Religião
E Migração: Os Cultos Afro Brasileiros A Viagem Do Corpo Dançante O Significado
Das Danças Sagradas No Candomblé
Por:Rosamaria Susanna Barbára
Resumo:
O paper relata a importância do
corpo e da dança no ritual do candomblé, dança que é experienciada num tempo e
num espaço particular, aquele do mito. Através do corpo dançante o fiel alcança
o transe e relata a memória e a história daquela comunidade, em quanto o corpo
simbólico é o centro da união com o divino e o espelho das energias cósmicas.
Sendo a dança uma arte, que vive em direta junção com a música, discutem-se
também a estética africana e o aspecto fundamental dela: a dinâmica do
movimento.
A VIAGEM DO
CORPO DANÇANTE
"Je danse l'autre donque jé sui"
Leopold Sendar Senghor
Esse paper é o resultado de uma pesquisa de campo
de três anos, realizada em Salvador, Bahia, finalizada ao Mestrado em
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal da Bahia e dos workshops em
Expression Primitive, efetuados em Milão em 1996-1997.
Ao longo da pesquisa de campo tornou-se evidente a
importância do corpo no caso na dança que não pode ser separada da música, no
ritual. Essa preponderância da dança e da música relatada também na mitologia
revela a sua função de criadora da ordem e da estabilidade a nível macrocósmico
e a nível microcósmico nas culturas africanas, afro brasileiras e também no
candomblé. Retomando Eliade (1969:33), cada ameaça à saúde e à vida do
indivíduo que pertence às culturas tradicionais é enfrentada com uma:
"...repetição do ato cosmogônico e não consiste tanto numa repetição dos
processos vitais, mas numa verdadeira e própria recriação dos mesmos processos
através da repetição ritual daquele acontecimento primordial, arquetípico, que
em illo tempore gerou a mesma vida. Existe um tempo mítico e primordial no qual
tudo já aconteceu, um tempo puro que se identifica com o instante da criação.
Tambia O candomblé é uma religião fundamentada
sobre a crenças em divindade chamadas orixás e sobre a procura do encontro com
o sagrado via o fenômeno da possessão. O transe no candomblé, como diz Prandi
(1991): "...pelos menos em suas primeiras etapas iniciaticas, é
experiência religiosa intensa e profunda, pessoal e intransferível. Como a dor
e as paixões não-religiosas experimentadas, não pode ser mensurado nem
descrito, a não ser metafórica e indiretamente". Durante o fenômeno do
transe o corpo da filha ou filho-de-santo torna -se
o próprio orixá superando a dicotomia corpo/espirito, forma/conteúdo. Tambiah
(1981:121) procurando superar esta dualidade forma/conteúdo, argumenta: a
integração entre relato cultural e análise formal é revelada nesta mutualidade:
se os principais rituais de uma sociedade estão fortemente associados com sua
cosmologia, então podemos legitimamente perguntar o que a sociedade busca
transmitir aos seus aderentes em suas principais performances, o que nos leva a
perguntar por que certas formas de comunicação são escolhidas e usadas em
preferência a outras, como sendo mais apropriadas e adequadas para essa
transmissão.
O corpo é assim, como diz Turner (1967:31) um
símbolo dominante tendo a propriedade dá polarização do sentido. Num polo
encontra-se um agregado de significados, que referem-se aos componentes da
ordem social e moral da sociedade, a princípio da organização social, esse
chama-se de "polo ideológico". No outro polo, o sensorial, o conteúdo
é relacionado com a forma externa do símbolo; nesse se concentram significados
que suscitam desejos e sentimentos. No contexto do ritual há uma contaminação
de sentido: as ideias e valores morais expressos no polo ideológico se veem
penetrados do conteúdo emotivo presente no polo sensorial. Os processos
naturais e fisiológicos, expressos no polo emotivo, por sua vez, são elevados
por referência aos valores. Na dança ritual, esse processo é facilmente
compreendido: os movimentos do corpo transmitem representações e valores
impregnados de emoção e não como mera cognição fria.
Outro aspecto que evidencia-se no ritual, é o
cuidado com a estética seja na preparação da festa, seja nos trajes litúrgicos,
estética padronizada em modelos fixos e transmitidos no tempo. A arte ritual
funciona como representação do invisível, sendo o seu objetivo aquilo de chamar
as forças imateriais. Como relata Huyghe (1967): "A arte é essencialmente
um meio material de atingir, de mostrar e mesmo de introduzir no mundo dos
sentidos as forças espirituais".
O candomblé por ser uma religião de raiz africana
tem a ver com a afirmação de Jahn no que diz respeito a característica
holística e simbólica da cultura africana onde cada elemento refere-se a um
outro. Assim para compreender a dança torna-se necessário conhecer o contexto,
a cosmologia, a crença religiosa, a estética e a visão de mundo da comunidade.
A dança como viagem simbólica tem duas funções: um
lado invisível, a mudança interior quando a filha ou filho-de-santo incorpora
o orixá e um lado visível onde o possuído dançando conta e testemunha a memória
da comunidade, restabelecendo o "antigo equilíbrio”.
A ESTÉTICA
AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA
A arte africana é ligada especialmente a religião,
aspecto que permaneceu também entre os afro-brasileiros, junto com a forte
união com o mundo místico. Assim não existe o conceito da " art
pour l'art" (claramente existe um valor estético), mas
qualquer tipo de arte é algo de instrumental para os poetas ou músicos ou
dançarinos-sacerdotes, sendo todo o processo de criação inspirado a realização
da comunicação com o mundo sobrenatural e a criação daquilo que estão
representando. A sacerdotisa-dançarina, por exemplo no transe de Oxum ao dançar
cria a fonte d'água doce, cria a onda da agua, transmitindo a imagem, a
vibração da natureza.
Estudiosos da arte africana, como a historiadora e
dançarina Keriamu Welsh Asante (1985:72) e Thompson (1974:30) reconhecem na
dinâmica do movimento o aspecto mais importante e profundo da estética dessas
culturas, seja na dança, seja na arte visível e gráfica. Na arte plástica,
observar-se figuras de homens ou de mulheres no ato de dobrar-se de joelhos,
talvez para sentar-se ou levantar-se, mas sempre em perfeito equilíbrio.
A centralidade da dinâmica na cultura africana
contrasta com a ênfase na postura fixa, característica da cultura ocidental, de
facto a dinâmica do movimento faz parte do conceito de beleza africana, que é
de grande complexidade, tendo que expressar vários aspectos simbólicos.
Segundo ela são sete as dimensões estéticas
subjacentes à arte e sobretudo à dança e a música: a polirritmia, o
policentrismo, a curvilinearidade, a dimensionalidade, a memória épica, a
repetição e o holismo que expressam o universo místico total, seja o lado
visível, o cotidiano, seja o invisível, o universo dos espíritos.
As danças africanas, como qualquer outro aspecto
das culturas e das civilizações africanas, não podem ser consideradas em si,
mas como elemento de uma unidade. É importante sublinhar esse aspecto holístico
da cultura, porque ele está em nítido contraste com a cultura ocidental. Uma
dança realizada para uma simples diversão, pode também remeter a outra coisa,
numa corrente simbólica infinita. Portanto os movimentos, a parte do corpo
utilizada, as roupas vestidas, a música possuem um sentido próprio, mas,
juntos, simbolizam algo outro.
A característica mais impregnante na dança africana
é a da polirritmia. Movimento e ritmo não podem ser separado. O ritmo tem um
padrão fixo, na polirritmia tem a junção de vários ritmos. Cada parte do corpo
movimenta-se seguindo um ritmo e uma forma diferente de movimento. Por isso o
corpo pode ser comparado a uma orquestra, que, tocando vários instrumentos, harmoniza-os
numa única sinfonia.
O policentrismo indica que o movimento não é a sua
deslocação no espaço, mas a ocupação de uma estrutura-tempo. Como explica
Waterman: " O africano apreende a ser consciente de cada instrumento
empregado na orquestra e isso tem uma grande influência sobre a dança. Cada
músculo do corpo atua seguindo os diferentes ritmos da música. Um dos termos no
idioma Twi quando falam da música é "dança multi-metrica". Para
Thompson a dança africana é determinada por várias interelações, construída
através de vários movimentos sobrepostos. Para o estudioso o principal fim
desta característica é a representação do cosmo no corpo, a com mais
estrutura-tempo. Todas as possibilidades do universo existem só no corpo
humano. Os dançarinos interpretam movimentos que veem de várias direções, mas
na mesma "estrutura-tempo".
Outro aspecto com um claro significado mágico-religioso
é a forma curvilínea. As danças africanas, como em geral as danças populares em
muitos lugares do mundo desenvolvem um movimento circular, anti-horário e, nas
coreografias, se destaca a forma curvilínea, porque, como contam as lendas, ao
círculo é atribuído um poder sobrenatural, uma vez que a ausência de limite
implica que não pode quebrar-se e que permanece ao infinito, numa estabilidade
e espacialidade fora do tempo.
A dança africana é uma textura de várias camadas de
sentidos, a dimensionalidade é entendida como a possibilidade de exprimi-las: o
olhar, o ouvir, o sentir, o vibrar, que seriam o lado visível dos movimentos,
expressos em outra dimensão, a espiritual. No momento da dança do transe não é
mais a filha ou o filho-de-santo, mas a
própria vibração do orixá, que movimentam-se.
Outro aspecto, muito salientado ao longo da
pesquisa de campo, é aquele da imitação e da harmonia; o primeiro é percebido
como reflexo e eco da natureza, mas em um sentido sensual e não material,
enquanto a harmonia é vivenciada pelo artista como a sua colocação no cosmo sem
causar distúrbios ou destruir o seu equilíbrio.
A memória é o aspeto ontológico da estética
africana. É a memória da tradição, da ancestralidade e da lembrança da antiga
harmonia da natureza, da época na qual não existiam diferenças, nem separação e
que tem que ser lembrada e fortalecida num ciclo eterno. A relevância da obra
artística é dada pela transmissão da harmonia, que liga algo dentro e algo
fora, o corpo e o espírito, a natureza e o homem. Mas sem a inspiração divina o
escultor, o dançarino, o musico não poderiam criar o "momento artístico-religioso".
A repetição, entendida como uma reciclagem do
momento criativo, o movimento produz o efeito de intensificação que leva ao
encontro com a divindade, facilmente observado nos rituais. O mesmo ato ou
gesto é praticado num número infinito de vezes, para dar à ação um caráter de
atemporalidade, de continuação e de criação continua.
Outra característica é a ligação com a terra,
vivenciada como elemento materno, é ela que nos originou, em vários mitos
africanos e no candomblé e a onde voltaremos. Nas danças africanas o contato continuo
do pé nu com a terra é fundamental para absorver as energias que se propagam.
TEMPO E
ESPAÇO NO CANDOMBLÉ
Evans-Pritchard (1976) distingue as duas categorias
de tempo relativas aos Nuer (uma das tribos da África Oriental): o tempo
ecológico e o tempo estrutural; sendo o primeiro o tempo das estações, dos
ciclos anuais; enquanto o segundo revela não um continuum ,
mas uma constante entre dois pólos: a primeira e a última pessoa na linhagem
familiar. Edward Hall (1984:96), observa que: "os Nuer, se dão conta, de
certo modo, que o tempo passa, mas que é necessário para o funcionamento de
suas estruturas culturais tratá-lo como um elemento imóvel - eles consideram
que somente as gerações passam.
Tomando um outro exemplo, ainda na interpretação de
Hall, (1984:96): para os Tiv (um povo da Nigéria) o tempo é como um conjunto de
espaços fechados, cada um contendo um atividade diferente. Esses espaços
fechados, assim como os canais dos Nuer, parecem ser relativamente fixos: não
se pode deslocá-los ou reorganizá-los, nem mudar ou interromper uma atividade
em curso no interior desses espaços, como se pode fá-lo na cultura ocidental.
No candomblé, também o tempo-pensamento para de
fluir, porque cada ação, cada cantiga, cada dança tem que ser vivenciada no
tempo reversível próprio do mito. Segundo a antropóloga Bernardo: "...Surpreende
perceber na festa, através da música e da dança, a existência de um outro tempo
- do tempo reversível. Pela audição dos sons e pela percepção dos movimentos
dos corpos no espaço atesta-se a existência desta outra temporalidade que
reintegra o tempo linear - da produção e da eficiência - ao tempo que não
envelhece - característicos dos deuses".
Esse é um tempo circular que começa e acaba no
mesmo ponto, ciclicamente e ritmicamente seguindo os ritmos da natureza. O
tempo, nesse sentido é movimento, é a materialização do movimento, como diz
Duplan (1987): "para marcar o tempo, temos que agir, batendo sobre um
tambor com a mão ou sobre o chão com os pés. Criando o tempo, criamos o
movimento."
O espaço sagrado é o campo do culto, o lugar no
qual o caos transforma-se em cosmo, tornando possível a vida humana, por isso é
polissêmico. Segundo Neumann(1981:34), "... O lugar da revelação primária
transforma-se em lugar de culto, caverna sagrada, modelo de qualquer templo, e
o mesmo caminho percorrido transforma-se numa estrada misteriosa
conscientemente repetível, estrada que conduz à sabedoria com o caminho
iniciático .
Toda a roça do candomblé é
considerada um lugar sagrado. No momento em que o fiel deixa a rua e entra
na roça, ele entra num lugar mágico-sagrado. O mundo de fora é
perigoso e cheio de dificuldades. Dentro existem várias provas a superar, mas
as filhas de santo encontram aliados na luta pela a sobrevivência e também no
caminho místico-religioso. Já na entrada, os fiéis colocam ou assentam
espíritos, através de rituais apropriados para defendê-los das energias
negativas.
Tanto a rua, quanto o próprio terreiro poderiam
simbolizar uma peregrinação, um caminho iniciático, lugar de passagem para
alcançar o barracão, o lugar sagrado por excelência, onde, nas
cerimônias públicas, as divindades se manifestam.
Existem dois espaços, um interior, o próprio corpo
da filha-de-santo, receptáculo do sagrado, sagrado ele mesmo e
um externo o barracão. Esses dois lugares são o teatro da
transformação ritual. Neles o fiel deixa o mundo cotidiano e alcança o encontro
tão assustador, mas tão desejado, com o divino. É só no espaço sagrado que ele
pode voltar à totalidade e comunicar-se com a divindade.
A dança desenha não só o percurso do corpo no
espaço para chegar ao divino, mas também percorre a planta arquitetônica do
lugar sagrado, desenhando o caminho para alcançar o espaço mágico-sagrado.
O fiel dança, segundo (Wheatley,1983), ao redor do
centro sagrado, um ponto da terra ligado ao céu por um invisível raio
energético, o axis mundi . Este é um simbolismo em quase todas
as religiões do mundo. Nesse ponto e na entrada estão enterrados os fundamentos
da casa. Cada terreiro tem seu próprio fundamento. O centro de um
lugar é fundamental nas religiões africanas porque é o lugar, onde, através da
"coluna sagrada", o céu se liga com a terra, segundo relata Davidson
(1972). É talvez por isso que, nesse lugar, está colocado o fundamento da
casa.
A criação, em toda a sua extensão, se efetuou a
partir de um centro. Por isso, tudo aquilo que é fundado, está no centro do
mundo. Do centro passam dois eixos, um vertical, o outro horizontal, tempo e
espaço. Desse centro, originam-se círculos sempre maiores, que vão ao infinito,
à semelhança de uma pedra jogada na água. Mas o caminho é árduo, semeado de
perigos, porque é, efetivamente, um rito de passagem do profano ao sagrado; do
efêmero e do ilusório à realidade e à eternidade; da morte à vida; do homem à
divindade.
O espaço sagrado, o barracão, durante
a dança, é preenchido com os corpos em movimento. As direções são os caminhos
do corpo no espaço. Simbolicamente expressam as várias possibilidades no espaço
do divino e do homem se movimentar. A divindade pode utilizar uma estrada
curvilínea, ou um caminho que prevê várias mudanças de direções. Come sugere
Hall um movimento curvilíneo que segue um caminho direto-circular, como aquilo
de Oxum ou Iemanjá mostra o pertencer a uma etnia de agricultores, parados num
lugar de onde irradiavam-se. Enquanto os caminhos de Oiá e de Ogum relatam o
pertencer a uma etnia nômade, que mudava a direção seguindo a trajetória dos
animais. O corpo em movimento assume um significado simbólico, segundo os
níveis de verticalidade, alto-médio-baixo. O nível alto relaciona a pessoa com
o elemento ar; o nível baixo relaciona o corpo com a energia da terra, que,
segundo Oliveira (1994): tem que dar o apoio necessário para sustentar-se; o
nível médio inter-relaciona os outros dois. O corpo movimenta-se também na
horizontal, ampliando os movimentos semelhantes a uma bola hipotética, como nas
danças de Iemanjá, ou desenhando com os braços, uma forma redonda, como na
dança de afastamento de Oiá-Iansã. Assim as danças podem desenvolver-se tanto
ampliando os movimentos, quanto dançando na vertical, subindo e descendo ao
longo de uma linha imaginária, como na dança das ondas de Iemanjá.
Frequentemente os orixás jovens pulam, dançando, e interrompem os movimentos
com paradas repentinas e nervosas, como Oiá-Iansã ou Ogum, demostrando mais
energia, enquanto os orixás mais velhos dançam com mais calma e com movimentos
mais contínuos, como Oxalá ou Nanã Buruku.
Os orixás guerreiros dançam com uma postura mais
ereta, com pulos nos momentos mais dramáticos e alcançando com o corpo mais
espaço seja na linha vertical que na horizontal, enquanto as divindades mais
velhas dançam curvadas na direção do chão. É o caso de Omolu ou de Nanã Buruku,
cuja gestualidade expressa sua ligação com os ancestrais e com o retorno à terra, aiyé,
ao orum, o não conhecivel.
O CORPO E A
SUA SIMBOLOGIA NO CANDOMBLÉ
O homem está em contato continuo e harmônico com a
natureza, que fala com os mortais através das suas vibrações, captadas do
corpo, por isso o corpo não é negado, mas vive o seu compromisso com o mundo. Os
seus ritmos são acompanhados de uma experiência sensual contínua. Eis por que o
corpo é decorado para mostrar a sua importância e resguardá-lo dos ataques
mágicos externos, protegendo as aberturas com decorações ou jóias, como os
brincos cheios de pendentes, para indicar aos outros quem a pessoa é e como os
outros devem-se comportar-se na sua frente.
O corpo sagrado é o templo por excelência, é
simbolicamente o "trono" e, por isso, o das divindades (típica é a
representação de Iside sentada) é sempre representado (Newman, 1981:101) como:
um trono em si, é característico que o ventre feminino não seja só a parte dos
genitais, mas também as largas coxas da mulher sentada, sobre as quais fica o
menino nascido daquele ventre. Portanto as cadeiras são uma área sagrada do
corpo humano, onde a bacia e as nádegas representam a fertilidade.
Centro da irradiação simbólica portanto é o corpo,
expressão das energias da natureza e em unidade com o mundo natural que o
abrange. Daí a sua função de busca das energias cósmica e de expressão delas,
vivenciando-as.
Sendo o corpo humano uma cópia das formas e das
energias do cosmo, os próprios elementos (fogo, ar, água e terra) juntam-se
segundo arquétipos diferentes. As palavras do biólogo Pelosini (1994:94)
aplicam-se bem à concepção africana do corpo humano : ...o universo
(macrocosmo) e o homen (microcosmo) são criaturas similares, que obedecem às
mesmas leis como um tipo de fantástico e perfeito relógio cósmico que escande
harmoniosamente os ritmos.
Tendo como base o contexto cultural holistico do
candomblé, o corpo encontra-se diretamente relacionado a uma divindade e, por
extensão, a um dos elementos naturais primordiais e aos demais elementos a ele
associados, como relatam Barros e Teixeira (1992:43). É percebido como
manifestação da ação sobrenatural. A partir da predominância de um dado
elemento na composição do corpo, é determinado o principal orixá da pessoa.
As divindades femininas, as iabás, Nanã
Buruku, Iemanjá, Oxum, Euá e Obá estão associadas ao elemento água; Oxalá
(masculino) e Oiá-Iansã (feminina) ao elemento ar; Ogum, Oxóssi, Omolu, Iroko e
Ossâim (masculino) ao elemento terra e por isso ao mato; Exu e Xangô
(masculinos) e também Oiá-Iansã (feminino) ao fogo. Os orixás Oxumaré e Logunedé
são considerados metá-metá" e estão associados tanto à água como à terra.
No corpo está inscrita a história da familiar, dos
ancestrais Esa, numa sofisticada composição de formas, matérias e
energias opostas, que devem equilibrar-se e complementar-se. Como relataram-me
na pesquisa, simbolicamente a parte frontal do corpo é relacionada ao futuro; a
parte posterior, sobretudo a nuca, ao passado. As pernas estão relacionadas aos
ancestrais, porque são a base do corpo humano, quer dizer, aquilo ao qual refere-se
sempre e que é o sustento, quer dizer a hereditariedade, os antepassados.
Também as mãos são consideradas como um dos pontos onde é possível receber
energia, de fato quando um orixá passa perto dos fieis botam-se as mãos abertas
frente à divindade.
O corpo, ara foi modelado com uma
porção de lama, porque a terra é a mãe de tudo e o lugar ao qual todos
voltaremos, sendo um outro dos lugares simbolizantes o orum, o
não conhecido.
As partes consideradas mais sagradas são: a cabeça,
sede do ori é consagrada a Iemanjá. Ela é a senhora das
energias negativas e positivas. É ela que consegue equilibrá-las nas cabeças.
Por isso, como me foi explicado pela Ialorixá Mãe Beata de Logunedé, Iemanjá
dança botando as mãos na frente e atrás da cabeça, a simbolizar a possibilidade
das misturas das energias. Iemanjá como mãe de todos os orixás, tem a função de
orientar e cuidar de todo mundo, não só dos filhos dela. Os seios simbolos da
nutrição e fonte de vida para o genro humano. O ventre, sede dos órgãos sexuais,
é protegido por Oxum, porque ela é a dona do fluxo menstrual, enquanto o útero,
como órgão reprodutivo, é protegido por Iemanjá. Dono dos pés é Ogum, símbolo
do movimento, também do desenvolvimento, porque indica a capacidade de procurar
novos caminhos. O pé direito é relacionado com o ancestral masculino e o pé
esquerdo com o ancestral feminino, sendo, como explicado acima, a base do corpo
e a herança ancestral que reside na terra. A voz do orixá é o ke ou ila ,
um grito que às vezes a possuída dá durante a possessão. O ila é
o símbolo da individualidade, é a energia pura daquela pessoa, é o som criador
e individual que, concentrando-se no interior, testemunha a personalidade mais
profunda. Mais que o olhar, é a voz que indica a individualidade.
As aberturas do corpo são também sagradas porque,
através delas, através da alimentação penetram no corpo os alimentos e as
energias. O orixá que cuida das aberturas do corpo assim como das entradas do
terreiro é Exu, o guardião que, se bem homenageado, traz boas energias,
enquanto que, se deixado solto na rua, procura confusões e dificuldades.
Os olhos são importantes porque falam, são os
espelhos da alma, ao longo da pesquisa percebi o diferente olhar das Maes-de-santo em
circunstancia particulares, como por exemplo na divinação. E também merece
ressaltar o fato que ao longo do transe, os olhos fechados parecem indicar que
os sentidos estão voltados para o interior do corpo, para uma outra dimensão. A
coluna humana simboliza a coluna sagrada, com ela relaciona-se o mundo dos
espíritos com os dos mortais, assim é através da coluna que liga-se a cabeça e
os pés, o ori com o sua base que é a possibilidade de se mover
no espaço e no mundo, como a dizer que sem um equilíbrio energético na cabeça o
fiel não pode escolher o seu caminho.
Através do corpo em movimento percebem-se os
problemas espirituais, porque, quanto mais um fiel conseguir ficar em harmonia
consigo mesmo e com o seu orixá, com mais fluidez ele conseguirá soltar-se na
dança, expressando a própria natureza profunda.
A DANÇA
CÓSMICA
Shiva criou o universo dançando, assim como nos
mitos gregos Eurinone, Deusa de Todas as Coisas, emergiu nua do Caos, mas não
vendo substancia em redor onde firmar os pés, apartou do céu o mar, dançando
solitária por sobre as suas ondas. (Graves, 1990:31). Nas lendas dos Iorubás,
os orixás também gostavam muito de dançar durante as festas ou para atrair
alguém.
Entendem-se assim que não só no pensamento
africano, mas também no oriental e grego o universo é percebido em continuo
movimento, formado por ondas vibratórias organizadas no "verbo" da
Divindade Suprema que expressa-se na respiração com os dois movimentos básicos
da natureza viva: expansão e contração. Movimentos fundamentais da vida do
cosmo, das plantas, dos animais e do homem. Belinga diz (1993:11): "Nas
nossas tradições o "verbo" possuí três elementos que o determinam e
que permitem a sua colocação seja entre as formas artísticas, seja na
comunicação interpessoal. Três são as formas nas quais o "verbo"
manifesta-se: a palavra, que caracteriza a expressão interior e exterior do
pensamento; a música que expressa a beleza; e pôr fim a dança, que é em função
seja dos ritmos dos instrumentos seja do ritmo interior do "verbo".
Segundo os africanos a vida faz parte de um
processo rítmico e dinâmico de criação e destruição, de morte e renascimento,
onde as danças dos orixás expressam esse eterno e alternado ritmo, que
desenvolve-se em ciclos infinitos expressados pelo homens.
Através da dança, o corpo sai da sua
individualidade física e insere-se num movimento mais amplo que interessa à
coletividade, à divindade e ao cosmo. O fiel, através do rito alcança o
infinito. Move-se com atos ou gestos corporais, que permitem realizar aquela
identidade substancial que liga o som individual aos ritmos do universo.
Assim as danças das divindades tornam-se como um
espelho que reflete o ritmo humano, do nascimento, da morte e dos ciclos
cósmicos da criação e da destruição. As culturas não ocidentais sabem que a
natureza vibra numa onda invisível-rítmica perceptível só através do corpo e da
arte.
Por isso Morin coloca que: "a sensibilidade
estética é, sem dúvida, uma aptidão para entrar em ressonância, em
"harmonia", em sincronia com sons, aromas, formas, imagens, cores
produzidos em profusão não só pelo universo, mas também, já então pelo sapiens ".
Por isso a religião usa as formas estéticas como
comunicação não verbal, porque consegue exprimir sensualmente mensagens
profundas que seriam impossíveis expressar com palavras. Daí a importância da
arte ritual como linguagem de transmissão para a alma humana. Langer explica
este fato (1953:40) quando diz: a arte é a criação de formas que simbolizam os
sentimentos humanos.
O homem é levado pela música expressa na dança para
o caminho indicativo da metamorfose, necessária para encontrar o sagrado,
experiência dificilmente exprimível com palavras, posto que ela é interna,
preciosa e resumível apenas com as imagens simbólicas dos sonhos.
Existe uma estrutura fixa e organizada e uma
linguagem específica, seja para a música, seja para a dança. A aprendizagem das
danças e da terminologia é lenta e envolve uma longa vivência nos terreiros e
uma longa observação. Nas palavras de Langer (1980:178): o movimento corporal é
bem real, mas o que torna o gesto emotivo é a sua origem espontânea, no que
Laban chama de movimento-pensamento-sentimento.
Percebe-se, assim, a importância não dos gestos
mecânicos, mas da força do sentimento, do pensar apaixonado que a dança
expressa, que seria a essência daquele orixá particular. Mas o homem só pode
encontrar o sagrado através de uma iniciação progressiva: a força da divindade
sem uma adequada preparação seria de fato forte demais para o comum mortal,
como disseram meus informantes. Por isso o ritual desenrola preparando o fiel
para encontro com o divino.
O homem dançando, ritualiza a confiança numa
vitória sobre o heracliteo "eterno fluir" e a celebra para revivê-la
e para continuar, ele mesmo, a viver eternamente, consagrando-se, assim, um dia
como antepassado na memória dos familiares.
A angústia de não sobreviver à caducidade da vida e
à passagem do tempo é antiga como o mundo e todos os povos tentaram
exorcizá-la. O homem, através da dança ritual, acredita sair do tempo e entrar
em contato com a essência primordial, na qual não existe o fluxo do tempo.
Lévi-Strauss (1971:590-659) e Durand (1972:35) salientam a necessidade do homem
de parar o tempo no ritual e de celebrá-lo dançando, de não deixá-lo decorrer
em sua passagem, acalmando, desse modo, a angústia existencial.
No ritual, os fiéis do candomblé vivem de novo o
momento atemporal do mito da criação, dançando ao contrario voltam a origem e,
ao antigo equilíbrio, agindo assim, exorcizam a morte, o tédio e o sofrimento.
A MÚSICA NO
CANDOMBLÉ
Segundo Mukuna (1996), a música africana tem a
função de fazer socializar a comunidade, de passar o conhecimento sobre o grupo
étnico desde uma geração á outra e de abrir um canal de comunicação entre o
mundo físico e o espiritual. O som é o resultado de uma interação dinâmica, som
que sendo condutor de axé, poder de realização, aparece em
todo seu conteúdo simbólico nos instrumentos musicais. Por isso os atabaques são
instrumentos sagrados e recebem todos os anos rituais apropriados, assim como
são tocados só por sacerdotes-musicos, os alabés. .
Segundo o músico Carneiro(1994), a música africana
está caracterizada por uma ciclicidade da frase musical. Quer dizer que o
padrão rítmico repete-se ao infinito. Não é como na música ocidental, em que se
cria uma história temporal. Aqui não: a frase musical é repetida sem um começo
ou um final. A repetição da frase anula a expectativa do acontecimento de algo
de novo, de imprevisto, mas recria todas as vez a frase musical. Existe a
tentativa de parar o tempo e o seu fluxo na busca de um centro único, fixo e
eterno. A música é dividida em unidade de tempo que organizam-se num
"modelo-padrão", repetido numa nova re-ciclagem. No ritual cada atabaque tem
seu "modelo-padrão" que liga-se àquele dos outros tambores num
"ensamble thematic cycle" (Meki Nzewi) que levam os vários
instrumentos num mesmo momento de início ou de fim. A música simbolicamente
expressa o andamento circular do tempo e do espaço do mito.
O atabaque maior, rum , que
é a base rítmica e é o único que permita-se variações, toma conta da cabeça,
porque e o "som-identidade" e a nível simbólico, manda sobre o resto
do corpo. Seria o fundamento religioso, a parte mais sagrada. A nível corporal,
manda sobre os pés, que são a base do corpo e em direta ligação com a cabeça
através do canal energético representado pela coluna humana. Os braços contam a
mitologia e estão dirigidos pelo ritmo do rumpi . Enquanto a
última percussão, o lé , dirige o movimento dos ombros, que é
continuo e o mais solto possível, talvez para ajudar a passagem da energia através
da coluna.
Tanto a música, quanto a dança que a acompanha
expressam o caráter do orixá e os acontecimentos da sua vida. As histórias
míticas, as qualidades, as virtudes e as falhas dos orixás são passadas aos
fiéis através das letras das cantigas. A concentração e a busca interior
permitem expressar a própria música e a própria gestualidade, que é única e
pessoal e que corresponde à "qualidade" de cada orixá.
Assim, por exemplo a música de Oiá é caracterizada
por grande rapidez, agressividade, determinação e grande variabilidade, porque
o rum nunca repete os mesmos esquemas rítmicos, percebe-se
assim a personalidade da deusa que expressa o elemento ar em movimento. O uso
da sincope no brano de Oiá tira a possibilidade de encontrar
uma isocronia no ritmo e dá ao ritmo musical a impossibilidade de botar os pés
no chão. Enquanto a música de Iemanjá é caracterizada por movimentos lentos e
amplos, que expressam o movimento das ondas do mar. Por sendo em ritmo binário
a sensação é aquela de um movimento circular, expressado na dança.
Como a música é tão importante, assim é a função
dos sacerdotes-musicos, os alabés que aprendem o repertório
durante muito tempo. São eles que podem chamar a comunidade e sobretudo os
orixás a descer na festa, são eles que ajudam os fiéis a 'cair no santo'
acelerando os ritmos e que encerram a festa com um toque especial.
Como mostra Luhning (1990:197), a música, na sua
maior parte, está direta e inseparavelmente ligada com a dança das filhas-de-santo ou
dos orixás manifestados nelas.
AS DANÇAS NO
CANDOMBLÉ
Nos rituais de candomblé, a função da dança é
múltipla: por um lado, é expressão do sagrado e cria o próprio orixá, por
outro, é o meio e o conteúdo entre a divindade e os fiéis, entre o aiyé ,
a terra e o orum ,. Como já foi observado acima, a
dança sagrada expressa a própria energia da natureza, materializada no corpo da
filha-de- santo em transe.
Na festa pública do candomblé são reconhecíveis
dois tipos de dança:
a) um primeiro tipo, no começo da festa, o xirê (literalmente
brincar), onde se canta para todos os orixás um mínimo de três cantigas,
acompanhadas pelas danças. Cada orixá possui cantigas e gestualidades
particulares, pertencentes só a ele. Essas danças são previsíveis, porque são
executadas ainda em estado consciente e seguem um padrão fixo, a depender do
orixá dono da festa.
Todas as filhas e os filhos-de-santo participam
dessas danças, formando, no início, um grande círculo sagrado, que é um símbolo
encontrado em várias religiões. Essa primeira parte da festa pode ser
considerada uma cosmovisão: todas as energias da natureza são chamadas a descer
para restabelecer o antigo equilíbrio entre as energias da natureza e os
homens. Em geral, os fiéis dançam um atrás do outro, em sentido anti-horário,
exceto nas rodas de Xangô, de Oxóssi, de Obá ou de Oxalá", onde as filhas
olham para o centro do barracão, concentrando-se nessa direção. Nesse lugar,
está colocado o fundamento da casa, a raiz material da casa.
Quando se dança o xirê, segundo
Oliveira(1995): os movimentos são de dimensão pequena e chamam-se dançar
pequenino, porque são movimentos de dimensão pequena e servem para concentrar
as energias, mas também para as pessoas se centrarem e para prepararem-se a
receber o orixá;
b) um segundo tipo, são danças realizadas durante o
transe; é o próprio orixá que dança nesse momento, seguindo o ritmo sagrado dos
tambores. Nessa segunda parte, o andamento da festa é imprevisível porque,
apesar de existir um esquema fixo, não se sabem exatamente quais serão as
coreografias, porque isso depende das cantigas entoadas pelos fiéis presentes,
da memória para lembrar as antigas cantigas e também da presença das Iá-tebexê ou
das Baba-tebexê quer dizer, das filhas ou filhos que têm a
tarefa de entoar as cantigas e de continuá-las, quando os outros não se lembram
mais delas. Além disso, o desenvolvimento da festa depende de outros elementos
complicadíssimos, como a relação entre o orixá dono da festa e o da
mãe-de-santo, ou de outras relações entre os orixás.
Assim, por exemplo, numa cerimônia para Oyá-Iansã,
assistem-se às danças típicas dela: da guerra, como mãe ou rainha dos Eguns, e
a coreografias ligadas a outros orixás, como Ogum, Xangô, Oxóssi, seus maridos.
Nessa segunda parte da festa, a energia é chamada a manifestar-se em todas as suas
formas possíveis e também junto com as outras forças da natureza. Quando Oyá-Iansã
dança com Xangô, sua dança é a manifestação do movimento do ar, que gera o
fogo.
O orixá mostra ao público a sua história
mitológica, redistribuindo a energia vital, axé e trazendo o
mundo sagrado de volta ao cotidiano. Quando os orixás apresentam-se nesse
momento, entram no barracão em fila, seguindo a hierarquia dos mais
velhos no santo, quer dizer que as filhas mais velhas vêm na frente,
seguidas daquelas com menos tempo de iniciação.
As danças dos orixás são muito diferente. Por
exemplo nas coreografias de Oiá, os passos são pequenos e rápidos, como se os
pés não pudessem posar-se no chão, ela representa o elemento ar em movimento,
enquanto os braços movimenta-se com força afastando qualquer da sua frente. O
corpo pode ser dobrado para o chão, com uma carga muito ameaçadora, mais
frequentemente é direcionado para o alto.
As danças de Iemanjá são constituídas por
movimentos amplos, os pés posam no chão, a demostrar o equilíbrio, enquanto os
braços movimenta-se com grande fluidez. O corpo está levemente dobrado para o
chão em uma forma redonda a lembrar a forma materna da deusa e a sua
disponibilidade em acolher e em conduzir, o corpo todo expressa o movimento das
ondas, a ritmicidade continua, mas também o mistério a água que está em baixo
sobe por cima levando as coisas que encontra por baixo.
Existem algumas danças que são parecidas, como as
chamadas primeira de dar rum , primeira coreografia dos
orixás, que funciona como uma apresentação através da qual os orixás, se
apresentam ao público. Nas danças executadas em transe o corpo e o rosto
juntam-se numa única plasticidade como se o corpo tornasse uma estadua e
adquirisse uma nova qualidade de movimento.
Cada orixá dançando transmite a própria vibração
interna: Ogum, nervoso anda no espaço todo abrindo o caminho com as mãos que já
viraram espadas. Oxossi, o caçador dança com o aguere, tranquilo,
esperando os animais e movimentando-se com muita atenção no mato, ele tem na mãos
arco e flechas. Xangô, com o ritmo avanija, toma posse do
barracão, mostra ser o vaidoso rei de Oio, mexendo o corpo todo e ampliando a
largura das costas. Omolu dança dobrado para o chão, o seu ritmoopanijé, tremendo
pela sua doença. Oiá nervosa, voa com o ilú, enchendo todo o
barracão, Iemanjá mais calma expressa a grandeza do mar e o seu lado maternal,
enquanto a Oxum com o ijexá, captura os olhares dos fiéis,
mostrando todo o seu lado coquete. Nanã também dança dobrada, tendo na mão uma
bengala com a qual bate o milho, ela é a mais velha e a mais ligada ao mundo
dos ancestrais, Oxalá, o pai de todos dança com dignidade, com a sua ferramenta
na mão.
No final, existe uma coreografia de despedida, em
geral igual para todos os orixás. Estes saúdam o público, a mãe de santo e os
atabaques, restabelecendo a ordem inicial. Então as forças da natureza,
chamadas a concentrar-se no espaço sagrado, são espalhadas novamente e
repartidas no seu lócus originário.
OS DESENHOS
DAS DANÇAS
As danças são estruturadas em coreografias
executadas no xirê , ou durante a incorporação. As danças são
muitos e diferentes e só uma longa convivência permite reconhece-las. Como pude
observar, os movimentos são os mesmos que repetem as características dos
orixás. A mudança da coreografia acontece porque mudam as cantigas. A forma
coreografica de algumas repetem-se, por isso tentarei encontrar o sentido
simbólico delas.
Primeira entre todas, é a forma do círculo, a
antiga roda sagrada, que pode ser encontrada em várias culturas; de fato, em
todas as danças extáticas, os dançarinos rodam em torno de um centro, ao tempo
em que rodam também sobre si mesmos num duplo movimento de rotação e
translação.
A forma do círculo tem uma grande importância na
África, Neumann (1981:214), simbolizando a Grande Mãe, que em si contém os
elementos masculinos e femininos. Por isso as coreografias referentes as
divindades da Água: Oxum e Iemanjá possuem um movimento circular.
É interessante observar que as danças extáticas
rodam em sentido anti-horário, mas é difícil dar uma interpretação desse fato,
porque, nas entrevistas as filhas só diziam que é bom para o
espirito. Este movimento ao contrário, é feito no mundo inteiro, talvez porque
abre a brecha entre sagrado e profano, simbolizando a volta a origem.
As danças começam em um grande e lento círculo que
vai diminuindo ao longo do ritual com giros sobre si, feitos durante as
incorporações, a simbolizar uma direção para si mesmo.
Como o círculo, a espiral é um símbolo
antiquíssimo, encontrado em todas as culturas, e também na natureza, incluindo
a molécula do DNA, a espiral aparece nas rotações que as filhas-de-santo fazem
sobre si mesmas, quando incorporam ao longo da performance. Esse mesmo
movimento é repetido em várias danças. Assim fazendo uma analogia com a
proibição do incesto para Levi-Strauss, pode-se dizer que a espiral possui um caráter
universal que é o próprio DNA da espécie-sapiens e um caráter particular que
possui significados diversos dependendo da cultura.
A espiral é símbolo da comunicação (Santos:1977;
Pelosini:1994). Assim, quando o orixá possui o corpo da filha-de-santo ,
realiza-se uma comunicação entre o homem e a divindade. Enquanto o corpo
material vira sobre si mesmo, a energia do orixá penetra, virando do outro lado
e entra no corpo, formando uma dupla espiral, como me foi explicado por uma mãe
de santo, Mãe Teresinha da Liberdade. Não é por acaso que Exu, a divindade da
comunicação, roda sobre si mesmo desse modo, quando se transforma num ciclone e
acaba com tudo que está em sua volta, porque ele é a própria comunicação,
simbolizada pela espiral, que expressa o movimento circular que, saindo do
ponto da origem, movimenta-se ao infinito. Ela expressa a evolução a partir de
um centro; simboliza a vida, porque indica o movimento numa unidade de ordem
ou, ao inverso, a permanência do ser na mobilidade. Durand (1972) sugere que,
simboliza a permanência do ser, através das flutuações da mudança da vida.
Segundo Pelosini (1994:181): a função simbólica das
rotações helicoidais seria a de aproximar, por etapas, o homem ao infinito e
juntar a terra ao céu. Essas inter-relações, entre o corpo humano (microcosmo)
e o universo (macrocosmo), entre o infinitamente pequeno (microcosmo) e o
espaço interstelar infinitamente grande (macrocosmo), já eram, em muitos casos,
conhecidas ou percebidas por civilizações do passado, que as tinham codificadas
em mitos e símbolos de espiral.
A espiral poderia simbolizar a procura do próprio
espírito ao longo do difícil caminho espiritual. Partindo de um ponto firme,
alcança, com voltas ao mundo do sagrado. A mesma forma encontra-se na dupla
hélice do DNA, que é responsável não só pela programação da atividade celular,
mas também pela hereditariedade das características genéticas e da própria
evolução das especies: é a verdadeira quintessência da vida, é o eterno que
sempre se transmite. Essa molécula é o mensageiro da hereditariedade biológica
e das características hereditárias, assim como Exu é o mensageiro entre os
homens e as divindades. Não é por acaso que, no candomblé, a espiral
encontra-se no okoto , associado a Exu, orixá que expressa a
dinâmica da vida, o movimento interno na criação e na expansão do mundo.
Segundo Santos (1977:133), o okóto é uma espécie de caracol e
aparece nos motivos das esculturas e como emblema entre os que fazem parte do
culto de Exu. Ele consiste numa concha cônica cuja base é aberta, utilizada
como um pião. O okóto representa a história ossificada do
desenvolvimento do caracol e reflete a regra, segundo a qual, se deu o processo
de crescimento espiritual; um crescimento constante e proporcional, uma continuidade
evolutiva de ritmo regular. O okóto simboliza um processo de
crescimento. É o pião que, apoiado na ponta do cone um só pé, um único ponto de
apoio rola, espiraladamente, abre-se a cada revolução mais e mais, até
converter-se numa circunferência aberta para o infinito.
Assim como o DNA é o significante e o significado
da vida - todas as funções vitais da célula dependem dele, sobretudo a
reprodução, ou seja, o perpetuar-se da vida. Exu é o princípio dinâmico da
evolução e o mensageiro entre o homem e a divindade, sem ele, nada pode ser
comprido.
CONCLUSÕES
Os versos de Senghor esclarecem a importância da
dança, a dança é a possibilidade de conhecer o outro, dançando exprimem-se o
lado mais profundo do ser e também liga-se na essência do outro. Um outro que
pode ser preso dentro de nós dançando-o ou pode ser olhado como um espelho. Eis
o conceito do "duplo", a sacerdotisa-dançarina está criando o outro e
também neste processo de criação-incorporação o vivência intensamente em si
mesma e adquire a sua pulsação-ritmo interno.
A arte africana está ligada profundamente á
religião. O belo não é só prazer estético, mas é percebido como uma
participação a um sistema dinâmico de comunicação entre o mundo visível e o
invisível. A arte não existe como conceito para se, mas adquire sentido só na
determinação da visão dinâmica do mundo africano. Uma das muitas palavras
ioruba para dizer "arte" é ogbon, "sabedoria",
para indicar que o artista é um sábio que escuta as mensagens da natureza. Os
artistas-sacerdotes tem a tarefa de perceber e transmitir as comunicações das
divindades com a criação simbólica no ritual.
A dança tem um sentido particular porque é a
expressão da divindade e da identidade mais verdadeira da filha ou
do filho-de-santo. Cada um possui a própria "identidade-sonora",
o próprio duplo no Orun, que o fiel encontra no momento da possessão e
que aprende a reconhecer e a conhecer através da dança e da música. Em várias
culturas é pelo corpo que o homem começa o caminho do conhecimento e o papel
por ele desempenhado no cosmo e na sociedade. Sendo no corpo que o homem
vivência a própria experiência da vida e junta as várias informações simbólicas
sobre o mundo, é no corpo divino, que vivenciando as energias sagradas, ele
pode se comunicar com o sagrado, pode juntar o lado sensível com aquele
material, porque não dados cognitivos, mas as cores, as formas, os sentimentos
internos dão forma á matéria. Os ritmos dos atabaques levam o
fiel numa viagem simbólica que o-transforma, porque toma posse do tempo que
flui e do espaço que não tem mais lugar definido, o fiel volta ao tempo da
origem. A percussão dos atabaques, como sustenta Duplan é a
materialização do tempo e tomar consciência do tempo é conhecer a nossa
linhagem, é saber de ser um aneu de uma corrente infinita que originou-se com
nosso ancestral-mitico. O corpo age no mundo sagrado através dos movimentos da
dança e interagindo com o espaço simbólico e com o tempo da origem. Espaço que
refere-se a uma tipografia sagrada onde cada objeto, cada planta remetem a
outros planos da existência. Assim como a coluna sagrada representa a ligação
entre o mundo sobrenatural, o orum e o mundo da terra, o aiyé, os fundamentos remetem
ao tempo da origem, na mesma forma a coluna humana liga a cabeça, o ori, o orum,
com os pés, nossos fundamento pessoal, nossa ancestralidade, voltando
durante a possessão ao tempo do mito quando ainda não existia a interrupção
entre o mundo dos homens e aquele dos deuses. Depois do momento do
"chamado do orixá", o orixá se apossa da materialidade do corpo e
transforma o fiel em divindade, o fiel torna-se o seu duplo divino. As danças
afirmam assim a presenca da divindade entre os homens. A dança e a música
expressam a identidade sonora e corporal da divindade numa única imagem de
conteúdo e forma. Essa unidade adquirida só naquele momento a-temporal e
a-espacial, pelo corpo atravessado pelas energias divinas, energias que
encontram-se tanto no macrocosmo como no microcosmo. Unidade construída e
expressada só através um simbolismo corporal, porque os conteúdos são tão
profundos que não poderiam ser comunicados através das palavras, o corpo tem
que vivenciar a "origem" e não conhece-la como meros conceitos frios.
Os sinais não-verbais remetem a imagens e sentimentos e por isso eles possuem
um grande poder. Como afirma Firth (1970): " os gestos tem um significado,
uma faculdade, um efeito restaurador, um tipo de forca creativa que só as
palavras não podem dar".
Retomando Prandi (1991): "As religiões do
transe também operam de modo a integrar as dimensões íntimas e públicas do eu
social, podendo se valer, como no candomblé, do uso de papeis referidos
religiosamente, eus sagrados, que aparecem como se fossem independentes do eu
social da pessoa".
As danças dos orixás tem todas as características
das danças africanas, reconhecidas através da importância do grupo, que
fortifica a ligação entre os fiéis e tem a função de um espelho que reflete a
própria imagem-identidade; a relação com o elemento terra, a mãe terra que
sustenta seus filhos e e manda energias por eles sendo também o lugar dos
ancestrais; a importância do ritmo, que tem a função de chamar a divindade e de
organizar a desordem a nível macrocósmico e a nível microcósmico; a
simplicidade dos movimentos que permitem as suas repetições cíclicas que ajudam
a incorporação dos do deus e a sua fixação no corpo do fiel .
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