Amadou Hampâté Bâ
Nas
tradições fula e bambara dois termos servem para designar a pessoa. Para os
fulas, são eles Neddo e Neddaaku. Para os bambaras, Maa e Maaya. As primeiras palavras significam "a Pessoa" e, as
segundas, "as pessoas da pessoa".
A
tradição ensina que existe antes Maa,
a "Pessoa receptáculo", e depois Maaya,
ou seja, os diversos aspectos de Maa
contidos no Maa-receptáculo. Como diz
a expressão bambara Maa ka Maaya ka ca a
yere kono: "As pessoas da pessoa são múltiplas na pessoa".
Encontramos exatamente a mesma noção entre os fulas.
A
noção de pessoa é, portanto, a princípio, muito complexa. Implica uma
multiplicidade interior de planos de existência concêntricos e superpostos
(físicos, psíquicos e espirituais, em diferentes níveis), bem como uma dinâmica
constante. A existência, que se inicia com a concepção, é precedida por uma
pré-existência cósmica onde o homem residiria no reinado do amor e da harmonia,
denominado Benke-so.
O
nascimento de uma criança é considerado a prova palpável de que uma parcela da
existência anônima se destacou e encarnou sobre nossa terra, para desempenhar
uma missão. Uma importância muito particular será concedida à cerimônia do
batismo, no curso da qual será dado um togo,
ou nome, ao recém-nascido. O togo
define o pequeno indivíduo. Ele situa-o na grande comunidade.
Três
tipos de nascimento podem ocorrer. O aborto ou ji-bon, literalmente "água derramada", é considerado
maléfico. O nascimento no prazo correto, chamado banngi, é um fato feliz não somente para os pais, mas para a
aldeia, a sociedade e, num plano mais vasto, para a humanidade inteira. O
nascimento após o prazo normal, chamado menkono
ou nyanguan, literalmente
"ventre de muito tempo", é o prelúdio ao nascimento de um ser
extraordinário, o nyanguan, o
proto-feiticeiro, que vem ao mundo imbuído de um poder potencial.
O
desenvolvimento da pessoa vai realizar-se no ritmo dos grandes períodos de
crescimento do corpo, a cada qual correspondendo um grau de iniciação. A
iniciação tem por objetivo dar à pessoa física um poder moral e mental que
condiciona e ajuda a realização perfeita e total do indivíduo. A tradição
considera que a vida de um homem normal comporta duas grandes fases. Uma
ascendente, até os sessenta e três anos, outra descendente, até os cento e
vinte e seis. Por sua vez, cada uma dessas fases comporta três grandes seções
de vinte e um anos, compostas de três períodos de sete anos. Cada seção de
vinte e um anos marca um grau na iniciação. Cada período de sete anos marca um
limiar na evolução da pessoa humana.
Assim,
durante os sete primeiros anos de sua existência, quando a pessoa em formação
requer o máximo de cuidados possível, a criança ficará intimamente unida a sua
mãe, de quem ela dependerá em todos os aspectos de sua vida. De sete a catorze
anos, ela se confronta com o meio exterior do qual recebe as influências, mas
sente ainda a necessidade de referir-se a sua mãe, que permanece sendo seu
critério. Dos quatorze aos vinte e um anos, está na escola da vida e de seus
mestres, distanciando-se progressivamente da influência materna.
A
idade de vinte e um anos marca o importante momento da circuncisão ritual e da
iniciação às cerimônias dos deuses. Durante o segundo bloco de vinte e um anos,
o homem vai elaborar os ensinamentos que recebeu no período anterior. Ele é
então considerado como estando à escuta dos sábios, e se ocorre que lhe dêem a
palavra, é por um favor ou para colocá-lo à prova, não por direito. Aos
quarenta e três anos, entretanto, considera-se que atingiu virtualmente a
maturidade e figura entre os mestres. Tendo o direito à palavra, ele tem que
ensinar aos outros aquilo que aprendeu e sobre o que meditou durante os dois
primeiros períodos de sua vida. Aos sessenta e três anos, término da grande
fase ascendente, ele é considerado como tendo concluído sua vida ativa. Não é
mais compelido a nenhuma obrigação, o que não o impede, eventualmente, de
continuar a ensinar, se esta é sua vocação ou capacidade.
Em
nenhum momento a pessoa humana é considerada como uma unidade monolítica,
limitada a seu corpo físico, mas sim como um ser complexo, habitado por uma
multiplicidade em movimento permanente. Não se trata, portanto, de um ser
estático ou acabado. A pessoa humana, como a semente vegetal, é evolutiva a
partir de um capital inicial que é seu próprio potencial. Este vai
desenvolver-se ao longo de toda a fase ascendente de sua vida, em função do
terreno e das circunstâncias encontradas. As forças liberadas por essa
potencialidade estão em perpétuo movimento, assim como o próprio cosmos.
Para
ilustrar esta idéia, lembremos brevemente o mito de criação do homem na
tradição bambara:
Maa-Ngala
(ou Deus-Mestre) autocriou-se. Depois criou vinte seres, que constituiriam o
conjunto do universo. Mas ele apercebeu-se de que, dentre essas vinte primeiras
criaturas, nenhuma estava apta a tornar-se seu kumanyon, isto é, seu interlocutor. Então, recolheu um pedaço de
cada uma das vinte criaturas existentes. Misturou tudo, o que serviu para criar
um vigésimo primeiro ser híbrido, o homem, ao qual deu o nome de maa, ou seja, o primeiro nome que compõe
seu próprio nome divino.
Para
conter maa, o ser todo-em-um,
Maa-Ngala concebeu um corpo especial, vertical e simétrico, capaz de abarcar ao
mesmo tempo um pouco de cada um dos seres existentes. Este corpo, chamado fari, simboliza um santuário onde todos
os seres se encontram em circundução (1). É por isso que a tradição considera o
corpo do homem como o mundo em miniatura, conforme a expressão Maa ye dinye merenin de ye, isto é:
"O homem é o universo em miniatura".
O
corpo inteiro corresponde a um simbolismo bem preciso. A cabeça, por exemplo,
representa o estágio superior do ser, perfurada por sete grandes aberturas.
Cada uma delas é a porta de entrada de um estado de ser, ou mundo, e é guardada
por uma divindade. Cada porta dá acesso a uma nova porta interior, e esta, ao
infinito. O rosto é considerado como a fachada principal da morada das pessoas
profundas de Maa. Sinais exteriores
permitem decifrar as características dessas pessoas. "Mostre-me seu rosto,
e eu lhe direi a maneira de ser de suas pessoas interiores", diz o adágio.
Cada ser interior corresponde a um mundo que gira em torno a um eixo ou ponto
central.
O
psiquismo do homem é, portanto, um conjunto complexo. Como um vasto oceano, sua
parte conhecida não é nada comparada à ainda por conhecer. O ditado malinês é
eloqüente a esse respeito: "Nunca se acaba de conhecer Maa..."
Por
que esta complexidade?
De
um lado, o nome divino do qual Maa é
investido confere-lhe o espírito, e o faz participar da Força Suprema. Esta
chama-o à sua vocação essencial: tornar-se o interlocutor de Maa-Ngala. De
outro, os diversos elementos que estão nele o tornam depositário de todas as
forças cósmicas, tanto as mais elevadas como as mais baixas. A grandeza e o
drama de Maa consistem em ser ele o
lugar de encontro de forças contraditórias em perpétuo movimento, que somente
uma evolução bem realizada no caminho da iniciação lhe permitirá ordenar, ao
longo das fases de sua vida.
As
forças múltiplas e variadas que se movem no universo dissimulado de Maa constituem os estados, ou pessoas
psíquicas, emanadas do espírito do próprio Maa.
O Espírito, princípio imaterial e imortal, não é um ser imaginário. Ele existe.
É ele que dá nascimento à Imaginação, faculdade bem real (não confundir com o
imaginário), graças à qual Maa
torna-se capaz de visões e de relacionamento com espíritos ou seres que habitam
fora dele ou fora do mundo visível. Para retomar uma expressão de meu amigo
Boubou Hama, ele "concretiza o abstrato", que assume imagem e forma.
O espírito de Maa permite-lhe
conhecer, compreender e reforçar sua atenção. Desenvolvendo essas aptidões, Maa torna-se capaz de julgar.
A
pessoa, assim, não está encerrada sobre si mesma, como uma caixa bem fechada.
Ela se abre em diversas direções, diversas dimensões, poderíamos dizer, ao
mesmo tempo interiores e exteriores. Os diversos seres, ou estados, que estão
nela, correspondem aos mundos que se escalonam entre o homem e seu Criador.
Eles estão em relação entre si e, através do homem, em relação com os mundos
exteriores. Antes de tudo, a pessoa está ligada a seus semelhantes. Não se
saberia concebê-la isolada ou independente. Assim como a vida é unidade, a
comunidade humana é uma, e interdependente.
Devido
a esse sentimento profundo de unidade da vida, a pessoa humana não é destacada
do mundo natural que a cerca. Mantém com ele relações de dependência e
equilíbrio, codificadas por regras de comportamento ensinadas pela doutrina
tradicional Bembaw-sira. Leis
precisas determinam a conduta do homem face a todos os seres que povoam a parte
vital da terra: minerais, vegetais e animais. Essas leis não podem ser
violadas, sob pena de provocarem, no seio do equilíbrio da natureza e das
forças que a sustentam, uma perturbação que se voltaria contra ele.
A
noção de unidade da vida é acompanhada pela noção fundamental de equilíbrio, de
troca e de interdependência. Maa, que
contém em si um elemento de todas as coisas existentes, é chamado a tornar-se o
fiador do equilíbrio do mundo exterior, e até mesmo do cosmos. Na medida em que
reintegra sua verdadeira natureza (a do Maa
primordial), o homem surge, no mundo, como o eixo convocado a preservar a
multiplicidade exterior de cair no caos.
Assim,
da boa ou má conduta dos reis ou chefes religiosos tradicionais, dependerá a
prosperidade do solo, o regime das chuvas, o equilíbrio das forças da natureza
etc.
Enquanto
o homem não tiver ordenado os mundos, as forças e as pessoas que estão nele,
ele é o Maa-nin. Ou seja, um tipo de
homúnculo, o homem ordinário, o homem não realizado. A tradição diz: Maa kakan ka sé i yere Ia naate a be to Maa
ni yala. Isto é: "Não podemos sair do estado de Maa-nin, para reintegrar o estado de Maa, se não formos o mestre de nós mesmos".
Para
concluir, chamarei a atenção sobre o fato de que a tradição se ocupa da pessoa
humana enquanto multiplicidade interior, inacabada no princípio, chamada a
ordenar-se e a unificar-se, como a buscar seu justo lugar no seio das unidades
mais vastas, que são a comunidade humana e o conjunto do cosmos.
Síntese
do universo e confluência das forças de vida, o homem é assim chamado a
tornar-se o ponto de equilíbrio onde poderão reunir-se, através dele, as
diversas dimensões das quais é portador. Então ele merecerá verdadeiramente o
nome de Maa, interlocutor de
Maa-Ngala, e fiador do equilíbrio da criação. ....
Notas:
1.Rotação de um membro
em torno de sua inserção no tronco, conforme um cone, do qual a articulação
forma o vértice
Tradução de Daniela
Moreau
(texto originalmente
editado em francês como capítulo do livro Aspects de la Civilization
Africaine, Paris, Présence Africaine, 197
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