segunda-feira, 18 de novembro de 2013

O Tempo e o Destino




Na mitologia grega Cronos é o deus do tempo e das estações, mas ele não era a única referência imaginária que os habitantes da Grécia utilizavam para classificar o tempo, Kairos era a outra. Significando “o momento certo” ou “oportuno”, Kairos opunha-se ao tempo cronológico, este tempo sequencial que medimos por quantidades: em dias, números e horas. Kairos corresponde ao tempo existencial, à qualidade da experiência vivida e, nesse sentido, equivale a um momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece. Por sua natureza adaptativa e circunstancial, Kairos era central para o pensamento sofista. Os sofistas acreditavam que a vida bem vivida dependia da capacidade de uma pessoa para se adaptar e tirar proveito da mudança e das circunstâncias contingentes. Essa diferenciação da vivência do tempo, entre qualitativo e quantitativo, é também utilizada na Teologia, onde Kairos é definido como o “tempo de Deus” enquanto Cronos é o “tempo dos homens”.
A diferenciação entre tempo qualitativo e quantitativo feita pelos antigos gregos já não faz parte do Imaginário humano. Não oficialmente, pelo menos! Vivemos indubitavelmente sob a égide do deus Cronos, com a vida classificada ordenadamente em períodos e estágios que se seguem numa sequência pré-definida do que deve ser, como e onde. Afinal, Cronos se adéqua bem melhor à concepção de um mundo racional, no qual o planejamento de metas, o autocontrole e a adequada administração do tempo são definidos como ferramentas essenciais para uma vida bem sucedida. Kairos, com sua natureza essencialmente emocional e sensorial, que exige a fruição com a experiência, o acompanhar da oportunidade inesperada e do momento imprevisto, vai sendo paulatinamente varrido da consciência. Do dia e hora de nascimento das crianças à programação de lazer no fim de semana, em cada momento nos esforçamos para assumir o controle do tempo, alimentando assim a esperança de que estamos no comando da própria vida.
A crença de que é possível prever, programar e planejar o tempo da vida tem suas vantagens, ela nos permite ordenar as tarefas do dia-a-dia, fazer poupança, constituir patrimônio, erigir uma carreira e muito mais. Por um lado, em qualquer circunstância na qual a realização de algo depende de um conjunto de ações encadeadas, a presença de Cronos se faz necessária e desejável. Por outro, o seu domínio pode escravizar, engessando a vida numa busca incessante por controle. A supremacia do tempo cronológico na regulação da experiência pode nos tornar temerosos a tudo que foge à ordem pré-estabelecida. Mais do que isso, ao priorizarmos Cronos em nossa consciência, corremos o risco de sufocar o potencial psicológico de kairos no inconsciente, negando à mente o espaço necessário para a fruição com o que não é planejado. Dessa forma, nossa percepção de Cronos, por não se beneficiar do contraponto adaptativo de Kairos, deixa de ser um instrumento de integração ao ciclo da vida. Esse desequilíbrio perceptivo nos leva a temer o fluxo temporal que assinala a experiência biológica e nos prepara física e emocionalmente para os diversos papeis que devemos representar no decorrer da existência. Assim, quando relegamos Kairos ao obscurantismo da inconsciência, Cronos emerge apenas como o ceifador terrível, aquele que nos rouba o tempo de viver devorando os dias e as experiências neles vividas.
O temor da passagem do tempo como símbolo da dominância psicológica de Cronos nas mentes contemporâneas – afinal, só nos submetemos àquilo que nos aterroriza – pode ser percebido em vários aspectos. A obsessão com a juventude, e as inúmeras tentativas de tentar preservá-la em procedimentos cirúrgicos e na supervalorização de estilos de vida juvenis, é apenas um deles. A crescente empolgação de um número cada vez maior de pessoas com substâncias que alteram a percepção do tempo, sejam ilícitas como a cocaína ou a maconha, sejam lícitas como o álcool ou os antidepressivos, é outro. Na tentativa de fuga do poder avassalador de Cronos, a fantasia de um tempo não ordenado, não controlável, vem sendo alimentada compulsivamente em situações de “escape” da realidade objetiva: nos roteiros de livros e filmes celebrados, onde séculos e mundos entrelaçam-se magicamente no presente como cenário para seres imortais e jovens com superpoderes; em festas como o Carnaval ou as Raves, nas quais as noites e os dias se amalgamam num fluxo contínuo; na sedução do mundo virtual, onde as horas “voam” e as distâncias não existem… É assim que, em nossa época, Kairos tenta solapar seu banimento para o inconsciente, emergindo nesses intervalos forçados nos quais buscamos ludibriar a foice de Cronos e romper com a inevitabilidade da passagem do tempo.
O kairos que emerge do inconsciente nas brechas temporais em que simulamos o distanciamento de Cronos, porém, não é suficiente para enfrentarmos o medo do avanço do tempo. Esse Kairos é apenas a pálida sombra de um momento capaz de se contrapor ao movimento irreversível do calendário, pois ele não oferece de fato a possibilidade de nos adaptarmos à oportunidade trazida pelo inesperado. Esse kairos, não reconhecido e não celebrado pela consciência, somente nutre a desconfortável sensação de que nos enredamos num tempo cuja extensão não somos realmente capazes de perceber. E, ao nos depararmos com a constatação de que já não vemos o tempo passar, sentimos que o “momento certo” mais uma vez nos escapou e que a vida nos atropela. Talvez por isso a mente contemporânea tema tanto quanto a passagem do tempo o destino. O temor ao destino, e até mesmo à ideia de sua existência, atormenta quem vive nos tempos atuais como talvez nunca antes tenha atormentado outro grupo humano. A dominância de Cronos não apenas nos rouba a confiança na capacidade de adaptação ao desconhecido e inesperado, ela também nos rouba o sentimento de que os eventos da vida, por mais inusitados que sejam, atendem a um propósito, a um sentido e a um significado que faz com que a nossa história seja a expressão do um destino individual.
A ideia de que cada ser humano possa estar submetido a um destino, a um caminho no qual nossas escolhas apenas refletem aquilo que já está reservado para nós, é assustadora para a mente contemporânea. Assim como alimentamos a fantasia de que podemos controlar o tempo – manipulá-lo, ordená-lo e prolonga-lo ao nosso bel prazer – também nos apegamos à crença de que a vida é um livro em branco no qual redigimos a nossa história unicamente a partir do que desejamos fazer com ela. Com isso, psicologicamente falando, a luta do homem contemporâneo contra o tempo e o destino torna-se reflexo do seu incômodo diante do inevitável. A idade, a perda, o fim, a mudança, a transformação e todas as coisas que nos fazem perceber nossa vulnerabilidade diante dos fluxos da existência, são vistas como inimigas as quais devemos combater. O medo do desconhecido, do que não é controlável, sempre acompanhou a humanidade e ela sempre tentou enfrentá-lo.
Do sacrifício de animais para negociar com a vontade inquestionável dos deuses à postergação da gratificação de uma vida mundana em troca da felicidade eterna. De muitas maneiras, no decorrer de sua história, os seres humanos tentaram lidar com e conter aquilo que não podem totalmente controlar ou prever. A diferença entre nós e os humanos de outras épocas é que acreditamos que com o uso da vontade e da razão podemos driblar as forças incontroláveis que desafiam o nosso desejo consciente. O tempo e o destino, duas dessas forças, são simbolicamente domados e adequados ao modelo de um mundo guiado pela racionalidade. Destituímos o tempo de seu caráter espontâneo e inesperado, que era próprio de Kairos, e privilegiamos sua face cronológica, ajustável e previsível. Despimos o destino de seu significado mítico, adornamo-lo com as cores da superstição e da ignorância, transformando-o em motivo de pilhéria e atribuindo-lhe o valor das mentes simplórias. Acreditávamos, assim, que estaríamos seguros, livres da angústia gerada pelas surpresas que podem nos pregar as circunstâncias que não antevemos ou planejamos. Ledo engano!
A biologia com sua força cíclica nos confronta a todo o momento com nossa fragilidade diante dos ditames do tempo. O nascimento, o crescimento, o envelhecimento, a vida, enfim, nos lembra do destino particular de todo ser vivo e de toda criação que dele se origina: a morte. Cronos em sua magnitude ordenada e previsível nos leva ao encontro de Kairos, ainda que contra a nossa vontade. No imprevisto do tempo, seja da duração de um relacionamento ou de uma vida, seja no surgimento de um temporal ou no aparecimento de uma doença, Kairos emerge na esteira de Cronos e altera o ritmo das horas, dias e anos que havíamos cuidadosamente planejado. Infelizmente, nem sempre sabemos tocar as notas do momento rítmico de Kairos, e perdemos muitas chances de ouvir o destino que se anuncia. Carl Jung, o psiquiatra suíço idealizador da Psicologia Analítica, acreditava que quando aceitamos o nosso destino tendemos a ver deus nele, mas quando travamos com ele um combate passamos a ver o diabo. O que ele queria dizer é que o destino de uma pessoa é tão somente a expressão da sua individualidade. Dito de outra forma, ao encontramos o sentido da nossa genuína individualidade, ao nos tornamos aquilo que somos ou podemos ser, adquirimos a sensação e o sentimento de que os eventos inesperados da vida possuem um significado, um objetivo, que pode ser vivenciado e aprendido em acordo com nossa capacidade de adaptação e de entendimento.
Sendo assim, o destino seria um desdobramento do tempo, a causa do movimento de Cronos – que traz do passado a definição dos ciclos, instaurando o que é necessário e eliminando o que já não serve mais – e cuja consequência é a oportunidade trazida por Kairos, gerada principalmente por nossa capacidade de entrar em sintonia com o que vivemos no momento presente visando o instante futuro. Na visão junguiana, portanto, quanto mais nos afastamos de nós mesmos, quanto mais nos submetemos aos ditames das regras pré-ordenadas e dos padrões pré-definidos que visam controlar a experiência, seja em função das restrições coletivas ou individuais, menos nos sentimos um indivíduo. Ao abdicarmos de nossa individualidade, entramos em combate com o nosso destino, pois, negligenciamos a função de Cronos e perdemos o contato com Kairos. Dentro dessa perspectiva psicológica, podemos dizer que ao nos tornarmos indivíduos, nos tornamos capazes de exercer o livre arbítrio. O livre arbítrio, por sua vez, seria a capacidade de fazer de bom grado o que é preciso fazer. Melhor dizendo, o livre arbítrio seria a capacidade de vivenciar o tempo em sua duplicidade complementar: aceitando e acolhendo os ciclos de vida determinados por Cronos para aprender a reconhecer e usufruir das oportunidades inesperadas e instantâneas de Kairos. Adaptar-se! A regra de ouro dos Sofistas também parece ser o verbo da individualidade e a palavra na qual se narra um destino no ritmo dos tempos. E não somente para os antigos Gregos, mas também para nós.
Angelita Corrêa Scardua é Mestre em Psicologia Social pela USP/SP, Psicóloga especializada em Felicidade e Desenvolvimento Adulto e Professora.



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