersa em sangue, sua influência penetrou o campo religioso e cultural de muitos países, ajudando a reforçar a corrente oculta das tradições gnósticas, que continuariam a sobreviver em segredo.

Enquanto os herdeiros espirituais de Mani expunham seus ensinamentos gnósticos abertamente, a despeito de esmagadoras desvantagens, várias tradições estritamente secretas continuaram a existir, em especial na Europa e no Oriente Médio. Foi com uma dessas tradições ocultas da Gnose que Carl Jung estabeleceu um vínculo muito significativo. A tradição a que nos referimos é a Alquimia. Em discurso durante a apresentação do célebre Jung Codex, da coleção de Nag Hammadi, ao Instituto C. G. Jung, Jung destacou dois representantes principais da tradição gnóstica: a Cabala judaica e o que ele chamou de "Alquimia Filosófica". Jung estava familiarizado com a Cabala e era leitor assíduo de uma de suas maiores obras, a tradução latina do Zohar realizada por Knorr von Rosenroth e conhecida como Kabbalah Denudata. A pricipal modalidade da Gnose que muito atraiu Jung, no entanto, não foi a Cabala, mas a Alquimia. Ele teceu extensos comentários em muitos volumes de seus melhores escritos sobre seu intricado simbolismo e suas notáveis metáforas transformadoras.

Muitos têm curiosidade de saber por que Jung teria escolhido a obscura e amplamente ridicularizada disciplina oculta da Alquimia como um dos assuntos favoritos de sua pesquisa. A resposta para o dilema, embora tenha sido dada de forma clara pelo próprio Jung, não conseguiu provocar a devida reação. Durante cerca de doze anos, desde a I Guerra Mundial até 1926, Jung devotou-se com grande zelo ao estudo da literatura sobre o gnosticismo disponível na época. A despeito do caráter fragmentário e distorcido desse material literário, ele se informou bem sobre o assunto e imbuiu-se completamente de seu espírito, como o comprova o conteúdo dos Sete Sermões aos Mortos. O que Jung não conseguiu encontrar, no início, foi algum tipo de ponte ou elo que pudesse relacionar os antigos gnósticos com os dos períodos mais recentes, incluindo os contemporâneos. Necessitava-se de algum vaso sagrado, como o Graal, onde o precioso elixir, uma vez utilizado por mestres como Valentino e Basílides, fosse preservado e no qual fosse transportado ao longo dos séculos para atrair os possíveis Parsifais gnósticos de nossa era. A intuição indicou a Jung que devia existir essa ponte, um elo de ligação na cadeia da sabedoria, mas ele não conseguia perceber racionalmente onde procura-lo. Então, como sempre, foi auxiliado por um sonho. Esse transportou-o ao século XVII, quando a Alquimia ainda prosperava na Europa. Um reconhecimento despertou nele. Aqui está, pensou, o elo que faltava na estirpe da gnose! Assim, começou sua grande pesquisa, a qual levou-o finalmente a proclamar que a alquimia, de fato, representava e elo histórico com o gnosticismo e que, portanto, existia uma continuidade definitiva entre o passado e o presente. Jung declarou que, fundamentada na filosofia natural da Idade Média, a Alquimia formava, de um lado, a ponte em relação ao passado, com o gnosticismo, e, do outro, ao futuro, com a moderna psicologia profunda. Assim surgiu um dos marcos significativos da pesquisa histórica esotérica. Descobriu-se que a Alquimia constituía justamente a ponte através da qual a Gnose do passado atravessou a tempo adentrando o mundo moderno como a psicologia Junguiana do inconsciente. As implicações relativas às conexões do pensamento de Jung com o gonosticismo, apesar de raras vezes mencionadas no passado, são entretanto evidentes para todos. Pode-se resumi-las da seguinte maneira: Jung poderia ser visto como um gnóstico moderno que absorveu a Gnose, tanto por meio de sua transformação interior como por seus estudos que confirmam a literatura gnóstica. Ele sabia que expunha em sua psicologia uma disciplina essencialmente gnóstica de transformação, sob a aparência contemporânea. Jung precisava descobrir uma ligação histórica entre seus próprios esforços e aqueles dos mestres gnósticos da antiguidade. Também precisava de uma exposição do método gnóstico de transformação que não fosse fragmentária mas contivesse um vocabulário adequado de símbolos psicologicamente válidos para serem utilizados no contexto do estudo da mente humana hoje. Na Alquimia, encontrou exatamente o que procurava. Assim, a resposta a seus sonhos veio anunciada por um sonho.
Na Alquimia, Jung contatou um dos mais importantes ramos do que se tem por vezes chamado de Tradição Pansófica ou a herança de sabedoria originária de fontes gnósticas, herméticas e neoplatônicas, através de numerosas manifestações posteriores até a época contemporânea. Como Jung reconheceu, essa tradição pansófica ou teosófica, assumiu muitas formas no decorrer dos tempos, mas foi também particularmente expressa no fim do século XIX e início do XX dentro do movimento da Teosofia, enunciado pela aristocrata e cosmopolita russa, madame H.P. Blavastsky. Em obras como The Undiscovered Self e Civilization in Transition, Jung identificou claramente a moderna Teosofia como uma importante manifestação contemporânea do gonosticismo, comparando-a a uma cadeia de montanhas submarina que se estende sob as ondas das principais correntes de Cultura, com apenas os picos tornando-se visíveis de vez em quando, através da atenção recebida por Madame Blavastsky, Annie Besant, Krishnamurti e outros.

Como Jung várias vezes enfatizou, o cristianismo ortodoxo (deve-se incluir também o judaísmo ortodoxo) comprovadamente deixou de atender às mais profundas e essenciais necessidades da alma da humanidade ocidental. A teologia cristã era por demais racionalista, reducionista e insensível às profundas potencialidades da alma humana. Enquanto a Igreja aliava-se, uma após outra, a instituições seculares irremediavelmente não espirituais, de Constantino a Mussolini, seu espírito se atrofiou sob a influência perniciosa da lógica aristotélica e de outras estruturas de pensamento que sufocaram o anseio de transformação psíquica pessoal dos crentes. Nesse clima de aridez espiritual, que persistiu por cerca de 1700 anos, o desejo de individualização voltou-se quase sempre para a espiritualidade alternativa dos ensinamentos Pansóficos ou Teosóficos; estes, embora não exclusivamente gnósticos no sentido clássico, continham muitos ingredientes do gnosticismo.

O século XVII, para o qual Jung viu-se transportado em seu sonho alquímico, representou um dos pontos mais importantes na história do aparecimento dessa tradição alternativa da espiritualidade. Foi nessa época que o movimento que Francês Yates chamou de Iluminismo Rosacruciano induziu a Alquimia helenística a colaborar com o gnosticismo judaico da Cabala e os métodos de magia teúrgica, originários tanto do gnosticismo como do neoplatonismo.O maior luminar dessa contraparte espiritual do Renascimento literário e artístico foi um homem por quem Jung teve uma extraordinária e irresistível afinidade interior, Phillipus Aureolus Theophrastus Paracelsus Bombastus, de Hohenheim, que, como ele, era suíço, médico e um homem determinado a juntar os opostos da ciência e da espiritualidade em uma unidade operante.

Apesar de ser um exuberante e gigantesco homem da Renascença, cheio de curiosidade científica e de aspirações espirituais - sem falar das tendências emocionais e físicas de proporções igualmente heróicas - Paracelso foi sob muitos aspectos um verdadeiro gnóstico. Lutador, arrogante, intensamente independente (seu mote era "Aquele que pode ser ele próprio, não deveria ser outro"), nutriu supremo desprezo pelo mundo do poder, do dogma e dos valores estabelecidos. Viajante solitário e nômade, percorreu quase todo o mundo conhecido de seu tempo, morrendo misteriosamente e sozinho em Salzburgo, Áustria, onde até sua tumba foi encontrada vazia, anos depois. De maneira muito semelhante a Jung, ele considerava a enfermidade um fenômeno espiritual relacionado com o significado universal da vida dentro de um cosmo mágico. Seu epigrama "A Magia é uma Grande Sabedoria Oculta - A Razão é uma Grande Loucura Pública" poderia ser facilmente adaptado para caracterizar a descoberta que Jung fez sobre a significativa não racionalidade do inconsciente, repleto da sua própria magia simbólica e revelando-se nas maravilhas da sincronicidade. Bem no início de sua carreira (1929), falando na mesma casa onde Paracelso nasceu, em Einsiedeln, Suíça, Jung traçou repetidas comparações entre a filosofia do grande médico ocultista e os ensinamentos do gnosticismo. Jung reconheceu no princípio cosmogênico proposto por Paracelso, e por ele chamado de Hylaster, uma forma de demiurgo gnóstico ou divindade subordinada à divindade suprema, algumas vezes considerado o criador do mal. Ele relacionou a visão alquímica das potencialidades arquetípicas encerradas na matéria com o conceito gnóstico das centelhas de luz espalhadas pelo universo obscurecido. Com singular clareza, ele percebeu como o oculto materialismo de Paracelso e dos alquimistas não passava de uma forma nova do visível e extremo idealismo dos gnósticos. Jung constatou que o mesmo processo de transformação que os gnósticos simbolizavam como a viagem da alma através das regiões eônicas aparecia no simbolismo de Paracelso como a transformação gradual da negra prima matéria no ouro brilhante da obra alquímica. Embora pólos opostos na aparência, gnósticos e alquimistas compartilhavam uma busca comum. Eles também se opunham a um inimigo comum, o Cristianismo ortodoxo, que sempre foi incapaz de apreciar tanto as potencialidades de transformação da matéria como a santidade, de fato a divindade, naturalmente inerente e autêntica da psique humana. Em vez da apreciação de uma ou ambas dessas proposições gnósticas e alquímicas, a Igreja escolheu definhar no limbo psicológico composto pela lógica aristotélica e pela obsessão semítica com relação a leis morais e mandamentos. Paracelso e os alquimistas eram caros a Jung, por representarem para ele uma poderosa manifestação da Tradição Pansófica, proveniente do antigo gnosticismo.

Paracelso, Pico da La Mirandola, Ficino e seus companheiros podem ter iniciado a fusão Pansófica de disciplinas mágico-filosóficas de transformação. No entanto, essa síntese teosófica ou pansófica alcançou a realização máxima no século XVII, com os autores desconhecidos da Fama Fraternitatis, da Confessio Fraternitatis e de Chymical Wedding of Christian Rosen Kreuz, bem como os escritores e atividades dos ocultistas reanscentistas ingleses: John Dee, Thomas Vaughan e Robert Fludd.

A supracitada historiadora Francês Yates, prova, em seus mais convincentes trabalhos eruditos (Giordano Bruno e a Tradição Hermética, assim como The Art of Memory, The Theatre of the World e O Iluminismo Rosa-Cruz) que a arte, a ciência, a literatura e o teatro da Renascença possuem um vínculo orgânico com as realizações pansóficas, de certa forma, delas fazendo parte. Foram a magia gnóstica e hermética, a Alquimia e o misticismo heterodoxo que serviram como fonte das águas vivas, da qual as maiores luzes da cultura ocidental, de Galileu a Shakespeare, extraíram sua inspiração e alimento espiritual (o grifo é nosso).

O século XVII leva-nos assim ao XVIII, quando o martinismo, a franco-maçonaria, os iluminados e os neotemplários carregaram a tocha da tradição espiritual alternativa até a Idade da Razão. O Clube Jacobino e outras associações anticlericais e antimonarquistas, na França e em toda parte, constituíam ramificações politizadas das ordens esotéricas, em parte inclinadas a vingar os séculos de perseguições feitas aos representantes de espiritualidade heterodoxa, pelos poderes do trono e do altar. Conta-se que, ao ser conduzido ao cadafalso, o rei Luís XVI exclamou: "Esta é a vingança de Jacques de Molay"! Mas, embora tronos desmoronassem e as luzes dos altares se extinguissem, os defensores da nova aurora do espírito vieram a constatar que o triunfo da sabedoria ainda estava distante. Novos tiranos substituíram os monarcas do passado e o dogma eclesiástico cedeu lugar ao materialismo, aniquilador da alma, de uma arrogante ciência jovem.

A era das trevas começou. Religiões semimortas continuaram a combater a ciência, enquanto as chaminés encardidas da Revolução Industrial reduziam os camponeses a proletários e elevavam os mercadores e agiotas à categoria de capitalistas. Restaram apenas o artista e o poeta para reavivar a chama vacilante da tradição espiritual alternativa. William Blake, Shelley, Goethe, Holderlin e, posteriormente, W.B. Yates e Gustav Meyrink, assim como os pintores Moreau e Mucha - a exemplo dos pré-rafaelitas e de outros artistas esotéricos - consciente e por vezes desesperadamente, defendiam a tradição Pansófica. Mesmo no final da vida, Jung confidenciou a Miguel Serrano: "Ninguém compreende, só um poeta poderia começar a entender", falando, assim, pela situação de toda a corrente de transmissão esotérica nos séculos XIX e XX.

A aurora sempre irrompe no momento mais escuro da noite. Do torpor em que se encontrava a cultura do século XIX, novas figuras surgiram e, como arautos, magicamente produziram uma nova-velha luz solar. Wagner, Nietzsche, Kierkegaard e inúmeras figuras de menor importância, cada qual à sua maneira, expressaram elementos da tradição Pansófica. Como um trovador cátaro emergindo da pira da Inquisição, Richard Wagner cantou as glórias do Graal exibiu os Deuses despertos do passado pagão. Nietzche, o neopagão passional, expressou um verdadeiro desprezo gnóstico pelas estruturas pusilânimes daquilo que ele via como um cristianismo degenerado e alienado, enquanto Kierkegaard,o melancólico dinamarquês, evocou a angústia existencial e a alienação, repetindo a proeza dos primeiros gnósticos. Todas essas tentativas, porém, não conseguiram chegar ao passo decisivo, dado há muito tempo por Valentino, Basílides, Marcião e outros gnósticos, que não conseguiram nem um salto de fé nem um mergulho no desespero, mas o ingresso nas regiões eônicas da psique humana. Ali, os deuses arquetípicos aguardam o ego neófito a ser iniciado nos mistérios. A psicologia profunda tornou-se, dessa forma, a conclusão lógica de um longo processo que trouxe a tradição pansófica das costas ensolaradas do Mediterrâneo à Europa e à América, assim como da antiguidade clássica, passando pela Idade Média e séculos subseqüentes, aos tempos paradoxais das duas Guerras Mundiais, do nazismo, do fascismo e do marxismo, além dos demais surpreendentes elementos que compõem o século XX.

Religião, ciência, filosofia, arte e literatura representavam abordagens apenas parciais do grande mistério da alma; cada qual, como a faceta de uma gema lapidada, era fragmentária em seu próprio isolamento. Somente duas forças, surgidas no final do século XIX e início do XX, direcionaram-se para o fogo central do diamante multifacetado da alma e tentaram, a seu modo, entender a dinâmica do brilho de sua luz.
Essas duas forças foram o ocultismo moderno, introduzido pela Teosofia de Madame Blavatsky, e a moderna psicologia profunda, iniciada por Freud e levada a novas dimensões criativas por Jung. A primeira seguiu o antigo padrão da tradição espiritual alternativa, buscando uma abordagem particular ou quase religiosa. A segunda aspirava a tornar-se uma ciência, embora se revelasse mais uma disciplina semicientífica, meio arte e meio ciência. Só o tempo dirá se essa moderna disciplina da alma conseguirá corresponder às suas elevadas expectativas e cumprir sua promessa pendente. Na pessoa e no trabalho de C.G. Jung, a moderna psicologia profunda chegou muito perto de revelar o grande segredo; ela esteve próxima de aperfeiçoar o trabalho gnóstico-alquímico.

Será a magnum opus conduzida a novo estágio, rumo à realização? Quem serão os alquimistas, os gnósticos do futuro? 

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