A RELIGIÃO DA DIÁSPORA: SEUS SÍMBOLOS, SEUS TEMPOS
Por: Teresinha Bernardo
Caminhando através do tempo pelo Brasil, à procura de cultos
afro-brasileiros, encontro, no final do século XVII, na Bahia, por intermédio
da poesia de Gregório de Mattos, a presença de manifestações religiosas em que
a participação do negro era visível:
Nos Calundus e Feitiços
Ventura dizem que buscam
O que sei é que em tais danças
Satanás anda metido
Continuando a andar, chego a Minas Gerais, mais precisamente no Arraial
de Paracatu, onde assisto à Dança da Tunda, culto praticado por mulheres forras
ou fugitivas, que festejavam, entre outros santos, Cosme e Damião
em setembro, dançavam ao som dos atabaques, entravam em transe.
O autor ao pesquisar na Torre do Tombo - Lisboa -, encontrou documentos
da Inquisição, que relata a história das mulheres de Paracatu, que ao serem
consideradas feiticeiras foram mortas.
Neste caminhar, ouço a preocupação da Igreja Católica em função da persistência
de práticas religiosas africanistas em meio aos negros, inclusive entre os
batizados.
Percebo ainda que, durante o século XVIII, os cultos religiosos negros
continuam a existir desorganizadamente.
É importante lembrar que neste momento o regime escravocrata encontra-se
plenamente estabelecido no solo brasileiro, mas também não deve ser esquecido,
que, durante todo o período escravocrata os quilombos existiram: onde houve
escravidão houve Quilombo.
A associação da casa de Candomblé com Quilombo não deve surpreender-nos.
Diversos autores afirmam que as seitas desempenharam papel constante nas
insurreições negras.
Assim, parece que, até o século XIX, o culto aos orixás foi realizado
nas senzalas, nos quilombos. Era subterrâneo, repleto de silêncio e não ditos,
não sendo visível para a sociedade branca.
Neste mesmo século o meu olhar se dirige aos espaços diferenciados: em
Pernambuco, Alagoas e Sergipe encontro Xangô; na Bahia e Rio de Janeiro, o
Candomblé; no Maranhão, o Tambor de Minas.
Em São Paulo, porém, durante todo o século XIX até meados do século XX,
os cultos afro-brasileiros permaneceram nas sombras.
Somente através do recurso à memória foi possível captar:
... a existência de práticas religiosas afro-brasileiras que se
criavam e se reproduziam entre os negros em São Paulo e que era denominado
feitiço. Este parece ter sido sempre praticado por mulheres: as feiticeiras.
Os produtos que faziam parte do despacho, entrega ou oferenda eram
farofas, garrafas de cachaça, panos coloridos e certos tipos de animais. Esta
prática religiosa era realizada na casa das feiticeiras que moravam em lugares
distantes, como Casa Verde e Freguesia do Ó, com poucos habitantes, na maioria negros.
Se, através do movimento da memória é possível captar apenas fragmentos,
em relação aos cultos praticados pelos negros em São Paulo, a situação torna-se
mais complexa ainda, à medida que, no espaço paulista, tanto o negro como sua
cultura pareciam sofrer ações discriminatórias mais fortes do que em outros
estados brasileiros.
A esse respeito, Michael Polak, ao analisar a memória subterrânea
própria dos grupos discriminados, afirma: Existem na memória de uns e
de outros zonas de sombras, silêncios e não-ditos.
Entre a Dança da Tunda, o Xangô, o Candomblé, o Feitiço e o Tambor de
Minas existem diferenças: umas se constituíram como expressões religiosas,
antes que outras, existindo, também, diferenciações internas tanto em termos de
seus rituais como dos seus mitos. No entanto, mais do que isto, o que importa
salientar é que as expressões religiosas afro-brasileiras se constituíram a
partir da diáspora africana.
Não pretendo, aqui, discorrer sobre as diversas expressões religiosas
afro-brasileiras, mas dirigir minhas reflexões para o Candomblé. Desta forma,
esta reflexão insere-se no movimento de ir ao passado e voltar ao presente à
procura dos significados do Candomblé na sua origem e na contemporaneidade,
especialmente na vida metropolitana.
Este movimento que tentarei realizar através do tempo torna-se
fundamental porque o Candomblé é uma religião viva. Dessa maneira, deve ser
pensado em sua dinâmica, relacionado com as práticas e representações sociais
nas quais esteve inserido no passado e encontra-se reinventado no presente.
Ao retornar ao passado africano, encontramos uma diversidade incontável
de grupos étnicos. A esse respeito, Roger Bastide se indaga:
A África enviou ao Brasil criadores e agricultores, homens da floresta e
da savana, portadores de civilizações totêmicas matrilineares e patrilineares,
pretos conhecendo vastos reinados, outros não tendo mais que uma organização
tribal, negros islamizados e outros animistas, africanos possuidores de
sistemas religiosos politeístas e outros sobretudo adoradores de ancestrais de
linhagens. Como essas diversas civilizações não se destruíram mutuamente pelo
simples contato? .a ed., 1985, p. 67.
Só é possível responder ao questionamento de Bastide por intermédio de
hipóteses, uma vez que o contato, no Brasil, entre estes diferentes grupos,
durante a escravidão, foi pouco estudado.
Por um lado, pode ser que os negros, ao saírem da África,
indiferentemente ao grupo étnico a que pertenciam, experimentaram o mesmo tipo
de sentimento por não terem a mínima possibilidade de voltar à Terra-Mãe.
A respeito da Terra-Mãe , Morin diz:
A Terra-Mãe como metáfora só virá a florescer em toda sua extensão nas
civilizações agrárias, já históricas: o trabalhador-Anteu colhe a sua força no
contacto com a terra, sua matriz e horizonte, simbolizada na grande Deusa-mãe,
Deméter cósmica onde jazem seus antepassados, onde ele se julga fixado desde
sempre. Com essa fixação ao solo virá a impor-se à magia da terra natal; a que
nos faz renascer porque é nossa mãe...
É bem conhecida a dor do banido grego ou romano, que não só não terá
ninguém que lhe continue o culto depois de morto como ficará separado para
sempre da Terra-Mãe. A ed., p. 114-115.
A África contém para os escravos no Brasil todas as características da
Terra-Mãe de que fala Morin. Era dela que o africano retirava o alimento com os
seus diferentes significados para a totalidade de sua vida: é nela que se
encontram enterrados os seus antepassados, como Deméter, a deusa grega que
representa os campos onde cresce o cereal, a fertilidade e a
fartura. A África para os negros que aqui aportaram possui os mesmos
significados. Mas a marca mais forte é o amor pela filha Core, também chamada
Perséfone.
Cada uma ama a outra o que ama em si mesma e cada uma ama na outra
aquilo que lhe falta. Perséfone ama em Deméter seu modelo; Deméter em
Perséfone, o seu recomeçar. A ed., 1987, p. 58.
Assim, a continuidade é revelada. Continuidade está tão importante para
o mundo africano, por isto mesmo há a valorização do culto aos ancestrais.
No entanto, não somente este sofrimento intenso é experimentado pelo
negro ao ser banido da Terra-Mãe. Há ainda, o encontro de um inimigo comum: o
sistema escravagista que faz com que diferentes etnias, ao entrarem em contato,
se unam, em vez de se destruírem como receava Bastide. Mais do que isto,
algumas delas constituíram aqui o Candomblé.
Assim, para esses grupos étnicos que criaram esta religião, o banimento
da África, a própria escravidão não significou uma ruptura com a Terra-mãe;
pelo contrário, representou a continuidade. Em outras palavras, esta expressão
religiosa reproduziu os principais elementos elencados por Morin, ao discutir
esta questão.
Neste aspecto, torna-se importante sublinhar a diferenciação realizada
por Jung entre Pátria e Terra: A pátria supõe limite, isto é,
localização determinada, mas o chão é solo materno em repouso e capaz de frutificar.
É no solo brasileiro que frutificara, através do Candomblé, a Terra-Mãe
para os africanos e seus descendentes.
Neste sentido, parafraseio Benjamin:
Não se entenderia a religião, nem em sua realidade nem em seu conceito,
se quiséssemos explicá-la isoladamente, a religião não é nenhum Robinson
Crusoé. A religião não constitui nenhuma comunidade separada, mas é parte do
povo que a criou. Por isto existe um diálogo mudo baseado em símbolos entre a
religião e o povo .a ed., pp. 247-249.
A história do negro na África e no Brasil explica, em parte, a
constituição do Candomblé. Deve-se, porém, penetrar além da história para
perceber o diálogo mudo entre a religião e o seu povo.
Voltando ao passado africano, encontramos os povos que habitavam a Costa
Ocidental da África onde estão localizadas, atualmente, as repúblicas da
Nigéria e Benin. Os diferentes grupos étnicos cultuavam cada um a sua
divindade, sendo o homem o responsável pelo ritual.
No Brasil, devido ao contato que existiu entre estas diferentes etnias,
o Candomblé cultua vários orixás e a sacerdotisa central é a mulher.
Esta troca do poder religioso entre os sexos está em parte referida à
escravidão que esfacelou a família negra africana e à própria Lei do
Ventre-Livre, promulgada em 1870, que considerava como família a mulher e seus
filhos. Em termos de alforria, a mulher negra foi beneficiada antes e em
maiores proporções que os homens considerados economicamente essenciais na
produção. Assim, as mulheres negras puderam participar antes que os homens do
mercado de trabalho livre, ocupando pequenas brechas que este mercado oferecia,
sendo amas, doceiras, lavadeiras. Ao homem negro as oportunidades de trabalho
apresentaram-se menores se comparadas às de suas parceiras.
Desta forma, as mulheres negras passam a ocupar um papel de destaque no
meio do seu povo, tornando-se chefes de suas famílias e chefes da
família-de-Santo também.
No entanto, se o processo histórico explica plenamente o fato de a
mulher negra chefiar a sua família, este mesmo processo não explicita a
contento o fenômeno da posição da mulher no ápice da hierarquia religiosa.
Desvenda-se, plenamente, as causas da troca do poder religioso entre os
sexos na religião afro-brasileira através de Jung e Morin; desvenda-se por que
é a mulher a sacerdotisa central nesta expressão religiosa.
Na verdade, a mulher simboliza a Terra-Mãe, portanto, representa a
continuidade; como no mito de Deméter e Perséfone, representa a continuidade da
tradição para os africanos e seus descendentes no Brasil.
A esse respeito, mais precisamente sobre a questão do sexo feminino
simbolizar a tradição, Roberto Calasso, ao analisar os mitos gregos mais
importantes, diz:
Aquelas mulheres haviam sido filhas e companheiras de cama dos heróis.
Algumas, de um deus. Todas juntas queriam beber o sangue e falar. A memória, em
estado natural, é aquela horda de mulheres.
Continuando, o mesmo autor afirma:
A época de Odisseu, a era híbrida de heróis, estava toda no
entrecruzar-se daqueles nomes, nascimentos e trabalhos. Se tivesse podido
escutar, por um tempo indefinido, uma a uma, todas aquelas vozes de mulheres,
teria sabido o que nenhum homem sabia: a história, a história de uma época que
com ele estava se extinguindo...
A Ilíada e a Odisséia narravam, no fundo poucos dias e poucos anos os
últimos espasmos da idade heróica. Enquanto aquela época só podia ser contada
na totalidade como uma sequência de história de mulheres, como o desfolhar de
um álbum de família.
No entanto, não é só para os gregos que a mulher representa a
continuidade, a memória, o álbum de família e ao homem coube simbolizar a
história heróica.
Para os africanos, no Brasil, as representações se configuram de modo
semelhante. Tanto é assim que a mulher negra, ao representar a continuidade, a
Terra-Mãe, a tradição, tornou-se a Grande Sacerdotisa do Candomblé e o homem
negro, ao representar a história heróica, tornou-se o líder dos Quilombos.
A grande Sacerdotisa do Candomblé é chamada de mãe-de-santo .
Esta denominação não é casual. Jung afirma:
É a mãe que providencia calor, proteção, alimento; é também a lareira, a
caverna protetora e a plantação em volta. A mãe é também a roça fértil e o seu
filho é o grão divino, o irmão é amigo dos homens. A mãe é a vaca leiteira e o
rebanho .
Nesse sentido, existe uma relação de profunda intensidade entre a
Terra-Mãe, a Mãe-de-Santo e o Candomblé. Esta profundidade é de tal monta que,
entre estes três termos, não há possibilidade de dissociação. Mais
precisamente, eles se interpenetram.
Desta forma, percebe-se no Candomblé a presença e a representação
feminina em todas as suas instâncias: seja nas relações sociais que constituem
os terreiros, seja nas relações entre os deuses e os homens, seja nas próprias
características destes deuses. Na verdade, através da mulher, era gerada toda a
vida da comunidade. Ela era foco propulsor de todas as relações sociais. Os
terreiros constituíam verdadeiras comunidades no limite: é a Terra-Mãe no dizer
de Morin, a roça fértil na afirmação de Jung. Portanto, não é casualmente que
os terreiros são também denominados de roça .
O princípio organizador das relações sociais, como nas demais sociedades
conhecidas, era a proibição do incesto. Os critérios que regiam esta norma eram
de dimensão religiosa. Assim, eram proibidas relações sexuais entre os adeptos
que haviam se iniciado no mesmo momento, por serem considerados irmãos. Desta
forma, constituíram-se verdadeiras famílias extensas, tão importantes no mundo
africano, elemento constitutivo da Terra-Mãe, porém, não explicitado por Morin,
que fora perdido devido à escravidão.
A iniciação faz com que um grupo de culto se torne um grupo de
parentesco: mãe, filhos, irmãos e avós. Em outras palavras, o grupo possui os
mesmos bens simbólicos. A reciprocidade, como consequência da proibição do
incesto, será o princípio norteador das relações entre os membros do Candomblé.
A relação de reciprocidade, como bem mostrou Lévi-Strauss, é decorrência
da universalidade da norma da proibição do incesto. No entanto, aqui é
importante sublinhar se a relação de reciprocidade implica três obrigações:
dar, receber, retribuir. A mulher simboliza o ser primordial desta relação: é
ela quem gesta, dá a luz e alimenta.
A comunidade-terreiro com a sua família-de-santo é constituída,
portanto, através de relações de reciprocidade, nas quais a pessoa e também os
orixás exercem a obrigação de dar, receber, retribuir. Em outras palavras, o
mesmo princípio de reciprocidade que rege as relações entre os membros do
Candomblé regula também as relações entre os deuses e os homens.
Se a comunidade-terreiro representa a Terra-Mãe, a roça fértil, a mãe, a
mulher e a continuidade da tradição africana no Brasil, é claro que nele se
processa constantemente a construção-reconstrução de uma identidade étnica.
Desta forma, pode-se afirmar que os negros, juntamente com seus deuses,
vivenciaram a escravidão. No entanto, como os deuses não perderam a sua
natureza humana, os orixás não perderam a sua natureza divina. É aqui, no
espaço sagrado por excelência dos africanos e seus descendentes, que os negros reconstroem
a sua identidade étnica e os orixás as suas identidades divinas
afro-brasileiras específicas.
Parece ser mesmo esta relação de reciprocidade entre os deuses e os
homens a responsável pela permanência dos deuses africanos, ao longo da
escravidão. Ser escravo, não significava, simplesmente, um dos aspectos de suas
vidas, mas era a sua própria condição humana. Neste sentido, não há
possibilidade: de um lado, de deuses distantes dos homens; de outro, de uma
relação de dependência, onde as divindades tudo resolvem, no qual a consciência
e a ação dos homens não têm acesso a seus mistérios.
A proximidade entre os deuses e os homens é característica da relação de
reciprocidade simbolizada no seu limite pela mulher; esta reciprocidade é
repleta de intimidade, característica fundamental também do feminino, onde a
relação da mãe, ao amamentar o seu filho, mostra o ato fundante da intimidade.
Na verdade, é a mãe que providencia de uma maneira ou de outra o
alimento.
Na relação de reciprocidade mantida entre os deuses e os homens, é
recorrente a troca de energias. O alimento, em última instância, simboliza
tanto para os orixás quanto para os homens esta força vital. Os dois têm fome.
Necessitam da comida para viver: os homens na Terra-Mãe, os orixás na cabeça
dos homens.
Se através do mito é possível penetrar na realidade psíquica do homem a
análise do mito pode ser encarada também como uma das vias de acesso para
compreender o universo sociocultural de um povo.
O fato de o alimento ser fundamental para a existência dos deuses e dos
homens está diretamente referido à mãe-mulher-terra. É neste aspecto que há o
encontro entre o mito grego de Deméter e o mito afro-brasileiro de Iemanjá: se
do grande seio da deusa grega jorra o leite-alimento por excelência que
satisfaz a fome e sacia a sede, do seio negro da orixá afro-brasileira jorra o
leite mas sobretudo a água que forma os mares e os rios, tornando a terra
fértil.
Sobre o mar, Morin diz: A água é a grande comunicadora mágica do
homem no cosmo. Continuando, o mesmo autor afirma:
o mar é a natureza primeira, a mãe cósmica análoga a mãe real, carnal,
protetora, amorosa. Ao fazer do mar unicamente o símbolo da mãe, ao suprimir a
alternativa e o vice-versa da mãe ao mar, uma determinada Psicanálise deixou
escapar uma verdade antropológica. Efetivamente esqueceu-se que a vida uterina
do feto humano traz em si, e recomeça, a experiência primeira marítima dos
seres vivos... Verdade biológica fundamental que se refracta em todos os planos
do espírito humano. Tanto o mar repercute para a mãe como a mãe repercute para
o mar... As águas comportam um além cosmomórfico que comove no mais íntimo do
homem: falam-lhe na linguagem das origens que ele talvez reconheça confusamente.
Assim a mudança de significado de Iemanjá africana deusa do rio; para
Iemanjá cubana e brasileira deusa do mar, pode representar a união entre os
povos que aportaram no Brasil, e dos que chegaram à Cuba banidos da
Terra-Mãe-África. O mar aqui significa a união entre o povo africano pois a
água representa a comunicação.
Por outro lado, o fato das águas falarem a linguagem das origens torna
possível identificar a Terra-Mãe com a Água-Mãe.
Assim as duas deusas, a branca Deméter e a negra Iemanjá, representam a
mãe: a mãe que acolhe, a mãe que protege, a mãe que alimenta: A Grande-Mãe,
arquétipo compartilhado pelo Homo Sapiens. Tem-se, assim, o princípio feminino
realizando a mediação entre os deuses e os homens através do alimento.
Ainda encontram-se semelhanças entre as divindades grega e
afro-brasileira: de um lado, nas suas relações sexuais incestuosas, as duas
copulam com seus irmãos: Deméter com Zeus e Iemanjá com Aganju; de outro, tanto
Deméter como Iemanjá tiveram filhos gestados em seus próprios ventres.
Contudo, a prole de Iemanjá, diferentemente da de Deméter, não é
constituída somente de filhos consanguíneos. Iemanjá adota Omúlu, que havia
sido abandonado por Nanã, representando, assim, o período da escravidão,
especialmente pós Ventre-Livre:
D eve-se salientar que o período a que ele se refere se
caracteriza pelas doações dos filhos de escravos realizadas pelos senhores. Em
outras palavras, dava-se a quem queria os filhos nascidos no Ventre Livre.
Assim, se a escravidão esfacelou a família africana e a Lei do Ventre
Livre aumentou em proporções alarmantes a adoção de filhos de escravos, o
Candomblé, ao representar a continuidade da tradição, recria a família-de-santo
através dos princípios da adoção e da adesão.
O Candomblé representava, dessa maneira, a possibilidade de o negro não
alienar-se do seu inconsciente, não alienar-se da sua história. O inconsciente,
para Jung, é histórico.
Se o inconsciente coletivo para Jung é histórico, é também repleto de
símbolos. Na verdade, presenciou-se, até este momento, os princípios e as
representações femininas em todas as instâncias do Candomblé: seja na
explicação de suas origens, seja nas relações entre os seus adeptos, seja
também nas relações entre os deuses e os homens, onde, através do alimento, é a
mulher quem faz a mediação entre eles.
No entanto, neste inconsciente coletivo junguiano, repleto de símbolos,
o masculino tem também lugar de destaque.
Tanto é assim que no panteão do Candomblé, através do imaginário
religioso afro-brasileiro, emerge Exú - o orixá masculino por excelência,
muitas vezes representado com um grande pênis em posição ereta. É ele que no
plano do invisível, do mágico-religioso, introduz o acaso, a sorte no destino
dos homens, acrescentando a desordem, a transgressão, a possibilidade de
mudança. É também ele quem transporta o axé. Ao realizar esta ação, torna-se o
mediador entre os deuses e os homens.
Salienta-se que o axé é a força mágica sagrada. Ter axé é ter o poder de
viver plenamente a vida. Sem axé, ninguém faz nada.
Desta forma, encontra-se no bojo do Candomblé o par de oposição: no
plano do real e do imaginário mitológico, o princípio feminino é a mãe, a
mulher, o alimento, a tradição que fará a mediação entre os deuses e os homens.
No plano do imaginário religioso, tem-se o princípio masculino
representado por Exú, que simboliza o acaso, a mudança. Ao transportar o axé, é
o mediador entre os deuses e os homens.
O par de oposição princípio feminino - masculino,
representa, em última instância, a continuidade e a mudança. São, simultaneamente,
antagônicos e complementares. O jogo entre a tradição e a ruptura é tenso e
complexo, implicando causas que, de um lado, desejam a continuidade, e, de
outro, a existência de fatores que clamam pela ruptura.
Neste caminhar através do tempo no final do século XX, encontro
concentrados em São Paulo pedaços-de-fé afro-brasileiros, que já haviam se
mostrado, especialmente, no decorrer do século XIX, em regiões diferenciadas do
Brasil. No espaço paulista, percebe-se a presença de terreiros de Xangô, Tambor
de Minas, Candomblé e Umbanda.
O fato de existirem estas expressões religiosas na cidade parece estar
referido aos processos interativos já vislumbrados por Darcy Ribeiro nos anos
60. Neste contexto metropolitano, percebe-se que o jogo entre a continuidade e
a ruptura, já existente no interior do Candomblé, torna-se mais tenso ainda e
nesse movimento, ocorre a invenção. As tradições se fragmentam, as rupturas são
infindáveis. No entanto, as invenções não emergem no vazio, no sentido de serem
arbitrárias.
Assim, o Candomblé caminha na Metrópole paulista na tensão entre a
tradição e a ruptura, mas um dos seus traços mais marcantes é a arte de
inventar.
Encontramos nesta cidade alguns Candomblés de influência africanista,
outros com especificidades baianas e, ainda, terreiros que surgiram da Umbanda.
O povo-de-santo paulista reinventa através dos seus rituais a sua
religião, introduzindo elementos da modernidade no seu interior.
O tempo se transforma: o tempo reversível próprio do mito, da música, da
poesia é também o da religião que impregnava os templos do Candomblé em
Salvador. No entanto, parece que esse tempo não tem lugar na metrópole. Aqui, o
tempo se torna linear, é o tempo do relógio, o tempo da produção. O tempo passa
a ser organizado de acordo com os critérios capitalistas como produtividade e
eficiência: o tempo é cronometrado. Nas festas que celebram os orixás,
percebe-se a inversão do tempo: da noite para o dia, e para o dia do
não-trabalho.
Em oposição, surpreende perceber na festa, através da música e da dança,
a existência de um outro tempo do tempo reversível. Pela audição dos sons e
pela percepção do movimento dos corpos no espaço atesta-se a existência desta
outra temporalidade que reintegra o tempo linear da produção e da eficiência ao
tempo que não envelhece característico dos deuses.
Ao som dos atabaques, vai-se ao passado imemorial e volta-se à
atualidade do presente. Simultaneamente os corpos realizam movimentos
circulares representando o passado, que chega ao presente: é o encontro entre os
deuses e os homens. Nesta relação de reciprocidade onde a intimidade é intensa, os
deuses transmite aos homens um pouco de sua natureza divina e os homens um
pouco de sua humanidade. Vislumbra-se o transe. Para participar deste fato
inusitado, os orixás vêm do passado, e tudo aquilo que eles foram não
desapareceu, existe, ainda agora, continua vivo. O tempo antológico dos deuses
convive tensamente com o tempo linear da modernidade.
Se o Candomblé foi fundado por mulheres no limite porque representava a Terra-Mãe,
hoje as comunidades-terreiros na Metrópole são chefiadas tanto por mulheres
quanto por homens.
Salienta-se, contudo, que a existência do pai-de-santo não é um fenômeno
específico desta cidade, como também não é uma particularidade do final deste
século.
Contudo, nesta cidade, a mãe-de-santo como o pai-de-santo parecem ter a
mesma visibilidade
Assim, a vida metropolitana com a fragmentação das relações que lhe é
inerente, provavelmente, influiu nesta ruptura que, por sua vez, é interna ao
próprio Candomblé, fazendo com que a mudança fosse a privilegiada no jogo
tradição ruptura.
Não obstante, deve-se assinalar que, para Jung, a função simbólica tem
referência direta com a emergência simbólica da criação contínua através da
incessante metamorfose da libido.
As famílias-de-santo também se transformam. Anteriormente, ao
representarem a família extensa africana, eram um dos elementos fundamentais da
Terra-Mãe e, por isto mesmo, um locus privilegiado para
que o processo de formação de identidade étnico-racial ocorresse. Em outras
palavras, o Candomblé era percebido como um foco de resistência da cultura
afro-brasileira. Pode-se dizer, atualmente, que no lugar da identidade étnica
emergem subjetividades como substâncias fundamentais da sociabilidade entre os
membros que constituem as famílias-de-santo.
É importante, contudo, reiterar que o fato de esta religião ter sido
constituída a partir da diáspora africana, ter sido fundada por mulheres e por
negras possibilitou a constituição de um espaço na Metrópole para que as
subjetividades possam se encontrar.
A sociabilidade desenvolvida entre os membros que constituem a
família-de-santo não é homogeneizadora, pelo contrário assegura o
desenvolvimento de subjetividades. Por isto mesmo existem entre as pessoas
zonas de transparência que colocam em contato diferenças, constelações
singulares de fluxos sociais, materiais e de signos - criando uma área de
intimidade e desejo onde um e outro se metamorfoseiam.
* Agradeço: Babalorixá Armando de Ogum que ao adotar-me como sua
filha-de-santo em São Paulo, possibilitou que eu me tornasse membro de sua
família-de-santo.
Prof. Dr. Reginaldo Prandi que, com sua generosidade de sempre, ofereceu
parte dos originais de seu livro sobre os mitos afro-brasileiros.
Este processo de transformação que ocorre no espaço da intimidade e do
fluxo do desejo no Candomblé é vivido pela circulação do axé possibilitando que
as pessoas ou grupos vivam à vida.
A circulação do axé deve ser entendida como fluxos de energia que
circulam trazendo a possibilidade de devires: negro, mulher, homossexual, e
outras subjetividades que possam vir a se constituir.
O jogo tenso entre a continuidade e a ruptura se faz presente nesta
metamorfose que leva a devires.
Se de um lado a transformação implica em rupturas, a emergência de novas
subjetividades, neste espaço, só se torna possível na continuidade do Candomblé.
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