quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Entre Segredos e Etnografias: O culto de Iyami nos estudos do Candomblé


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Se nos perguntarmos qual o significado do africano que insiste em permanecer no interior de diversas práticas culturais, veremos que só há um, que é o de primitivo. Ver resquícios africanos onde quer que seja nada mais é do que procurar identificar elementos primitivos no interior de uma sociedade civilizada, ou moderna ou capitalista (BIRMAN, 1980: 18).
A construção dos estudos sobre o Candomblé esteve marcada pela busca da África em seu interior. A pureza e a impureza são lidas através de uma linguagem simbólica construída através de relações sociais, que por sua vez, ao serem apropriadas pelo discurso escrito, traduzem suas distinções, em reduções interpretativas. A impureza do contexto brasileiro proporcionado pelo contato com as práticas indígenas, caboclas e angolas, pode ser entendida como um subproduto da organização nagô - construída como oficial - na medida em que ordenar pressupõe repelir os elementos não apropriados; fixando-se em um domínio simbólico (DOUGLAS, 1991).
Tal problemática é entendida, como iniciada pelos estudos de Nina Rodrigues e Artur Ramos no início do séc. XX, através do modelo litúrgico nagô elaborado como um padrão analítico de diferenciação entre religião e magia, associando a religião aos terreiros nagôs africanizados e a magia aos cultos misturados de Candomblés angolas e caboclos.
A antropóloga sergipana Beatriz Góis Dantas (1988) informa que essa distinção foi produto, da iniciativa intelectual de transplante fidedigno da organização religiosa africana para compreensão dos Candomblés. Através de continuidades com a África, a intelectual afirma que a academia foi responsável pela nagoização. Desenvolvendo quadros associativos, a religião estaria relacionada aos terreiros nagôs puros em contraste com a magia/feitiçaria dos Bantos (DANTAS, 1988:125).
A africanidade eleita como referencial na construção do modelo binário do Candomblé, é um fator diferencial, um capital simbólico, podendo ser verificada na contemporaneidade como recurso utilizado por Candomblés antigos para se distinguir dos de fundação recente. Certamente Beatriz Dantas, merece ressalvas quanto ao seu posicionamento unilateral de explicação do privilégio nagô na escrita.
Penso a nagoização como uma experiência tangível, para além de um movimento discursivo nos estudos do Candomblé. Os processos de identificação foram construídos no próprio devir dos Candomblés em Salvador, com discursos próprios de distinção, sendo a África, um elemento entre tantos, utilizado para a legitimação de um circuito de Candomblés em detrimento dos demais.
A produção científica dos intelectuais brasileiros e não brasileiros sobre os Candomblés em Salvador são construções fragmentadas de memórias e experiências dos terreiros analisados. A autoridade da escrita contribui analiticamente, como mais um aspecto para a interpretação de como os segredos de Iyami foram abordados em seus relatos. Estas obras exercem certa influência sobre os iniciados, que ali descobrem, por exemplo, características míticas de espíritos que antes desconheciam (CAPONE, 1999: 82).
Os lugares de escrita ocupados por Nina Rodrigues (1977, 2005), Edson Carneiro (1961), Deoscóredes dos Santos (1962), Pierre Verger (1992) e Juana Elbein (1986) são importantes referências para a compreensão das distintas situações do culto a Iyami, presente nos estudos sobre o Candomblé baiano. A escrita sobre o culto de Iyami envolve limites de conhecimentos e restrições em sua observação, a decadência por Edson Carneiro e a emergência por Deoscóredes dos Santos, demonstra como esses processos vividos na realidade religiosa dos Candomblés são expressos no discurso escrito, interferidos por níveis de relacionamento antropológico e iniciático, definidos como duas metades de um obí(semente africana de cunho litúrgico).
Por Paul Johnson (2002), o processo de retenção e aquisição do conhecimento é identificado como secretismo, garantido pela sociedade mais ampla, que não tem acesso a essas sabedorias e legitima o longo complexo da iniciação, através do controle dos conhecimentos entre os pares. Se pensarmos essa bibliografia selecionada, através da perspectiva de Johnson (2002), os segredos do culto de Iyami foram revelados através de suas etnografias, pois, ao descreverem os processos rituais e as cerimônias privadas, contribuiu para transmissões de conhecimentos destituídos de regras/rituais internas, revelando seus conhecimentos.
O segredo é um fenômeno social cujo valor deriva da sua circulação dentro de comunidades delimitadas, como as hierarquias rituais do Candomblé, mas, diferentemente da epistemologia ocidental que o reduz a enigma e a resolução, entre as comunidades de santo, ele é concebido como awô (fundamento, segredo), manifestando a partir de sinais diacríticos visualizados em rituais públicos ou internos, sem perder o mistério que o circula.
Os conhecimentos descritos sobre as versões do culto a Iyami na bibliografia selecionada, não poderá ser compreendida como revelação dos mistérios das mães ancestrais, já que o segredo no Candomblé, de forma particularizada, possui uma dinâmica de linguagem composta de inúmeros mecanismos comunicacionais que inibem a sua compreensão, requerendo conhecimento cosmológico situacional para que os eventos sejam passíveis de interpretação (APTER, 1992).
O médico, o cientista e Iyami Ajé Chálugá
Nina Rodrigues (1862-1906) em sua escrita demonstra ser um leitor interessado nas produções acadêmicas desenvolvidas na Europa Ocidental, particularmente no eixo de produções acadêmicas entre França e Inglaterra sobre grupos sociais na África Ocidental, no início do processo colonialista. O Animismo Fetichista dos Negros Bahianos foi publicado na Revista Brasileira no Rio de Janeiro em 1896 e traduzido para francês em 1900, considerada como uma elegante monografia por Marcel Mauss[2] em 1902 (FERRETI, 2006:58). Os Africanos no Brasil, publicado em 1932 foi deixado na gráfica brasileira antes de Nina Rodrigues viajar e falecer na França em 1906.
Almejava a inserção de sua obra no circuito internacional das pesquisas acadêmicas, que no contexto correspondia ao período de hegemonia do evolucionismo no pensamento antropológico. A escrita monogênica dos missionários na África Ocidental era alvo de críticas científicas. Rodrigues acreditava menos na capacidade intencional dos missionários conferirem erros as suas interpretações, daqueles induzidos através dos próprios informantes africanos pela natural tendência do seu espírito e educação (RODRIGUES, 1977:217).
Nicolau Parés (2006) informa que a leitura de Ellis (1894) por Nina Rodrigues, foi possivelmente favorecida pela intervenção de Martiniano do Bonfim (PARÉS, 2006: 27). Não será possível confirmar tal relação, mas, é certo que as publicações do administrador Ellis chegaram às mãos de Nina, inferindo em sua produção características particulares. Nina Rodrigues influenciado diretamente pela obra de Ellis e pelo pensamento de finais do séc. XIX mapeou as divindades yorubás cultuadas pelos terreiros fetichistas da Bahia e atribuiu definições sociais a sua presença nesse sagrado quadro sistemático.
A obra The yoruba-speaking people of the slave coast of Africa (ELLIS, 1894) está repleta de preconcepções baseadas no padrão de moral do período vitoriano na Inglaterra. Nesse período diferentes formas de materialismos começavam a surgir no cenário acadêmico europeu; o materialista positivista, o evolucionista, o utilitarista, o dialético em constante diálogo com uma onda de puritanismo de caráter religioso, delineando o comportamento social marcado por dogmatismos e radicalismos.
O coronel Ellis emprenha-se em mostrar que Olorum não passa de uma personificação do firmamento com funções puramente meteóricas a quem ele nega todo e qualquer sentido, noção ou idéia de um ser onipresente (RODRIGUES, 1977:217).
Entre muitos elogios, Rodrigues nos indica a proposta de escrita do administrador inglês. O primeiro cientista a invocar em favor da elevação da concepção religiosa dos nagôs, através de um brilhante estudo comparativo das crenças religiosas dos povos da Costa dos Escravos (RODRIGUES, 1977: 217). O discurso relaciona-se a uma compreensão mais ampla do panorama de produções escritas no Golfo do Benin, distinguindo Ellis das demais escritas missionárias, que poderiam ser caracterizadas como uma sobrevivência da revelação divina do Paraíso (RODRIGUES, 1977: 217).
O nosso estudo teve de inspirar-se pura e exclusivamente na observação direta e pessoal do fenômeno estudado. E é com satisfação que o encontramos agora quase todo confirmado pelas observações daquele cientista. Em muitos pontos se corroboram nesta observação independente deduções e reflexões que sempre veio acordo os mesmos fatos nos surgiram a ele em África e a mim no Brasil. No entanto, são os trabalhos do coronel Ellis que nos habilitam a discriminar as partes de que se compuseram no Brasil as práticas fetichista e, ao mesmo tempo, a julgar das modificações que aqui têm elas experimentado (Rodrigues, 1977: 216)
As cosmologias e comportamentos tendenciaram Rodrigues a entender os princípios da originalidade africana em detrimento das contaminações da nova realidade social do negro no Brasil. Para tanto, baseado no modelo exposto por Elllis, o panteão dos orixás foi reproduzido. Fruto de um estupro mítico do ventre de Yemanjá nasceu Dadá, Xangô, Ogum, Olokun, Oloxá, Oyá, Oxum, Otá, Oko, Oxossi, Okê, Ajê-xalagá, Xaponã, Orun, Oxu, de seus seios monstruosos nasceram dois rios e uma lagoa. Nina indica problemas no mito por ser reducionista, como também motivado pelas informações pessoais transmitidas por africanos que contestaram ou mesmo ignoraram essa versão mítica.
Ajê Xalagá e Agê-Chálugá são nomes para designar a mesma divindade, trata-se de diferentes ortografias empregadas no processo de transcrição. Essa divindade foi descrita como orixá da medicina, da saúde, riqueza e dos mercados, muito estimados pelos nagôs (RODRIGUES, 1977: 230; RAMOS, 2001). Nina Rodrigues desconsiderou o contexto de feitiçaria que Ellis situou essa divindade. O termo ajé (feiticeira) não aparece nas duas obras citadas de Nina Rodrigues, sendo silenciada e desconectada das características atribuídas a Ajé Chálugá no interior do Gantois.
Outra divindade cultuada no Brasil como Iyami recebe o nome deApaoká, a árvore. Ellis teceu consideráveis informações sobre o seu poder e culto entre os yorubás. Diferentemente da divindade masculina Iroko, a gameleira (fícus religiosa), descrito como objeto de culto fervoroso e sob o título de planta-deus (RODRIGUES, 2005:36), Apaoká, não é citada por Nina Rodrigues como existente na cosmogonia no Gantois e nos outros terreiros observados. Há um misto de segredo e poderes mágicos em sua escrita, quando o assunto é o inanimado e o culto aos vegetais. Descreve que nos arbustos que cercam o tronco muita gente tem visto alta noite bruxulear fraca luz que extingue pela madrugada (RODRIGUES, 2005:37).
Para Nina Rodrigues as árvores são antes altares ou residências temporárias dos deuses (...) é bem possível que a árvore seja a um tempo uma e outra coisa (2005:39), possui acepção dupla, a árvore pode ser um fetiche animado ou representar apenas moradia ou altar. Pontua que os conhecimentos sobre a fitolatria estavam em franco processo de desaparecimento com a morte dos últimos africanos na Bahia, pois, não fazia parte de seus interesses transmitirem esses conhecimentos específicos e formar discípulos.
Os mitos e o pensamento mágico-religioso do culto aos orixás têm na simbologia da árvore um de seus temas recorrentes. Na cosmogonia, a árvore, surge como o princípio da conexão entre o mundo sobrenatural e o mundo material. As árvores estão associadas à ìgbá ìwà ñû (o princípio da criação), ou seja, em uma época em que o homem adorava árvores. Conforme o mito de fundação a árvore ao pé da qual o caçador[3] encontrou mel, e em cujo redor desenvolveu-se a cidade de Ketu (LÉPINE, 1978:252).
Os estudos folclóricos surgidos na segunda metade do século XIX estavam interessados na sobrevivência dos elementos inadaptados e nas relíquias de culturas quase desaparecidas, objetivando através do modelo comparativo a continuidade cultural. Para o antropólogo Tylor o que poderia ser popularmente visto como mais indefinido e incontrolável que os produtos da imaginação revelados em mitos e fábulas? (TYLOR, 1871:90).
Dentro desse questionamento, Nina Rodrigues adentra nos estudos sobre o folclore (RODRIGUES, 1977:183). Afirma o médico e pesquisador maranhense que não é possível identificar se foram os negros que trouxeram de suas terras respectivas, na África, ou se aprenderam uns dos outros no Brasil (RODRIGUES, 1977: 213).
Entre alguns contos transcritos na narrativa de Nina Rodrigues, dois se tornam pertinentes. O primeiro conto intitulado Por que, das mulheres, umas têm os peitos grandes e outras pequenos (pessoal) (RODRIGUES, 1977: 205) aborda a imagem das mulheres-monstros, associando a condição feminina aos aspectos anti-sociais que compõe a sociedade mais ampla, designando relações de poder e papéis sociais particulares. O segundo intitulado A feiticeira que tirava os olhos e os braços (pessoal) (RODRIGUES, 1977: 207) abarca a antropofagia das mulheres velhas, a inexistência de aspectos sociais e a presença de aspectos negativos e malignos na imagem das mulheres segregadas da vida social.
Ao pensarmos a obra de Nina Rodrigues em relação à produzida por Ellis, verificamos similaridades na construção das identidades relacionadas ao gênero feminino, pois tanto no contexto do sudoeste nigeriano quanto entre os grupos africanos na Bahia, a imagem antropozoomorfica e antropofágica dessas entidades estão presentes, mesmo que circunscritas pelo âmbito dos estudos do maravilhoso.
A feitiçaria foi identificada como manifestação de um poder físico anti-social oriundo de pessoas situadas nas regiões não estruturadas da sociedade. Nina Rodrigues informa que no final do séc. XIX que o feiticeiro, o adivinho, o sacerdote, o médico e o sábio começaram por se confundir num mesmo indivíduo (RODRIGUES, 2005:64), pois, para o negro tudo pode ser enfeitiçado (RODRIGUES, 2005:60). A feitiçaria apoiada na interpretação de Nina Rodrigues ultrapassaria a categoria de instituição social, ampliada e integrada na forma de se relacionar socialmente com as pessoas e os objetos em um discurso particularizado.
A decadência e a descrição densa de Iyami Apaoká
Edson Carneiro (1912-1972) foi um leitor e crítico da obra de Nina Rodrigues. Formado em direito, trabalhava como jornalista e era muito ativo nas práticas etnográficas em terreiros Ketu de Salvador. Sua produção escrita é o resultado de seu posicionamento político. Para ele, a produção do discurso escrito tanto jornalístico quanto etnográfico oferecia uma oportunidade para reconstruir a opinião pública sobre o Candomblé, de uma maneira mais favorável (CASTILLO, 2008:117). O que tendia a confundir devido à nova realidade dos africanos no Brasil, como pontuou Nina Rodrigues se tornou para Carneiro, alvo de distinções; o feiticeiro não é o sacerdote.
Essa tentativa de separação entre sacerdote e feiticeiro remete ao esforço desenvolvido pelos intelectuais no sentido de mostrar o Candomblé como verdadeira religião, por oposição à magia, particularmente à magia negra, pois se reconhecia que a feitiçaria era ilegal no Brasil e também que não havia lugar para ela na atmosfera amável do Candomblé da Bahia. (LANDES, 1967: 233).
Em meados dos anos 40 Edson Carneiro em Candomblés da Bahia(1948) afirmava que o culto das Iyabás, como Apó Oká, Yamaçã Yaamalê (mãe de Xangô), Euá e Ônilé, estão em franco processo de desaparecimento (CARNEIRO, 1961:80). Diferentemente na década de sessenta Deoscóredes dos Santos emHistória de um Terreiro Nagô, verificou algo distinto do apresentado por Carneiro duas décadas atrás. Deoscóredes dos Santos, o Mestre Didi, descreve o culto de Apaoká como integrante do calendário religioso do Ilê Axé Opô Afonjá, formado por ritos e práticas particulares. Os assentamentos das Iyami permanecem junto a grandes árvores como a jaqueira e, geralmente são enterradas, pois, a terra representa o seu ventre (SANTOS, 1986).
Todos os anos, após as festas de Oxun, realiza-se a segunda-feira de Rokô e Apaoká, ainda dentro do ciclo de festas de Oxalá. Rokô é simbolizado por uma gameleira e Apaoká uma jaqueira, ambas as árvores sagradas. É oferecida aos dois orixás certa quantidade de obi, orobô, galos e galinhas para a matança. (...) Ao amanhecer dessa segunda-feira, depois do último domingo das festas de Oxun, faz-se a limpeza e o asseio nos pés das duas árvores. Depois de tudo bem limpo, do osé feito com a mudança das águas de todas as vasilhas que ficam entre as raízes do Apaoká e do Rokô, a pessoa encarregada de tomar conta das oferendas recebem das mãos da Iyalorixá todos os ingredientes necessários àquela obrigação. Encaminham-se então todos para as árvores sagradas, amarram em cada uma delas um grande ojá branco e colocam ali por perto todos os ingredientes da obrigação. Os festejos começam com a matança. (SANTOS, 1962:71-72)
A descrição densa do culto a Apaoká realizada por Mestre Didi em 1962 foi legitimada por Mãe Senhora, sua mãe genética e Iyalorixá do Opô Afonjá entre 1940 a 1967, e pelo casamento com a antropóloga Juana Elbein, que permitiu o seu contato com a escrita acadêmica de forma mais sistemática. Há que se destacar que Mãe Senhora, Maria Bibiana do Espírito Santo (1890-1967) era consagrada a Oxum Miwá e possuía o título de Iya Egbé. Título que representa o princípio e a liderança feminina na comunidade, como também dos poderes das ancestrais femininas nas decisões sociais, além de pertencer ao quadro sacerdotal do culto a Baba Egum, onde Mestre Didi possui o cargo de Alapini.
Iyá mi agbá ijexá orá iyêiyê Eniti ayabá teni bu omi ô
Iyá mi kê sóró kê mãmá só
bibá égun ayabá ô mo ô
Ebé ri odô ni kôdô
Ora iyêiyê ô!
(SANTOS, 1962:73-74)
Em uma cantiga a Oxum reproduzida por Mestre Didi, termos e definições como Iyá mi Agbá (minha mãe mais velha); ayabá (termo honorífico dado às divindades femininas na região yorubá) e iyami (minha mãe) estão relacionadas a Oxum. Cânticos e rezas direcionadas a outras divindades femininas, como Yemanjá, Oba, Oyá, Nanã, demonstram tais associações. As aproximações do culto as Iyabás e o culto de Iyami podem ser sustentadas, pela condição feminina ancestral que precede o fenômeno da variação de termos e nomes para essas divindades.
O pouso do pássaro na escrita
Três anos após a publicação, uma importante narrativa sobre Iyami se insere nesse cenário pelo fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger (1902-1996) intitulada Grandeur et decadence du culte de Ìyámi Òsòròngà
(ma mére sorcière) chez les yorouba publicada em Paris no ano de 1965[4], baseada em histórias de tradição oral. Essa narrativa é resultante das pesquisas realizadas em Oshogbô na Nigéria, entre os anos 1963 e 1966 como parte de sua pesquisa de doutoramento, defendida na Sorbonne no ano de 1966 (LUHNING, 1999).
A compreensão de Iyami no interior do Candomblé por Pierre Verger é construída através de Iyami Oxorongá, o pássaro sanguinário que habita a copa das árvores e se alimenta de intestinos humanos. Localizado em um ritual muito bem preservado, Iyami Oxorongá está presente em uma cerimônia especial antes das danças públicas, denominado padê· (VERGER, 1992; SANTOS, 1986; LAWAL, 1996; CUNHA, 1984). Nestas ocasiões, muito freqüentes, orações são feitas sucessivamente a Exu, o mensageiro dos orixás, aos esa, os antigos africanos que instituíram os cultos iorubas na Bahia, aos diversos orixás dos cultos em questão, e, enfim, Iyami Osorongá é saudada com as mesmas palavras usadas na África (VERGER, 1992).
Para Juana Elbein dos Santos (1986) a imagem do pássaro se identifica com a do peixe, pois, as penas e as escamas são visualizadas como pedaços do corpo materno, representando o símbolo da fecundidade e do poder da gestação de Iyami. Rego (1980) informa que a vagina, cultuada como o órgão sagrado, a Iya Mapô, cultuada na Bahia como uma qualidade de Iyami (REGO, 1980:270). Referente à Iya Mapô, Makinde (2004), a relaciona com todas as divindades a partir de sua ligação com a água da vagina (liquido amniótico), considerada como o local que abriga o segredo do poder da mulher e por onde a criança emerge. (MAKINDE, 2004:169)
Para Monique Augras (2000) nada pode aquecer o velho pássaro, pois, ele mesmo é fonte de calor, e assim, o medo de ficar preso para sempre dentro do corpo materno é claramente assumido através do órgão sexual feminino, representando o limite, uma barreira, simbolizando a tampa da cabaça, fechando o ventre da mulher, pois, que cilada é essa, se não a própria vagina aterradora?(AUGRAS, 2000: 18-19; LAWAL, 1996).
Como persistência de uma memória que configura as Iyami em mães antropofágicas (REGO, 1980) é constituída a relação entre Iyami e os órgãos sexuais. A uma história do odu osá meji que conta como Iya Mapô, a mãe da vagina, recorreu aos bons ofícios de Iyami Osorongá, para colocar o sexo no devido lugar na mulher. Várias partes do corpo tinham sido experimentadas, mas, todas se revelam inconveniente. Foi Exu que mediante ebó, com duas bananas e um pote, acertou o lugar definitivo. Assim, para a definição do lugar que os órgãos sexuais irão assumir no corpo é realizado um acordo mítico entre o princípio feminino e masculino (REGO, 1980:19).
A antropóloga Juana Elbein dos Santos confere a sua narrativa o discurso de dentro para fora (1986:16), justificada pela perspectiva interna que seu discurso escrito esteve respaldado. Para tanto, em sua tese de doutoramento defendido na França em 1970; Os nagô e a morte, hoje uma referência nos estudos do Candomblé (castillo, 2008: 149), afirma que o aumento do interesse por Iyami e a crescente publicação de pesquisadores estrangeiros, propiciou a mudança do significado de Iyami de boa mãe ao sentido mais pejorativo de bruxa (SANTOS, 1986:113),
O corpus histórico analisado abordou unilateralmente os significados da presença e culto de Iyami nos Candomblés baianos. A antropóloga define as abordagens de Iyami como limitadas e associadas ao estudo da bruxaria (...) estabelecido em um dito pacto vergonhoso entre o sacerdote e a bruxa, tendo seu símbolo total confundido com uma representação persecutória e castradora (SANTOS, 1986: 113-114).
Informa que a dicotomia do símbolo Iya-mí fez com que o estudo dos ancestrais femininos fosse separado da religião Nagô, limitado e associado ao estudo da bruxaria (ibid, 1986:114). A separação de Iyami aos Orixás por esse pensamento é conseqüente de um processo intencional e não terminológico, pois, conceitos como àse, iwà, orisà, òrun, odúiya-mi, podem ser analisados, mas, não traduzidos (ibid, 1986: 22).
Esse posicionamento dicotômico é direcionado à pesquisa de Pierre Verger, gerando um contraditório artigo Pierre Verger e os resíduos coloniais (1982), pois, muitas das críticas inferidas a Verger deveriam ser direcionadas a sua própria escrita, já que é baseada em categorias sistêmicas e universais, gerando uma confusão intencional dos contextos citados. O leitor se perde entre as descrições do contexto africano e a etnografia no Ilê Axé Opô Afonjá.
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Fig. 1 - Assento de Iyami Oxorongá - Olga de Alaketu. Aquarela de Carybé (1980: 79)
Em entrevista a pesquisadora Teresinha Bernardo, a Iyalorixá Olga do Alaketu comenta sobre o assentamento de Apaoká. O assentamento foi registrado por Carybé em (1980: 79) sob o nome de Oxorongá. A doçura e o afeto estão presentes no tratamento da Iyalorixá para com as divindades nomeadas deSanta da Barriga, diferentemente do povo de santo que tem medo de Ia mi (...). Tanto é que a sacerdotisa tem Iapaocá assentada em seu terreiro e (...) está relacionada com os ovários, o útero, a gravidez, o aborto e todos os demais aspectos que constituem a singularidade feminina (BERNADO, 2003: 131).
O terreiro do Alaketu em relação ao Gantois e o Opô Afonjá demonstrou, certa falta de agilidade em atrair a atenção dos produtores do discurso etnográfico resultando em uma relativa marginalização etnográfica (CASTILLO, 2008: 128). É interessante pensar na relativa marginalização do terreiro e na exposição material do culto a Iyami. Considerado tanto pela etnografia quanto pelo povo de santo como um dos mais secretos da liturgia afro-religiosa. No entanto, o medo das Iyami pelo povo de santo não pode ser retirado da fala positiva de Mãe Olga, pois, a superposição de categorias é fruto do discurso escrito, já que na realidade experienciada dos Candomblés, os orixás cultuados são constituídos como todos completos e compartilhados de uma mesma natureza sagrada.
Considerações finais
Os segredos que envolvem o culto de Iyami expressam a interação entre a racionalidade e a magia desenvolvida pela postura etnográfica. O modo particular como se deu esse imbricamento possibilita perceber que as religiões mágicas não se opõem como um todo, às práticas racionais exigidas pelo mundo moderno. O medo e o afeto coexistem, o respeito e o caos dialogam na postura do povo de santo para com as Iyami, independente do nome assumido, mas, dependente da situação que lhe é presenciada.
São muitas as formas de cultuá-las e de percebê-las. Sua presença nos mitos de criação e nas dinâmicas sociais dos Candomblés, a que estão presentes, confere as Iyami uma complexidade mítica que rompe o tempo e o espaço, sendo atualizadas no cotidiano dos Candomblés através dos sentimentos e posturas prestadas as ancestrais.
Baseada em citações retalhadas e identificações descontextualizadas, a trajetória etnohistoriográfica do culto a Iyami em Salvador, realizada por meio do material escrito exposto permitiu questionar as lacunas e orientar-me com os avanços de suas escritas, que certamente ampliou o trivial e reduziu potenciais antropológicos.

por Luciana de Castro Nunes Novaes(1)
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VERGER, Pierre Fatumbi. Esplendor e decadência do culto de Ìyàmi Osorongá, minha mãe a feiticeira, entre os Iorubas. ARTIGOS. TOMO I. São Paulo: Corrupio, 1992[1965].


[1] Licenciada e Bacharel em História (UCSAL). Mestranda em Estudos Étnicos e Africanos (PÓS-AFRO/UFBA) . Mestranda em Arqueologia (PROARQ/UFS)
[2] MAUSS, Marcel. Nina Rodrigues, L´animisme fetichiste des nègres de Bahia. In: L´Année Sociologique 1900-1901. Paris, Librairie Felix Alcan, 1902.
[3] Ver mito: Oxossi mata o pássaro das feiticeiras; Ode respeita proibição ritual e morre. Oshosi, que também é um dos que vieram de Iemanjá, é o patrono dos caçadores. Ele mora na floresta, e leva o jogo para os laços e armadilhas de seus fiéis seguidores, a quem ele também protege os animais de rapina. (ELLIS, 1894:68)
[4] Mais tarde publicado duas vezes em português, uma vez excluindo os itans (1992) e a outra com estes (1994).


terça-feira, 10 de setembro de 2013


A RELIGIÃO DA DIÁSPORA: SEUS SÍMBOLOS, SEUS TEMPOS
Por: Teresinha Bernardo
Caminhando através do tempo pelo Brasil, à procura de cultos afro-brasileiros, encontro, no final do século XVII, na Bahia, por intermédio da poesia de Gregório de Mattos, a presença de manifestações religiosas em que a participação do negro era visível:
Nos Calundus e Feitiços
Ventura dizem que buscam
O que sei é que em tais danças
Satanás anda metido
Continuando a andar, chego a Minas Gerais, mais precisamente no Arraial de Paracatu, onde assisto à Dança da Tunda, culto praticado por mulheres forras ou fugitivas, que festejavam, entre outros santos, Cosme e Damião em setembro, dançavam ao som dos atabaques, entravam em transe.
O autor ao pesquisar na Torre do Tombo - Lisboa -, encontrou documentos da Inquisição, que relata a história das mulheres de Paracatu, que ao serem consideradas feiticeiras foram mortas.
Neste caminhar, ouço a preocupação da Igreja Católica em função da persistência de práticas religiosas africanistas em meio aos negros, inclusive entre os batizados.
Percebo ainda que, durante o século XVIII, os cultos religiosos negros continuam a existir desorganizadamente.
É importante lembrar que neste momento o regime escravocrata encontra-se plenamente estabelecido no solo brasileiro, mas também não deve ser esquecido, que, durante todo o período escravocrata os quilombos existiram: onde houve escravidão houve Quilombo.
A associação da casa de Candomblé com Quilombo não deve surpreender-nos. Diversos autores afirmam que as seitas desempenharam papel constante nas insurreições negras.
Assim, parece que, até o século XIX, o culto aos orixás foi realizado nas senzalas, nos quilombos. Era subterrâneo, repleto de silêncio e não ditos, não sendo visível para a sociedade branca.
Neste mesmo século o meu olhar se dirige aos espaços diferenciados: em Pernambuco, Alagoas e Sergipe encontro Xangô; na Bahia e Rio de Janeiro, o Candomblé; no Maranhão, o Tambor de Minas.
Em São Paulo, porém, durante todo o século XIX até meados do século XX, os cultos afro-brasileiros permaneceram nas sombras.
Somente através do recurso à memória foi possível captar:
... a existência de práticas religiosas afro-brasileiras que se criavam e se reproduziam entre os negros em São Paulo e que era denominado feitiço. Este parece ter sido sempre praticado por mulheres: as feiticeiras.
Os produtos que faziam parte do despacho, entrega ou oferenda eram farofas, garrafas de cachaça, panos coloridos e certos tipos de animais. Esta prática religiosa era realizada na casa das feiticeiras que moravam em lugares distantes, como Casa Verde e Freguesia do Ó, com poucos habitantes, na maioria negros.
Se, através do movimento da memória é possível captar apenas fragmentos, em relação aos cultos praticados pelos negros em São Paulo, a situação torna-se mais complexa ainda, à medida que, no espaço paulista, tanto o negro como sua cultura pareciam sofrer ações discriminatórias mais fortes do que em outros estados brasileiros.
A esse respeito, Michael Polak, ao analisar a memória subterrânea própria dos grupos discriminados, afirma: Existem na memória de uns e de outros zonas de sombras, silêncios e não-ditos.
Entre a Dança da Tunda, o Xangô, o Candomblé, o Feitiço e o Tambor de Minas existem diferenças: umas se constituíram como expressões religiosas, antes que outras, existindo, também, diferenciações internas tanto em termos de seus rituais como dos seus mitos. No entanto, mais do que isto, o que importa salientar é que as expressões religiosas afro-brasileiras se constituíram a partir da diáspora africana.
Não pretendo, aqui, discorrer sobre as diversas expressões religiosas afro-brasileiras, mas dirigir minhas reflexões para o Candomblé. Desta forma, esta reflexão insere-se no movimento de ir ao passado e voltar ao presente à procura dos significados do Candomblé na sua origem e na contemporaneidade, especialmente na vida metropolitana.
Este movimento que tentarei realizar através do tempo torna-se fundamental porque o Candomblé é uma religião viva. Dessa maneira, deve ser pensado em sua dinâmica, relacionado com as práticas e representações sociais nas quais esteve inserido no passado e encontra-se reinventado no presente.
Ao retornar ao passado africano, encontramos uma diversidade incontável de grupos étnicos. A esse respeito, Roger Bastide se indaga:
A África enviou ao Brasil criadores e agricultores, homens da floresta e da savana, portadores de civilizações totêmicas matrilineares e patrilineares, pretos conhecendo vastos reinados, outros não tendo mais que uma organização tribal, negros islamizados e outros animistas, africanos possuidores de sistemas religiosos politeístas e outros sobretudo adoradores de ancestrais de linhagens. Como essas diversas civilizações não se destruíram mutuamente pelo simples contato? .a ed., 1985, p. 67.
Só é possível responder ao questionamento de Bastide por intermédio de hipóteses, uma vez que o contato, no Brasil, entre estes diferentes grupos, durante a escravidão, foi pouco estudado.
Por um lado, pode ser que os negros, ao saírem da África, indiferentemente ao grupo étnico a que pertenciam, experimentaram o mesmo tipo de sentimento por não terem a mínima possibilidade de voltar à Terra-Mãe.
A respeito da Terra-Mãe , Morin diz:
A Terra-Mãe como metáfora só virá a florescer em toda sua extensão nas civilizações agrárias, já históricas: o trabalhador-Anteu colhe a sua força no contacto com a terra, sua matriz e horizonte, simbolizada na grande Deusa-mãe, Deméter cósmica onde jazem seus antepassados, onde ele se julga fixado desde sempre. Com essa fixação ao solo virá a impor-se à magia da terra natal; a que nos faz renascer porque é nossa mãe...
É bem conhecida a dor do banido grego ou romano, que não só não terá ninguém que lhe continue o culto depois de morto como ficará separado para sempre da Terra-Mãe. A ed., p. 114-115.
A África contém para os escravos no Brasil todas as características da Terra-Mãe de que fala Morin. Era dela que o africano retirava o alimento com os seus diferentes significados para a totalidade de sua vida: é nela que se encontram enterrados os seus antepassados, como Deméter, a deusa grega que representa os campos onde cresce o cereal, a fertilidade e a fartura. A África para os negros que aqui aportaram possui os mesmos significados. Mas a marca mais forte é o amor pela filha Core, também chamada Perséfone.
Cada uma ama a outra o que ama em si mesma e cada uma ama na outra aquilo que lhe falta. Perséfone ama em Deméter seu modelo; Deméter em Perséfone, o seu recomeçar. A ed., 1987, p. 58.
Assim, a continuidade é revelada. Continuidade está tão importante para o mundo africano, por isto mesmo há a valorização do culto aos ancestrais.
No entanto, não somente este sofrimento intenso é experimentado pelo negro ao ser banido da Terra-Mãe. Há ainda, o encontro de um inimigo comum: o sistema escravagista que faz com que diferentes etnias, ao entrarem em contato, se unam, em vez de se destruírem como receava Bastide. Mais do que isto, algumas delas constituíram aqui o Candomblé.
Assim, para esses grupos étnicos que criaram esta religião, o banimento da África, a própria escravidão não significou uma ruptura com a Terra-mãe; pelo contrário, representou a continuidade. Em outras palavras, esta expressão religiosa reproduziu os principais elementos elencados por Morin, ao discutir esta questão.
Neste aspecto, torna-se importante sublinhar a diferenciação realizada por Jung entre Pátria e Terra: A pátria supõe limite, isto é, localização determinada, mas o chão é solo materno em repouso e capaz de frutificar.
É no solo brasileiro que frutificara, através do Candomblé, a Terra-Mãe para os africanos e seus descendentes.
Neste sentido, parafraseio Benjamin:
Não se entenderia a religião, nem em sua realidade nem em seu conceito, se quiséssemos explicá-la isoladamente, a religião não é nenhum Robinson Crusoé. A religião não constitui nenhuma comunidade separada, mas é parte do povo que a criou. Por isto existe um diálogo mudo baseado em símbolos entre a religião e o povo .a ed., pp. 247-249.
A história do negro na África e no Brasil explica, em parte, a constituição do Candomblé. Deve-se, porém, penetrar além da história para perceber o diálogo mudo entre a religião e o seu povo.
Voltando ao passado africano, encontramos os povos que habitavam a Costa Ocidental da África onde estão localizadas, atualmente, as repúblicas da Nigéria e Benin. Os diferentes grupos étnicos cultuavam cada um a sua divindade, sendo o homem o responsável pelo ritual.
No Brasil, devido ao contato que existiu entre estas diferentes etnias, o Candomblé cultua vários orixás e a sacerdotisa central é a mulher.
Esta troca do poder religioso entre os sexos está em parte referida à escravidão que esfacelou a família negra africana e à própria Lei do Ventre-Livre, promulgada em 1870, que considerava como família a mulher e seus filhos. Em termos de alforria, a mulher negra foi beneficiada antes e em maiores proporções que os homens considerados economicamente essenciais na produção. Assim, as mulheres negras puderam participar antes que os homens do mercado de trabalho livre, ocupando pequenas brechas que este mercado oferecia, sendo amas, doceiras, lavadeiras. Ao homem negro as oportunidades de trabalho apresentaram-se menores se comparadas às de suas parceiras.
Desta forma, as mulheres negras passam a ocupar um papel de destaque no meio do seu povo, tornando-se chefes de suas famílias e chefes da família-de-Santo também.
No entanto, se o processo histórico explica plenamente o fato de a mulher negra chefiar a sua família, este mesmo processo não explicita a contento o fenômeno da posição da mulher no ápice da hierarquia religiosa.
Desvenda-se, plenamente, as causas da troca do poder religioso entre os sexos na religião afro-brasileira através de Jung e Morin; desvenda-se por que é a mulher a sacerdotisa central nesta expressão religiosa.
Na verdade, a mulher simboliza a Terra-Mãe, portanto, representa a continuidade; como no mito de Deméter e Perséfone, representa a continuidade da tradição para os africanos e seus descendentes no Brasil.
A esse respeito, mais precisamente sobre a questão do sexo feminino simbolizar a tradição, Roberto Calasso, ao analisar os mitos gregos mais importantes, diz:
Aquelas mulheres haviam sido filhas e companheiras de cama dos heróis. Algumas, de um deus. Todas juntas queriam beber o sangue e falar. A memória, em estado natural, é aquela horda de mulheres.
Continuando, o mesmo autor afirma:
A época de Odisseu, a era híbrida de heróis, estava toda no entrecruzar-se daqueles nomes, nascimentos e trabalhos. Se tivesse podido escutar, por um tempo indefinido, uma a uma, todas aquelas vozes de mulheres, teria sabido o que nenhum homem sabia: a história, a história de uma época que com ele estava se extinguindo...
A Ilíada e a Odisséia narravam, no fundo poucos dias e poucos anos os últimos espasmos da idade heróica. Enquanto aquela época só podia ser contada na totalidade como uma sequência de história de mulheres, como o desfolhar de um álbum de família.
No entanto, não é só para os gregos que a mulher representa a continuidade, a memória, o álbum de família e ao homem coube simbolizar a história heróica.
Para os africanos, no Brasil, as representações se configuram de modo semelhante. Tanto é assim que a mulher negra, ao representar a continuidade, a Terra-Mãe, a tradição, tornou-se a Grande Sacerdotisa do Candomblé e o homem negro, ao representar a história heróica, tornou-se o líder dos Quilombos.
A grande Sacerdotisa do Candomblé é chamada de mãe-de-santo . Esta denominação não é casual. Jung afirma:
É a mãe que providencia calor, proteção, alimento; é também a lareira, a caverna protetora e a plantação em volta. A mãe é também a roça fértil e o seu filho é o grão divino, o irmão é amigo dos homens. A mãe é a vaca leiteira e o rebanho .
Nesse sentido, existe uma relação de profunda intensidade entre a Terra-Mãe, a Mãe-de-Santo e o Candomblé. Esta profundidade é de tal monta que, entre estes três termos, não há possibilidade de dissociação. Mais precisamente, eles se interpenetram.
Desta forma, percebe-se no Candomblé a presença e a representação feminina em todas as suas instâncias: seja nas relações sociais que constituem os terreiros, seja nas relações entre os deuses e os homens, seja nas próprias características destes deuses. Na verdade, através da mulher, era gerada toda a vida da comunidade. Ela era foco propulsor de todas as relações sociais. Os terreiros constituíam verdadeiras comunidades no limite: é a Terra-Mãe no dizer de Morin, a roça fértil na afirmação de Jung. Portanto, não é casualmente que os terreiros são também denominados de roça .
O princípio organizador das relações sociais, como nas demais sociedades conhecidas, era a proibição do incesto. Os critérios que regiam esta norma eram de dimensão religiosa. Assim, eram proibidas relações sexuais entre os adeptos que haviam se iniciado no mesmo momento, por serem considerados irmãos. Desta forma, constituíram-se verdadeiras famílias extensas, tão importantes no mundo africano, elemento constitutivo da Terra-Mãe, porém, não explicitado por Morin, que fora perdido devido à escravidão.
A iniciação faz com que um grupo de culto se torne um grupo de parentesco: mãe, filhos, irmãos e avós. Em outras palavras, o grupo possui os mesmos bens simbólicos. A reciprocidade, como consequência da proibição do incesto, será o princípio norteador das relações entre os membros do Candomblé.
A relação de reciprocidade, como bem mostrou Lévi-Strauss, é decorrência da universalidade da norma da proibição do incesto. No entanto, aqui é importante sublinhar se a relação de reciprocidade implica três obrigações: dar, receber, retribuir. A mulher simboliza o ser primordial desta relação: é ela quem gesta, dá a luz e alimenta.
A comunidade-terreiro com a sua família-de-santo é constituída, portanto, através de relações de reciprocidade, nas quais a pessoa e também os orixás exercem a obrigação de dar, receber, retribuir. Em outras palavras, o mesmo princípio de reciprocidade que rege as relações entre os membros do Candomblé regula também as relações entre os deuses e os homens.
Se a comunidade-terreiro representa a Terra-Mãe, a roça fértil, a mãe, a mulher e a continuidade da tradição africana no Brasil, é claro que nele se processa constantemente a construção-reconstrução de uma identidade étnica.
Desta forma, pode-se afirmar que os negros, juntamente com seus deuses, vivenciaram a escravidão. No entanto, como os deuses não perderam a sua natureza humana, os orixás não perderam a sua natureza divina. É aqui, no espaço sagrado por excelência dos africanos e seus descendentes, que os negros reconstroem a sua identidade étnica e os orixás as suas identidades divinas afro-brasileiras específicas.
Parece ser mesmo esta relação de reciprocidade entre os deuses e os homens a responsável pela permanência dos deuses africanos, ao longo da escravidão. Ser escravo, não significava, simplesmente, um dos aspectos de suas vidas, mas era a sua própria condição humana. Neste sentido, não há possibilidade: de um lado, de deuses distantes dos homens; de outro, de uma relação de dependência, onde as divindades tudo resolvem, no qual a consciência e a ação dos homens não têm acesso a seus mistérios.
A proximidade entre os deuses e os homens é característica da relação de reciprocidade simbolizada no seu limite pela mulher; esta reciprocidade é repleta de intimidade, característica fundamental também do feminino, onde a relação da mãe, ao amamentar o seu filho, mostra o ato fundante da intimidade.
Na verdade, é a mãe que providencia de uma maneira ou de outra o alimento.
Na relação de reciprocidade mantida entre os deuses e os homens, é recorrente a troca de energias. O alimento, em última instância, simboliza tanto para os orixás quanto para os homens esta força vital. Os dois têm fome. Necessitam da comida para viver: os homens na Terra-Mãe, os orixás na cabeça dos homens.
Se através do mito é possível penetrar na realidade psíquica do homem a análise do mito pode ser encarada também como uma das vias de acesso para compreender o universo sociocultural de um povo.
O fato de o alimento ser fundamental para a existência dos deuses e dos homens está diretamente referido à mãe-mulher-terra. É neste aspecto que há o encontro entre o mito grego de Deméter e o mito afro-brasileiro de Iemanjá: se do grande seio da deusa grega jorra o leite-alimento por excelência que satisfaz a fome e sacia a sede, do seio negro da orixá afro-brasileira jorra o leite mas sobretudo a água que forma os mares e os rios, tornando a terra fértil.
Sobre o mar, Morin diz: A água é a grande comunicadora mágica do homem no cosmo. Continuando, o mesmo autor afirma:
o mar é a natureza primeira, a mãe cósmica análoga a mãe real, carnal, protetora, amorosa. Ao fazer do mar unicamente o símbolo da mãe, ao suprimir a alternativa e o vice-versa da mãe ao mar, uma determinada Psicanálise deixou escapar uma verdade antropológica. Efetivamente esqueceu-se que a vida uterina do feto humano traz em si, e recomeça, a experiência primeira marítima dos seres vivos... Verdade biológica fundamental que se refracta em todos os planos do espírito humano. Tanto o mar repercute para a mãe como a mãe repercute para o mar... As águas comportam um além cosmomórfico que comove no mais íntimo do homem: falam-lhe na linguagem das origens que ele talvez reconheça confusamente.
Assim a mudança de significado de Iemanjá africana deusa do rio; para Iemanjá cubana e brasileira deusa do mar, pode representar a união entre os povos que aportaram no Brasil, e dos que chegaram à Cuba banidos da Terra-Mãe-África. O mar aqui significa a união entre o povo africano pois a água representa a comunicação.
Por outro lado, o fato das águas falarem a linguagem das origens torna possível identificar a Terra-Mãe com a Água-Mãe.
Assim as duas deusas, a branca Deméter e a negra Iemanjá, representam a mãe: a mãe que acolhe, a mãe que protege, a mãe que alimenta: A Grande-Mãe, arquétipo compartilhado pelo Homo Sapiens. Tem-se, assim, o princípio feminino realizando a mediação entre os deuses e os homens através do alimento.
Ainda encontram-se semelhanças entre as divindades grega e afro-brasileira: de um lado, nas suas relações sexuais incestuosas, as duas copulam com seus irmãos: Deméter com Zeus e Iemanjá com Aganju; de outro, tanto Deméter como Iemanjá tiveram filhos gestados em seus próprios ventres.
Contudo, a prole de Iemanjá, diferentemente da de Deméter, não é constituída somente de filhos consanguíneos. Iemanjá adota Omúlu, que havia sido abandonado por Nanã, representando, assim, o período da escravidão, especialmente pós Ventre-Livre:
eve-se salientar que o período a que ele se refere se caracteriza pelas doações dos filhos de escravos realizadas pelos senhores. Em outras palavras, dava-se a quem queria os filhos nascidos no Ventre Livre.
Assim, se a escravidão esfacelou a família africana e a Lei do Ventre Livre aumentou em proporções alarmantes a adoção de filhos de escravos, o Candomblé, ao representar a continuidade da tradição, recria a família-de-santo através dos princípios da adoção e da adesão.
O Candomblé representava, dessa maneira, a possibilidade de o negro não alienar-se do seu inconsciente, não alienar-se da sua história. O inconsciente, para Jung, é histórico.
Se o inconsciente coletivo para Jung é histórico, é também repleto de símbolos. Na verdade, presenciou-se, até este momento, os princípios e as representações femininas em todas as instâncias do Candomblé: seja na explicação de suas origens, seja nas relações entre os seus adeptos, seja também nas relações entre os deuses e os homens, onde, através do alimento, é a mulher quem faz a mediação entre eles.
No entanto, neste inconsciente coletivo junguiano, repleto de símbolos, o masculino tem também lugar de destaque.
Tanto é assim que no panteão do Candomblé, através do imaginário religioso afro-brasileiro, emerge Exú - o orixá masculino por excelência, muitas vezes representado com um grande pênis em posição ereta. É ele que no plano do invisível, do mágico-religioso, introduz o acaso, a sorte no destino dos homens, acrescentando a desordem, a transgressão, a possibilidade de mudança. É também ele quem transporta o axé. Ao realizar esta ação, torna-se o mediador entre os deuses e os homens.
Salienta-se que o axé é a força mágica sagrada. Ter axé é ter o poder de viver plenamente a vida. Sem axé, ninguém faz nada.
Desta forma, encontra-se no bojo do Candomblé o par de oposição: no plano do real e do imaginário mitológico, o princípio feminino é a mãe, a mulher, o alimento, a tradição que fará a mediação entre os deuses e os homens.
No plano do imaginário religioso, tem-se o princípio masculino representado por Exú, que simboliza o acaso, a mudança. Ao transportar o axé, é o mediador entre os deuses e os homens.
O par de oposição princípio feminino - masculino, representa, em última instância, a continuidade e a mudança. São, simultaneamente, antagônicos e complementares. O jogo entre a tradição e a ruptura é tenso e complexo, implicando causas que, de um lado, desejam a continuidade, e, de outro, a existência de fatores que clamam pela ruptura.
Neste caminhar através do tempo no final do século XX, encontro concentrados em São Paulo pedaços-de-fé afro-brasileiros, que já haviam se mostrado, especialmente, no decorrer do século XIX, em regiões diferenciadas do Brasil. No espaço paulista, percebe-se a presença de terreiros de Xangô, Tambor de Minas, Candomblé e Umbanda.
O fato de existirem estas expressões religiosas na cidade parece estar referido aos processos interativos já vislumbrados por Darcy Ribeiro nos anos 60. Neste contexto metropolitano, percebe-se que o jogo entre a continuidade e a ruptura, já existente no interior do Candomblé, torna-se mais tenso ainda e nesse movimento, ocorre a invenção. As tradições se fragmentam, as rupturas são infindáveis. No entanto, as invenções não emergem no vazio, no sentido de serem arbitrárias.
Assim, o Candomblé caminha na Metrópole paulista na tensão entre a tradição e a ruptura, mas um dos seus traços mais marcantes é a arte de inventar.
Encontramos nesta cidade alguns Candomblés de influência africanista, outros com especificidades baianas e, ainda, terreiros que surgiram da Umbanda.
O povo-de-santo paulista reinventa através dos seus rituais a sua religião, introduzindo elementos da modernidade no seu interior.
O tempo se transforma: o tempo reversível próprio do mito, da música, da poesia é também o da religião que impregnava os templos do Candomblé em Salvador. No entanto, parece que esse tempo não tem lugar na metrópole. Aqui, o tempo se torna linear, é o tempo do relógio, o tempo da produção. O tempo passa a ser organizado de acordo com os critérios capitalistas como produtividade e eficiência: o tempo é cronometrado. Nas festas que celebram os orixás, percebe-se a inversão do tempo: da noite para o dia, e para o dia do não-trabalho.
Em oposição, surpreende perceber na festa, através da música e da dança, a existência de um outro tempo do tempo reversível. Pela audição dos sons e pela percepção do movimento dos corpos no espaço atesta-se a existência desta outra temporalidade que reintegra o tempo linear da produção e da eficiência ao tempo que não envelhece característico dos deuses.
Ao som dos atabaques, vai-se ao passado imemorial e volta-se à atualidade do presente. Simultaneamente os corpos realizam movimentos circulares representando o passado, que chega ao presente: é o encontro entre os deuses e os homens. Nesta relação de reciprocidade onde a intimidade é intensa, os deuses transmite aos homens um pouco de sua natureza divina e os homens um pouco de sua humanidade. Vislumbra-se o transe. Para participar deste fato inusitado, os orixás vêm do passado, e tudo aquilo que eles foram não desapareceu, existe, ainda agora, continua vivo. O tempo antológico dos deuses convive tensamente com o tempo linear da modernidade.
Se o Candomblé foi fundado por mulheres no limite porque representava a Terra-Mãe, hoje as comunidades-terreiros na Metrópole são chefiadas tanto por mulheres quanto por homens.
Salienta-se, contudo, que a existência do pai-de-santo não é um fenômeno específico desta cidade, como também não é uma particularidade do final deste século.
Contudo, nesta cidade, a mãe-de-santo como o pai-de-santo parecem ter a mesma visibilidade
Assim, a vida metropolitana com a fragmentação das relações que lhe é inerente, provavelmente, influiu nesta ruptura que, por sua vez, é interna ao próprio Candomblé, fazendo com que a mudança fosse a privilegiada no jogo tradição ruptura.
Não obstante, deve-se assinalar que, para Jung, a função simbólica tem referência direta com a emergência simbólica da criação contínua através da incessante metamorfose da libido.
As famílias-de-santo também se transformam. Anteriormente, ao representarem a família extensa africana, eram um dos elementos fundamentais da Terra-Mãe e, por isto mesmo, um locus privilegiado para que o processo de formação de identidade étnico-racial ocorresse. Em outras palavras, o Candomblé era percebido como um foco de resistência da cultura afro-brasileira. Pode-se dizer, atualmente, que no lugar da identidade étnica emergem subjetividades como substâncias fundamentais da sociabilidade entre os membros que constituem as famílias-de-santo.
É importante, contudo, reiterar que o fato de esta religião ter sido constituída a partir da diáspora africana, ter sido fundada por mulheres e por negras possibilitou a constituição de um espaço na Metrópole para que as subjetividades possam se encontrar.
A sociabilidade desenvolvida entre os membros que constituem a família-de-santo não é homogeneizadora, pelo contrário assegura o desenvolvimento de subjetividades. Por isto mesmo existem entre as pessoas zonas de transparência que colocam em contato diferenças, constelações singulares de fluxos sociais, materiais e de signos - criando uma área de intimidade e desejo onde um e outro se metamorfoseiam.
* Agradeço: Babalorixá Armando de Ogum que ao adotar-me como sua filha-de-santo em São Paulo, possibilitou que eu me tornasse membro de sua família-de-santo.
Prof. Dr. Reginaldo Prandi que, com sua generosidade de sempre, ofereceu parte dos originais de seu livro sobre os mitos afro-brasileiros.
Este processo de transformação que ocorre no espaço da intimidade e do fluxo do desejo no Candomblé é vivido pela circulação do axé possibilitando que as pessoas ou grupos vivam à vida.
A circulação do axé deve ser entendida como fluxos de energia que circulam trazendo a possibilidade de devires: negro, mulher, homossexual, e outras subjetividades que possam vir a se constituir.
O jogo tenso entre a continuidade e a ruptura se faz presente nesta metamorfose que leva a devires.
Se de um lado a transformação implica em rupturas, a emergência de novas subjetividades, neste espaço, só se torna possível na continuidade do Candomblé.