quarta-feira, 10 de julho de 2013

A noção de pessoa entre os fula e os bambara.



Amadou Hampâté Bâ

Nas tradições fula e bambara dois termos servem para designar a pessoa. Para os fulas, são eles Neddo e Neddaaku. Para os bambaras, Maa e Maaya. As primeiras palavras significam "a Pessoa" e, as segundas, "as pessoas da pessoa".
A tradição ensina que existe antes Maa, a "Pessoa receptáculo", e depois Maaya, ou seja, os diversos aspectos de Maa contidos no Maa-receptáculo. Como diz a expressão bambara Maa ka Maaya ka ca a yere kono: "As pessoas da pessoa são múltiplas na pessoa". Encontramos exatamente a mesma noção entre os fulas.
A noção de pessoa é, portanto, a princípio, muito complexa. Implica uma multiplicidade interior de planos de existência concêntricos e superpostos (físicos, psíquicos e espirituais, em diferentes níveis), bem como uma dinâmica constante. A existência, que se inicia com a concepção, é precedida por uma pré-existência cósmica onde o homem residiria no reinado do amor e da harmonia, denominado Benke-so.
O nascimento de uma criança é considerado a prova palpável de que uma parcela da existência anônima se destacou e encarnou sobre nossa terra, para desempenhar uma missão. Uma importância muito particular será concedida à cerimônia do batismo, no curso da qual será dado um togo, ou nome, ao recém-nascido. O togo define o pequeno indivíduo. Ele situa-o na grande comunidade.
Três tipos de nascimento podem ocorrer. O aborto ou ji-bon, literalmente "água derramada", é considerado maléfico. O nascimento no prazo correto, chamado banngi, é um fato feliz não somente para os pais, mas para a aldeia, a sociedade e, num plano mais vasto, para a humanidade inteira. O nascimento após o prazo normal, chamado menkono ou nyanguan, literalmente "ventre de muito tempo", é o prelúdio ao nascimento de um ser extraordinário, o nyanguan, o proto-feiticeiro, que vem ao mundo imbuído de um poder potencial.
O desenvolvimento da pessoa vai realizar-se no ritmo dos grandes períodos de crescimento do corpo, a cada qual correspondendo um grau de iniciação. A iniciação tem por objetivo dar à pessoa física um poder moral e mental que condiciona e ajuda a realização perfeita e total do indivíduo. A tradição considera que a vida de um homem normal comporta duas grandes fases. Uma ascendente, até os sessenta e três anos, outra descendente, até os cento e vinte e seis. Por sua vez, cada uma dessas fases comporta três grandes seções de vinte e um anos, compostas de três períodos de sete anos. Cada seção de vinte e um anos marca um grau na iniciação. Cada período de sete anos marca um limiar na evolução da pessoa humana.
Assim, durante os sete primeiros anos de sua existência, quando a pessoa em formação requer o máximo de cuidados possível, a criança ficará intimamente unida a sua mãe, de quem ela dependerá em todos os aspectos de sua vida. De sete a catorze anos, ela se confronta com o meio exterior do qual recebe as influências, mas sente ainda a necessidade de referir-se a sua mãe, que permanece sendo seu critério. Dos quatorze aos vinte e um anos, está na escola da vida e de seus mestres, distanciando-se progressivamente da influência materna.
A idade de vinte e um anos marca o importante momento da circuncisão ritual e da iniciação às cerimônias dos deuses. Durante o segundo bloco de vinte e um anos, o homem vai elaborar os ensinamentos que recebeu no período anterior. Ele é então considerado como estando à escuta dos sábios, e se ocorre que lhe dêem a palavra, é por um favor ou para colocá-lo à prova, não por direito. Aos quarenta e três anos, entretanto, considera-se que atingiu virtualmente a maturidade e figura entre os mestres. Tendo o direito à palavra, ele tem que ensinar aos outros aquilo que aprendeu e sobre o que meditou durante os dois primeiros períodos de sua vida. Aos sessenta e três anos, término da grande fase ascendente, ele é considerado como tendo concluído sua vida ativa. Não é mais compelido a nenhuma obrigação, o que não o impede, eventualmente, de continuar a ensinar, se esta é sua vocação ou capacidade.
Em nenhum momento a pessoa humana é considerada como uma unidade monolítica, limitada a seu corpo físico, mas sim como um ser complexo, habitado por uma multiplicidade em movimento permanente. Não se trata, portanto, de um ser estático ou acabado. A pessoa humana, como a semente vegetal, é evolutiva a partir de um capital inicial que é seu próprio potencial. Este vai desenvolver-se ao longo de toda a fase ascendente de sua vida, em função do terreno e das circunstâncias encontradas. As forças liberadas por essa potencialidade estão em perpétuo movimento, assim como o próprio cosmos.
Para ilustrar esta idéia, lembremos brevemente o mito de criação do homem na tradição bambara:
Maa-Ngala (ou Deus-Mestre) autocriou-se. Depois criou vinte seres, que constituiriam o conjunto do universo. Mas ele apercebeu-se de que, dentre essas vinte primeiras criaturas, nenhuma estava apta a tornar-se seu kumanyon, isto é, seu interlocutor. Então, recolheu um pedaço de cada uma das vinte criaturas existentes. Misturou tudo, o que serviu para criar um vigésimo primeiro ser híbrido, o homem, ao qual deu o nome de maa, ou seja, o primeiro nome que compõe seu próprio nome divino.
Para conter maa, o ser todo-em-um, Maa-Ngala concebeu um corpo especial, vertical e simétrico, capaz de abarcar ao mesmo tempo um pouco de cada um dos seres existentes. Este corpo, chamado fari, simboliza um santuário onde todos os seres se encontram em circundução (1). É por isso que a tradição considera o corpo do homem como o mundo em miniatura, conforme a expressão Maa ye dinye merenin de ye, isto é: "O homem é o universo em miniatura".
O corpo inteiro corresponde a um simbolismo bem preciso. A cabeça, por exemplo, representa o estágio superior do ser, perfurada por sete grandes aberturas. Cada uma delas é a porta de entrada de um estado de ser, ou mundo, e é guardada por uma divindade. Cada porta dá acesso a uma nova porta interior, e esta, ao infinito. O rosto é considerado como a fachada principal da morada das pessoas profundas de Maa. Sinais exteriores permitem decifrar as características dessas pessoas. "Mostre-me seu rosto, e eu lhe direi a maneira de ser de suas pessoas interiores", diz o adágio. Cada ser interior corresponde a um mundo que gira em torno a um eixo ou ponto central.
O psiquismo do homem é, portanto, um conjunto complexo. Como um vasto oceano, sua parte conhecida não é nada comparada à ainda por conhecer. O ditado malinês é eloqüente a esse respeito: "Nunca se acaba de conhecer Maa..."
Por que esta complexidade?
De um lado, o nome divino do qual Maa é investido confere-lhe o espírito, e o faz participar da Força Suprema. Esta chama-o à sua vocação essencial: tornar-se o interlocutor de Maa-Ngala. De outro, os diversos elementos que estão nele o tornam depositário de todas as forças cósmicas, tanto as mais elevadas como as mais baixas. A grandeza e o drama de Maa consistem em ser ele o lugar de encontro de forças contraditórias em perpétuo movimento, que somente uma evolução bem realizada no caminho da iniciação lhe permitirá ordenar, ao longo das fases de sua vida.
As forças múltiplas e variadas que se movem no universo dissimulado de Maa constituem os estados, ou pessoas psíquicas, emanadas do espírito do próprio Maa. O Espírito, princípio imaterial e imortal, não é um ser imaginário. Ele existe. É ele que dá nascimento à Imaginação, faculdade bem real (não confundir com o imaginário), graças à qual Maa torna-se capaz de visões e de relacionamento com espíritos ou seres que habitam fora dele ou fora do mundo visível. Para retomar uma expressão de meu amigo Boubou Hama, ele "concretiza o abstrato", que assume imagem e forma. O espírito de Maa permite-lhe conhecer, compreender e reforçar sua atenção. Desenvolvendo essas aptidões, Maa torna-se capaz de julgar.
A pessoa, assim, não está encerrada sobre si mesma, como uma caixa bem fechada. Ela se abre em diversas direções, diversas dimensões, poderíamos dizer, ao mesmo tempo interiores e exteriores. Os diversos seres, ou estados, que estão nela, correspondem aos mundos que se escalonam entre o homem e seu Criador. Eles estão em relação entre si e, através do homem, em relação com os mundos exteriores. Antes de tudo, a pessoa está ligada a seus semelhantes. Não se saberia concebê-la isolada ou independente. Assim como a vida é unidade, a comunidade humana é uma, e interdependente.
Devido a esse sentimento profundo de unidade da vida, a pessoa humana não é destacada do mundo natural que a cerca. Mantém com ele relações de dependência e equilíbrio, codificadas por regras de comportamento ensinadas pela doutrina tradicional Bembaw-sira. Leis precisas determinam a conduta do homem face a todos os seres que povoam a parte vital da terra: minerais, vegetais e animais. Essas leis não podem ser violadas, sob pena de provocarem, no seio do equilíbrio da natureza e das forças que a sustentam, uma perturbação que se voltaria contra ele.
A noção de unidade da vida é acompanhada pela noção fundamental de equilíbrio, de troca e de interdependência. Maa, que contém em si um elemento de todas as coisas existentes, é chamado a tornar-se o fiador do equilíbrio do mundo exterior, e até mesmo do cosmos. Na medida em que reintegra sua verdadeira natureza (a do Maa primordial), o homem surge, no mundo, como o eixo convocado a preservar a multiplicidade exterior de cair no caos.
Assim, da boa ou má conduta dos reis ou chefes religiosos tradicionais, dependerá a prosperidade do solo, o regime das chuvas, o equilíbrio das forças da natureza etc.
Enquanto o homem não tiver ordenado os mundos, as forças e as pessoas que estão nele, ele é o Maa-nin. Ou seja, um tipo de homúnculo, o homem ordinário, o homem não realizado. A tradição diz: Maa kakan ka sé i yere Ia naate a be to Maa ni yala. Isto é: "Não podemos sair do estado de Maa-nin, para reintegrar o estado de Maa, se não formos o mestre de nós mesmos".
Para concluir, chamarei a atenção sobre o fato de que a tradição se ocupa da pessoa humana enquanto multiplicidade interior, inacabada no princípio, chamada a ordenar-se e a unificar-se, como a buscar seu justo lugar no seio das unidades mais vastas, que são a comunidade humana e o conjunto do cosmos.
Síntese do universo e confluência das forças de vida, o homem é assim chamado a tornar-se o ponto de equilíbrio onde poderão reunir-se, através dele, as diversas dimensões das quais é portador. Então ele merecerá verdadeiramente o nome de Maa, interlocutor de Maa-Ngala, e fiador do equilíbrio da criação. ....

Notas:
1.Rotação de um membro em torno de sua inserção no tronco, conforme um cone, do qual a articulação forma o vértice

Tradução de Daniela Moreau

(texto originalmente editado em francês como capítulo do livro Aspects de la Civilization Africaine, Paris, Présence Africaine, 197



Nenhum comentário:

Postar um comentário