Este texto foi dado para análise e posterior considerações por um professor de meu mestrado e compartilho com os amigos do blog no intuito apenas de levar o conhecimento aos que assim desejam, vale a pena conferir e fazer reflexões a respeito.
A verdade e as versões
Luiz
Carlos Susin
“Que
é a verdade?” (Pilatos)
A pergunta de Pilatos a Jesus – “que é a verdade?” – pairou
no ar. Jesus acabara de fazer uma provocação: “Para isto eu nasci e para isto
eu vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Quem é da verdade escuta a
minha voz”. Pilatos então retrucou com sua pergunta – “que é a verdade?” - mas
não esperou resposta alguma: “tendo dito isto, foi ao encontro dos
judeus...”(Cf. Jo 18, 37-38). Pode-se suspeitar seriamente que Pilatos ironizava,
pois já tinha a sua versão. Como os chefes de Jerusalém também tinham a sua
versão. O testemunho de Jesus a respeito da verdade seria mais uma versão,
certamente a menos interessante para Pilatos. O que parece confirmar a
conclusão de Nietzsche: “Não há fatos, só há interpretações”. É dele também a
conclusão de que só é verdadeiro o que interessa para a vida.
Em tempos que são chamados “pós-metafísicos”, dos quais
Nietzsche é um profeta que causa vertigens, parece, de fato, que não se
consegue pensar em uma verdade transcendente acima da multiplicidade e da
dispersão das interpretações e dos interesses, nem estabelecer a verdade de
modo definitivo, eterno e imortal, como aspiravam os grandes filósofos gregos e
os primeiros teólogos do cristianismo. Em tempos pos-modernos só se consegue permanecer
numa paisagem “meteorológica” da verdade, paisagem com pouca estabilidade e
muita surpresa. É sintomático que a meteorologia tenha se transformado em uma
notícia diária cheia de charme, um verdadeiro “paradigma” tecido de
possibilidades contínuas de variações.
Dessa forma, o caminho a percorrer neste capítulo já está
sugerido: vamos passear pela paisagem posmoderna das versões mesmo que não se
consiga atingir os fatos, e vamos em busca da verdade por clareiras que
esperamos serem cada vez maiores até chegarmos a uma paisagem que descortine a
amplidão imensa da verdade e suas fontes e a complexidade de sua comunicação.
<!--[if !supportLists]-->1. <!--[endif]-->O coração na pele e a revelação na máscara.
“O mais profundo é a pele” (Gilles Deleuze) é algo tão
verdadeiro como a constatação de que a intimidade está no corpo mais do que na
alma. Por isso a violação da pele é a violação da intimidade, e a revelação ou
o recolhimento da intimidade coincide com o desnudamento ou o encobrimento da
pele. Vamos usar aqui a pele como uma metáfora, uma figura que pode nos dizer
algo mais. Não é “sob” a pele, numa interioridade ou num alem dela que se
encontra a verdade de alguém que a pele protegeria. De fato, a pele marca o
“dentro” e o “fora”, o corpo e o além do corpo. Mas ela é também o lugar de
comunicação e de transparência ao mesmo tempo em que é revestimento de pudor e
recolhimento do que está dentro. Assim como é lugar de sensibilização e de
comunhão em relação ao que está fora ao mesmo tempo em que é lugar de
distanciamento e defesa do que está dentro. A pele é lugar de toque e de reação
ao toque. A pele respira, palpita, é lugar de nutrição e de excreção. A
novidade posmoderna é que o coração, o centro, o mistério, a interioridade, a
profundidade, tudo isso foi parar na pela, está nesta ambivalência da pele.
Nela está a ambigüidade de notícia e verdade, nela as versões que se desdobram
e a realidade que dá sustento às versões, se fundem: O que aparece, é! Se não
fosse, não apareceria. É fácil constatar que as coisas mais profundas que a
palavra não consegue pronunciar, a cor da pele revela, às vezes até
precipitadamente.<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]-->
Sem palavras ainda, a pele é fonte de ambigüidades. Que
aumenta se a pele se comunica revestida de máscaras. A máscara é outra poderosa
metáfora de comunicação ambivalente, colada à pele.
A máscara pode ser compreendida a partir de dois usos: a
máscara de carnaval e a máscara ritual. A máscara de carnaval é utilizada, ao
menos conforme o antigo uso dos bailes de máscara, para esconder. Permite,
assim, o jogo das identidades e das relações ambíguas sob a proteção da verdade
mascarada. Portanto, sua primeira função é esconder a verdade, introduzir a
fantasia e a ilusão que deixam a verdade à mercê da ambiguidade. Mas justamente
em pleno carnaval, a máscara pode ter a função oposta, a de revelar e expressar
quem realmente se é e o que realmente se sente. Assim, por exemplo, a moça que
trabalha o ano inteiro como faxineira, sob o peso de uma máscara cotidiana de
gata borralheira, quando põe seus enfeites de porta-estandarte ou de princesa
do Congo, permite vir à tona o que ficou escondido todos os outros dias do ano
e pode finalmente se revelar em sua verdade mais íntima: a princesa sob a
espessura da empregada doméstica. E isso nos remete à função ritual da máscara
nos ritos de muitos povos tradicionais: elas são usadas como expressão simbólica
de uma identidade profunda, revelação de realidades que permanecem ocultas ao
cotidiano e que só se expressam em tempos especiais. Nesse sentido, a máscara,
que pode ser uma simulação, também pode ser um rosto mais profundo e mais
autêntico.
Os nossos tempos posmodernos, em que as imagens ultrapassam
as palavras, parecem exigir máscaras cada vez mais sofisticadas e continuadas,
num carnaval cada vez mais extenso e intenso: é a comunicação exasperada por
imagens que melhorem o cotidiano. Um pequeno exemplo, contado no opúsculo O que é o posmoderno<!--[if !supportFootnotes]-->[3]<!--[endif]--> ajuda
a compreender: Uma senhora encontra sua amiga levando pela mão a própria filha
e a elogia – “como está linda a sua filha!” – e a outra retruca: “Isso não é
nada, precisa ver as fotografias dela!”. Portanto, a menina é mais bonita em um
book de fotos do que em carne e osso,
a fotografia esteticamente mais real do que a brutal realidade do cotidiano, a
imagem ou a cópia melhor do que a realidade que lhe corresponde. Que as fotos
sejam hoje mais bonitas do que a realidade de uma paisagem ou de um rosto, é
algo que assimilamos com ingênua euforia. Afinal, as ferramentas do Fotoshop são para melhorar a imagem da
realidade dura de nossos rostos enrugados e estressados ou de nossas paisagens
suburbanas devastadas. Nessas imagens ainda se revela a nossa verdade? Até onde
a máscara ainda exerce a sua boa função de revelação profunda? Em sua versão
atual, ela é simulacro.
Simulacros são signos ou imagens que só se referem a si
mesmos. Afastaram-se tão distantes do real de onde partiram que já não remetem
mais a realidade alguma além de si, sem referência ao modelo originário. Por
isso todo simulacro tem o poder – a sua “virtualidade”, ou seja, força – de
inverter a relação e se tornar “mais real do que a realidade”, mais ou menos
como alguns casos de personagens de telenovela que se tornam critérios para
julgar a verdade do cotidiano fora da tela. Não é mais a arte que imita a
realidade, mas a realidade que imita - ou deve imitar – a arte. E isso nos
lembra Platão. O filósofo grego advertia que a imitação – a mímisis, de onde provém a mímica – é como as representações no fundo
da parede da caverna: não são meras cópias, pois tem poder de substituir a
verdadeira realidade e se tornam a fonte da confusão e da violência entre os
escravos da caverna. O que diria ele do mundo de imagens do grande espetáculo
que se tornou a cultura posmoderna? Nessa sofisticada caverna de altas doses de
imagens “virtuais” – com força de fascinação prometendo realidades mais reais
do que a realidade de carne e osso - a primeira vítima é a verdade.
Em termos de luz e sombra, ficando ainda com Platão, é como
se as sombras tivessem absorvido tanta luz a ponto de a luz se tornar sombra. Na
caverna, a luz estaria colocada por trás dos escravos e o que eles viam parede
– na tela – eram suas próprias imagens e as tomavam como sendo reais, um
espelhamento sombrio. Mas também espelhamento em que o espelho “toma vida” e se
torna senhor da realidade. Tornou-se freqüente, em nossos tempos, a patologia
chamada transtorno disfórmico corporal
(TDC): adolescentes que internalizaram forte juízo negativo a respeito de seus
corpos olham-se no espelho e se vêem com toda certeza mais gordas do que
realmente são. Tornam-se anoréxicas sem conseguir modificar a imagem de si que
vêem no espelho e que continua a julgá-las severamente. Já a própria anorexia
passou a ser o desejo freqüente de adolescentes que sonham atingir as
passarelas, como se precisassem desaparecer como pessoas reais para se tornarem
puros cabides de roupas de luxo: as roupas (luxuosas), então, valem mais do que
o corpo, valem o sacrifício do corpo, ao inverso do dito de Jesus que exortava
à confiança: “não é o corpo mais que a roupa?”(Mt 6,25b). A passarela, com seus
holofotes, tornou-se um dos símbolos da posmodernidade contemporânea: lugar em
que o espetáculo julga, inspira, ordena a realidade, lugar de heróis e heroinas
voluntariamente sacrificadas por anorexia para se tornarem as deusas fashion que movem a realidade. Pedro
Bial, da Rede Globo, saudou os fantásticos globais confinados na “casa-passarela”
do Big Brother como “nossos heróis” – homenagem perfeita, segundo a teoria
sacrificialista de René Girard: os melhores vão sendo provados e sacrificados
na “casa-altar”: passam para a glória sem nenhuma razão anterior a não ser
exatamente essa: a imolação aos olhos deslumbrados de uma nação inteira de fieis.
Para o espanto ético de Platão.
É que Platão pensou que uma sociedade somente seria possível
se houvesse a anterioridade de valores e formas de vida – os arquétipos, as
“idéias” modelares, formadoras – para inspirarem e atuarem nas formas concretas
de existir no mundo. Sua teoria das formas ou, mais popularmente, seu “mundo
das idéias”, com uma anterioridade lógica e performativa sobre as realidades
concretas deste mundo, tinha um objetivo ético parecido com as Constituições de
um país, anterior e superior a tudo e a todos, como uma lei geral à qual estão
todos submetidos sem exceção. Todos sob os mesmos arquétipos como sob as mesmas
leis. Esta seria a forma – assim pensava Platão – de dar um ponto final no
círculo bárbaro de ídolos e sacrifícios, de fascínio e confusão de imagens e de
relações fetichistas com imitações de realidade. Em sua tentativa de implantar
a República Platão fracassou, como Jesus foi sacrificado. E nos assombram ainda
a fascinação dos ídolos e o frenesi dos sacrifícios.
Entre as “idéias” do mundo platônico e os “ídolos” dos quais
ele pretendia, na esteira de Sócrates, libertar com ética e razão, há uma
relação íntima mas em desnível, em decadência. Idéia e ídolo têm a mesma estrutura,
o “eidos”, a imagem, a forma, como
produção e projeção mental. Há um salmo bíblico que descreve precisamente esta
relação:
Os ídolos das nações são prata e ouro,
Obras de mãos humanas:
Tem boca, mas não falam;
Tem olhos, mas não vêem;
Tem ouvidos, mas não ouvem;
Não há sopro sequer em sua boca.
Os que os fazem ficam como eles,
Todos aqueles que neles confiam (Sl 135, 16-18).
Essa identificação entre os ídolos e os que os fazem é
reveladora: por um lado, os ídolos, mesmo os que tem seus méritos como grandes
artistas ou esportistas, etc, enquanto “ídolos” são uma produção coletiva do
desejo que se projeta neles, e, por outro lado, os que projetam neles seus
desejos poderão encontrar neles não as qualidades reais que sempre estão
acompanhadas de defeitos reais, mas simplesmente, de novo, os seus desejos, o
que leva da exaltação ao linchamento do ídolo. Seja em termos posmodernos e
secularizados, seja em termos religiosos, os ídolos são um produto do desejo
que se erige em simulacro no lugar da realidade ausente, e só pode levar à
frustração. É inteiramente comparável à pornografia: nela, o desejo, ao invés
de ir ao encontro da realidade, se dirige ao simulacro e busca satisfação com
uma fascinante imagem que dá o golpe no final: é vazia e abandona à frustração
e à solidão. Constatar que estamos num tempo de exacerbação da imagem a ponto
de se tornar um simulacro é também constatar que são tempos de altas doses de
idolatria e pornografia – onde a verdade é a primeira vítima.
<!--[if !supportLists]-->2. <!--[endif]-->O nome da rosa e as rosas sem nome
O jornalismo investigativo é um gênero de jornalismo
relativamente recente. O repórter que investiga busca a verificação da notícia,
a apuração do fato. Apurar significa
frequentemente também depurar,
separar o fato de aparências, de interpretações que despistam a sua verdade, de
corrupções e de violências que vitimam a verdade, o que torna o jornalismo
investigativo uma missão ética e perigosa. Nesse sentido, num mundo de muita
imagem, de muita linguagem, de generalizações e de sistemas cada vez mais
virtuais, um amplo caminho de investigação é o de apurar a realidade singular, o
fato originário e a sua verdade.
Umberto Eco, filósofo e semiólogo italiano, criou uma
situação exemplar desta busca em O nome
da Rosa. No seu mais celebrado romance, ambientado no final da Idade Média,
mais precisamente em 1325, a
trama se desenrola em torno de um franciscano que tem o mesmo nome do mais
conhecido representante do nominalismo radical e irônico, Guilherme de Ockam.
Ele é chamado a investigar uma grande abadia envolvida em acontecimentos
nebulosos, com um encadear-se de sinais premonitórios e de suspense. Em meio à
perplexidade e à desconfiança geral, a verdade vai se desvendando muito
gradativamente, como entre nuvens que vão se dissipando. O que parecia um
grande e firme sistema de verdades é que está ameaçado pelo descontrole e pela crueza
de assassinatos em série. O
que fugiu de controle? Quem está matando? Quais as razões? Frei Guilherme, com
seu jovem discípulo, deve buscar o “furo”, romper a cortina para verificar a
realidade sob sintomas contraditórios e despistantes. É uma investigação ao
mesmo tempo jornalística, policial, filosófica e, finalmente, teológica. No
coração da abadia está uma biblioteca, e no recanto mais escondido da
biblioteca está um livro que não pode ser aberto e lido, sob pena de se
desmoronar todo o sistema de valores da inteira abadia e até do cristianismo.
E, enfim, o responsável pelo desencadear-se da violência que, de qualquer forma
abala e faz desmoronar tudo, é justamente o que menos se podia pensar, o mais
zeloso dos monges – o guardião daquele livro perigoso e subversivo. Esta
verdade singular, neste caso uma verdade trágica, põe em chamas um sistema de
acobertamento de verdades e de violências.
O nosso personagem, Frei Guilherme, como de fato ocorreu com
o movimento nominalista, buscava a verdade dos fatos singulares e reais – que
causam inclusive mortes - sob o manto de um sistema de instituições de
consagração universal, sustentado por verdades com pretensão de universalidade,
que criam as condições para o assassinato e o escondem. O romance, cujo autor
participa da aventura posmoderna de desvendar algo de verdade na linguagem e
nas múltiplas interpretações, toma partido pelo nominalismo: sob os nomes
gerais, universais, como também sob os sistemas sofisticados que construíram
grandes e fascinantes sumas e catedrais, só há o nada: nomina nuda tenemus – nós temos apenas nomes, nomes nus.
Umberto Eco escolhe uma direção na investigação da verdade: a
verdade singular, irredutível a um sistema de explicações, aquela que é a verdade
de cada um, de cada fato, sem generalizações. É a verdade que se desvenda descendo
do universal e do sistema, da instituição e dos códigos estabelecidos, ao singular. Mas na história do Ocidente, esta
foi normalmente uma reação à outra direção da investigação sobre a verdade,
aquela que busca estabelecer cada ser e cada verdade singular num quadro cada
vez mais geral e coerente de sistemas. Tal percurso é feito através de
classificações, de analogias, de hierarquias, enfim de uma totalidade. A
verdade inteira só pode se dar no todo, no universal e, finalmente, no
transcendental.
Para os nominalistas, tais verdades e tal linguagem universal
eram apenas “nomes” e “sons de garganta”. Quanto muito, realidades “de razão”,
que estão apenas na mente e na funcionalidade da linguagem. Frequentemente
decaem em meras produções mentais – mentiras sofisticadas, sofismas. Mas não são
mentiras inocentes: elas escondem interesses de poder e por isso oprimem e
mandam à fogueira quem não se submete a elas. Os nominalistas medievais, mal
vistos pelos representantes das instituições, tinham algo dos “cínicos” gregos,
cuja figura mais popular é Diógenes: eles corroíam a linguagem dos sofistas
revelando o quanto eram jogos de palavras, retórica sem real conteúdo e
encobrimento de interesses. É o que hoje chamaríamos de ideologias. Voltando
aos nominalistas: o que conta é a experiência singular, a verdade singular, a
linguagem que diz cada coisa por seu nome.
No entanto, os “universalistas” medievais, como os gregos que
aspiravam conceitos e teorias claras e bem estabelecidas, também tinham boas
razões para tomarem esta direção toda vez que buscavam a verdade: se
permanecemos simplesmente na singularidade e na originalidade, os fenômenos não
ganham nem lógica e nem coerência, nem se explicam e nem se expressam, ficam
afinal sem nome algum – “rosas sem nome”. Somente em quadros mais gerais, em
paradigmas, em contextos, é possível conhecer com coerência a verdade de cada
fato e cada ser singular. Em última análise, somente à luz de uma verdade
transcendental é possível reverter a disseminação e a nebulosa de verdades múltiplas
que se perderiam sem significado estável num relativismo cada vez mais
aniquilador de qualquer verdade. O que adiantaria, então, investigar os fatos
se não fosse possível compreende-los à luz de valores universais e de um
horizonte mais amplo que lhes dá significado, seja para celebrar seja para
lamentar ou mesmo punir? Que adiantaria, por exemplo, investigar e chegar ao
autor exato de um crime de assassinato se não houvesse um código válido para
uma inteira sociedade estabelecendo que assassinato é um crime? Portanto,
investigar fatos singulares supõe ter referências gerais para reconhecê-los,
avaliá-los, e coloca-los à disposição em uma notícia adequada. Não é possível
emitir juízos de valor tendo apenas fatos singulares.
Se um dia formos repórteres de jornalismo investigativo,
deveríamos considerar, como em círculo, em uma dialética, esses dois pólos em
que se manifesta a verdade: na sua singularidade e na sua referência a valores
ou princípios ou ainda constituições de caráter universal. Só assim será
possível “compreender” a verdade, compreender em duplo sentido: aclarar
intelectualmente e também acolher eticamente. Por um lado, a singularidade do
fato, a sua intrigante e original qualidade ou monstruosidade. E, por outro
lado, o seu contexto mais global em que se pode ter uma luz mais justa para
apreciar a sua verdade e compreende-la melhor. Um exemplo? Algo contemporâneo muito
parecido com o exemplo do romance de Umberto Eco: em nosso tempo, a verdade de
um crime em que a mãe acabou matando o filho adolescente com a arma do marido é
algo tão monstruosamente singular que parece ultrapassar qualquer medida, qualquer
contexto, qualquer referência. Por outro lado, como atenuante dessa singular
monstruosidade sem explicação, está o fato de um filho adolescente viciado sem
medida em crack que maltrata a ponto de enlouquecer a própria mãe. O crack, no
entanto, é um contexto, uma contaminação em rede, em sistema, inclusive
econômico e financeiro, que compõe hoje o paradigma do desejo sem limite, da
fascinação e da pornografia generalizada de nosso tempo, e que tornou o jovem e
a sua mãe antes vítimas e depois enredados em um assassinato. É nessa
polarização que se pode compreender o nome de cada ator desta tragédia e compreender
de modo justo, intelectualmente e éticamente, o triste acontecimento.
<!--[if !supportLists]-->3. <!--[endif]-->O poder e o encanto da verdade e a beleza
da integridade.
A mais clássica das definições de verdade, desde Aristóteles,
o filósofo que ficou com a fama de pai da lógica e da ciência, é que a verdade
é uma relação de adequação da mente que conhece com a realidade conhecida. Se a
minha mente tem uma noção adequada da mesa que está diante de mim, eu possuo a
verdade da cadeira em minha mente. Se eu tenho as informações exatas de um fato
eu posso comunicar estas informações para que outros também compartilhem comigo
o conhecimento do fato. Isso é conhecer, ter, informar a verdade. Ter verdades,
nesse caso, é ter um certo cabedal, é possuir uma riqueza que pode ser ainda
mais enriquecida com novos conhecimentos, e, finalmente, é ter um poder.
É nesse sentido que “saber é poder”, embora Aristóteles
pensasse somente em um poder ético, o de ter condições de, com informações
justas, praticar atos justos. Foi Francis Bacon, nos inícios da modernidade,
que pensou a verdade como um poder de domínio e de controle sobre o mundo. Com
isso, fizemos progresso, mas este mesmo progresso esteve na raiz de todas as
guerras modernas e agora está na raiz de nossa incansável guerra contra o
equilíbrio feito de recursos limitados da terra. A verdade como “adequação” de
nossa mente e de nossos conhecimentos à realidade que está fora de nós precisa
urgentemente voltar à intenção original, a de ter informações seguras para agir
com sabedoria e frear a loucura de um sistema de vida em que o conhecimento e
as informações se tornaram propriedades intelectuais e produtos de mercado.
Heidegger, um dos mais representativos filósofos do século
XX, chamou a atenção para uma fonte mais antiga e mais humana da verdade: a
verdade como “manifestação” dos seres, antes e sem nos importarmos com a
apropriação de informações. Em grego, a verdade podia ser chamada como aletheia. Mergulhando em sua etimologia,
descobrimos em seu subterrâneo um eco mítico, a narrativa da passagem dos
mortos pelo rio lethes, o rio do
“esquecimento”. Segundo a narrativa, o escorrer das águas do rio sobre os pés
dos mortos levavam consigo, aos poucos, todas as lembranças, e acumulava estas
lembranças do outro lado, de tal forma que os vivos, como herdeiros de suas
memórias, poderiam ainda se beneficiar dos saberes dos mortos. Por isso, a
verdade como a-letheia é este
des-velamento, a retirada do véu do esquecimento e a manifestação do que estava
oculto. Há, então, um encantamento, uma maravilha, uma alegria, na descoberta
da verdade, no saber que devolve à fonte, ao original. O trabalho de
investigar, de desvendar, de comunicar, se torna um respeitoso “deixar ser” ou
deixar aparecer a epifania luminosa de cada acontecimento. É acolher e
comunicar para que outros participem do mesmo deslumbramento. Ou quando o que
se desvela é doloroso e trágico, o acolhimento desta verdade e a sua
comunicação criam compaixão e solidariedade. Não há neutralidade na comunicação
da aletheia: a verdade, nesta altura,
só pode ser compreendida numa relação de disposição e de simpatia, de
envolvimento e afinação poética, mesmo quando a poesia é dura. Um bom
jornalismo contém algo de poesia.
A verdade é criação: este é o sentido da verdade que
ultrapassa a adequação da mente e a apropriação da informação. Em latim, a raiz
ver que origina a ver-dade, significa em primeiro lugar
“primavera”, o primeiro verde que
eclode como nova criação depois do ocultamento incolor do inverno. O verde da
primavera se manifesta irrompendo, se impondo de forma luxuriante e
contagiante. Podemos imaginar o nosso filósofo Heidegger em seus passeios pela
Floresta Negra em plena primavera meditando este fenômeno, o aparecer da
verdade na paisagem. De fato, toda verdade, mesmo as verdades sofridas, fazem
nascer sempre de novo a esperança e a confiança no futuro: a verdade tem força,
tem vitalidade, e “o que deve ser, será”.
A verdade não permanece apenas em uma ecologia primaveril que
reage a uma paisagem amortecida e devastada. Ela tem um fundo ético, é uma
experiência de criação de espaços de vida humana, reportagem de esforços
humanos que, através da solidariedade dos dons, criam futuro onde não mais parecia
haver, como as tantas iniciativas junto aos jovens envolvidos em delinqüência
ou perdidos em drogas, aos pobres em periferias, etc. Este tipo de reportagem é
contagiante, é conspiradora e co-criadora, traz à tona a verdade “autêntica”,
como o caso da faxineira que no carnaval revela a princesa que carrega dentro
de si o seu eu mais autêntico. Este é um jornalismo poético, criador, que faz
bem.
Nesse processo da verdade criativa, como a verdade da semente
lançada à terra que já traz em si a verdade futura dos frutos, pode-se entender
retamente a verdade da técnica. Os gregos avizinhavam poiesis e tecne, filhas e
testemunhas da capacidade de criar. A tecnologia não é necessariamente um
destino que nos joga em excessos de artificialidade e em perigo de
escorregarmos para o “pós-humano” comandado por ciborgues. A tecnologia é
criação e linguagem nossa, “filha” da nossa capacidade procriativa, e isso pode
- e deve - ser pensado eticamente: criar com sabedoria, com intenção e finalidade
ética, com medida eticamente traçada. Inclusive sabendo o que vale a pena criar
e o que não vale a pena criar: em termos de procriação tecnológica - usando uma
analogia - é necessário ter paternidade responsável e controle de natalidade.
Um jornalismo atento ajuda a discernir, mostrando as boas experiências criadoras
e seus benefícios, e denunciando as criações da tecnocracia louca. Afinal, em
nome do humano, nem tudo o que é tecnicamente possível é eticamente
permitido.
Há também uma experiência importante da verdade ligada ao
princípio de coerência e integridade, ou seja, de “não contradição”. Disse no
início que vivemos num tempo de versões, de muitas interpretações. E o mais
notável é que experimentamos diariamente versões contraditórias. O
“contraditório”, os pontos de vista contrários, são uma verdadeira ferramenta
da imprensa, no exercício da livre expressão e do debate em clima de
democracia. Não há porque temer o contraditório dos pontos de vista no debate. Mas
isso não significa que podemos aceitar uma disseminação de verdades
contraditórias a ponto de chegarmos a uma insustentabilidade social. Aqui, de
novo, nos ajuda uma interessante experiência medieval, antes do dilema de
Galileu com as autoridades da Igreja de seu tempo. Averróis, filósofo árabe,
não via como conciliar as verdades da filosofia de Aristóteles com as verdades
dos textos sagrados. Hipotizou, então, a possibilidade de “verdades paralelas”:
o que é verdade em um campo de conhecimento não é necessariamente verdade em outro. Tomás de
Aquino, que também examinou o pensamento de Aristóteles e acreditava nas
verdades bíblicas, percebeu o perigo de mundos paralelos cada vez mais
contraditórios, e trabalhou no sentido de aproximar as diferentes verdades,
confrontá-las, estabelecer relações ou ao menos níveis entre elas e não apenas
respeitá-las em suas diferenças. É o que ele chamou de “mútua excitação” entre
verdades da razão e verdades da fé. Ele permaneceu, assim, na tradição de
Agostinho, de Anselmo e de tantos outros que acreditavam no diálogo entre razão
e fé em vista da verdade. Mas não só da verdade: é o amor que tudo une e
compreende, na preciosa lição de Agostinho. Galileu não teve a mesma sorte, e
depois dele, por muito tempo, explorou-se o conflito e a pretensão de ter toda
verdade do próprio lado. Hoje, além da aceitação da interdisciplinaridade,
quando pontos de vista contrastantes são colocados sobre a mesma mesa, quando
interlocutores com convicções diferentes aceitam dialogar, se está assumindo a
postura de Tomás de Aquino e as discussões escolásticas, com a vantagem de se
fazer um trabalho democrático que ultrapassa as paredes da academia.
Em última análise, a integridade e a unidade da verdade, sem
falsidade e sem contradições, é um caminho e um horizonte para o qual se
orienta o debate em busca da verdade. Toda vez que se consegue, há uma
experiência de harmonia ética, portanto de beleza e de gratidão. Mas é
necessário confessar com humildade que esta harmonia e esta integridade, em sua
inteireza, é um horizonte último vislumbrado na esperança. Pode ser antecipado,
porém, toda vez que fazemos um passo a mais no debate em torno da verdade e no
respeito a quem tem informações e análises e inclusive convicções diferentes.
Antecipa-se a harmonia da verdade na harmonia da convivência pacífica.
4. É verdadeiro o que
é bom - mas só é bom o que é verdadeiro
Nietzsche, a esfinge de nosso tempo, afirma sem rodeios que a
verdade é, afinal, uma questão de afirmação daquilo que ajuda a humanidade. É
verdadeiro aquilo que ajuda a viver, a ser feliz, a ser saudável, e deixa de
ser verdadeiro aquilo que nos prejudica e nos desvitaliza. Ele consagra assim
certo “pragmatismo” como critério de verdade. Qual é a religião verdadeira ou
mais verdadeira? Aquela que ajuda a ser mais humano, mais justo, mais livre,
mais compassivo. Como poderia ser verdadeira uma religião que gerasse angustia
e fantasmas em nós? Há uma grande dose de razão nesse critério de verdade. Pois
a verdade, como a bondade, deve repousar em alguma experiência conseqüente, um
fim intrínseco.
Aristóteles consagrou a felicidade como finalidade do ser
humano. É a eudemonía – bom espírito
– a exaltação última do humano, de certa forma a sua verdade última. Já para os
teólogos cristãos como Santo Agostinho e Duns Scotus, a bem-aventurança ou beatitude,
portanto a felicidade, é tanto o destino último do humano como a razão de ser
da graça e da comunhão divina. Kant, em tempos de afirmação do sujeito humano,
insiste que o humano é fim em si mesmo, antecipando-se em contradizer a
tendência moderna e posmoderna de transformar o humano em mão de obra e
terminal de consumo. Esta situação oprime a verdade do ser humano.
É ilustrativo, aqui, um novo passeio pelo mundo medieval. Duas
escolas se batiam fervorosamente no século XIII na escolha da precedência entre
verdade e bondade – ou o “bem”, que, pela palavra latina cáritas, podia ser entendido também como “amor” e inclusive como
“vontade”, pois o amor se manifesta na liberdade, na livre vontade. Os
seguidores do dominicano Tomás de Aquino mostravam que era necessário primeiro
conhecer para depois querer e amar: não se quer e não se ama o que não se
conhece, e só se ama bem o que se conhece bem. Portanto, há uma precedência do
conhecimento sobre o amor e sobre a vontade. Mas os seguidores do franciscano
Duns Scotus retrucavam invertendo: não se conhece o que não se ama, e só se
conhece bem o que se ama bem, na liberdade do querer. Portanto, há uma
precedência do amor e da vontade sobre o conhecimento. Pois, acrescentavam os
franciscanos, conhecimento sem amor é vaidade - é vazio. Hoje diríamos que
conhecimento sem ética é um grande perigo. Pode-se pensar, nesse debate de
escolas, que a questão parece aquela da galinha e do ovo: quem vem antes? Não
se deveria pensar em círculo, simplesmente? O verdadeiro conhecimento é
conduzido pelo amor e faz crescer o amor, e o verdadeiro amor é conduzido por
um verdadeiro conhecimento e aprofunda o conhecimento.
O nosso tempo parece se guiar pela prioridade do “bem”,
daquilo que faz bem, do que é bom: é verdadeiro o que é bom! Mas a confusão de
bem com um hedonismo desbragado e com um individualismo feroz – antes de tudo o
“meu” bem - ou simplesmente o frio pragmatismo que decide o bem e a verdade por
eficácia ou por interesses, é necessário afirmar não apenas que é verdadeiro o
que é bom e o que é prático, concordando de certa maneira com os franciscanos e
com Nietzsche, mas também que, para saber realmente o que é bom, o que pode dar
uma felicidade mais profunda e mais duradoura, o que pode dar mais vida, é
necessário afirmar o contrário: é bom o que é verdadeiro, mesmo um remédio
amargo. Donde aprender, então, o que é verdadeiro? É o que vai nos ocupar em
seguida.
5. O mágico e o
vendedor de abóboras
Entre os mágicos em geral e os magos em particular, e entre os
que praticam rituais, parece haver algo em comum: a criação de algo que a razão
comum não explica. Trata-se de um conjunto de técnicas intrigantes, uma
tecnologia que ultrapassa nossa compreensão, como, por exemplo, a de retirar
coelhos de uma cartola que estava vazia. A Bíblia judaico-cristã é severa para
com a magia, essa estranha tecnologia, e exige muita pureza de intenção dos que
praticam rituais. A razão é simples: a prática mágica seria uma tentativa de
imitação da criação divina, um simulacro da ação criadora que só a Deus
compete, pois pretende criar a partir do
nada, só com a palavra ou com o gesto leve, sem esforço e sem trabalho, sem
o preço do suor e do tempo. Só Deus cria assim, e imitar a criação do nada é
enganoso e coisa do demônio. O mágico só cria um “falso”, como certas obras que
podem se parecer fantasticamente com o original mas não são autênticas.
O mágico é também um ilusionista, e por isso ele diverte, se
torna figura de entretenimento, de circo. Os mestres do Talmud<!--[if !supportFootnotes]-->[4]<!--[endif]-->
fazem distinções sobre o grau de gravidade na prática da magia. Se o mágico
cria falsas abóboras porque é um ilusionista e diverte o público, não há
gravidade nisso. Pelo contrário, há leveza e cumplicidade. A gravidade está no
experto que aproveita as falsas abóboras e as coloca no mercado para obter
poder e riquezas vendendo abóboras ilusórias. O ilusionismo perde a graça e
resvala para o engano com prejuízos aos outros. No mercado de obras de arte há
quem pague bom preço por “falsos”, mas sabe que está comprando falsos. Mas
pagar bom preço por um engano é sentir-se roubado pela corrupção de um mercado
que promete felicidade e abandona à frustração.
O filósofo judeu Emmanuel Levinas, que comenta os mestres do
Talmud, pergunta sobre a ética das tecnologias cada vez mais complexas e sofisticadas,
e junta imediatamente a elas a ética do marketing, que nos envolve e assedia
insistentemente com promessas de felicidade através da propaganda de produtos,
esta “alma do negócio”. Negócio de ilusões? A serpente do jardim do Éden foi
grande marqueteira: fez a Eva a publicidade de um fruto “de bom aspecto”, mas
depois do primeiro bocado nem Eva e nem Adão foram os mesmos, e até hoje se
discute se foi para bem ou para mal, porque eles ficaram sabendo o que não
sabiam: que eram mortais. A publicidade
e a tecnologia vendida e consumida são boas ou más? O critério mais disponível
para um bom juízo está nas conseqüências, nos frutos. Por exemplo, quando alguns ganham muito sem
esforço correspondente e outros os pagam e não colhem a realização das
promessas correspondentes, temos um problema com abóboras ilusórias no mercado.
A criação de necessidades de consumo, a cultura da compulsão ao consumo, a
necessidade de “ir às compras” para ter um êxtase de felicidade, tudo isso leva
à sensação de se estar preso a uma cultura saturada de “falso”: falsa
tecnologia, falsos produtos, falsa publicidade. Onde aconteceu o desvio? Quando
as coisas substituíram as pessoas, quando, mais especificamente, as relações
com as coisas substituíram as relações com os outros. É aqui, de novo, que a primeira vítima é a
verdade.
Como a tecnologia se tornou não apenas um instrumento mas um ambiente que nos envolve de tal forma
que não distinguimos mais real e virtual, também não reconhecemos com
facilidade a verdade das coisas, dos fatos e das conseqüências. Desde os
materiais sintéticos até a multimídia, estamos plenos de um mundo criado por
nós mesmos e por nossos ou alheios interesses. Como saber a verdade a respeito
de sua real natureza e de suas conseqüências em nossas vidas? Podemos ter a
sensação de estar imersos numa realidade surreal
na qual flutuamos. Há um personagem de Dostoievski, em Irmãos Karamazov ,
que começa a sentir vertigens e aproximação da loucura na solidão de seu quarto,
entregue sem controle às suas imaginações cada vez mais intensas e nebulosas,
num crescendo exasperante, até que
alguém bate à porta e lhe grita o nome: “Aliocha!”. Esta intervenção de outro o
redime, desanuvia seus fantasmas e o devolve à realidade. Os outros devolvem à
realidade dura, objetiva, sem ilusões, de apelo ético.
Podemos, a esta altura, introduzir o que há de mais real e
mais sublime na verdade, na busca e na comunicação da verdade: a relação que
nos é oferecida pelos outros, por quem nos chama pelo nome, nos puxa pela
manga, nos exige um ouvido e uma palavra: a verdade se dá, se revela, no
relacionamento, no diálogo, na presença do outro. A verdade é um dom que se
troca na conversação e no exercício de comunicação verdadeira. Na Escritura
judaico-cristã, a verdade tem um caráter profético e um caráter de ensinamento.
Enquanto profecia, a verdade é uma experiência divina que o profeta sente como
o rugido de um leão (Amós, 3,8), ou seja, o próprio profeta não tem controle
sobre ela, precisa comunicar com tremor e urgência. Mas é uma verdade
“extraordinária”, em tempos e em situações extremas. No cotidiano dos dias, a
verdade é um ensinamento, está disponível na relação de aprendizado entre
mestres e discípulos.
Depois das lições de pedagogia de Paulo Freire não se pode
mais permitir que alguém pense que há uma classe privilegiada de mestres que
seria possuidora da verdade e uma classe de discípulos que nada sabe e deve se
submeter aos mestres. Todos tem alguma verdade e algum saber, todos podem
ensinar algo, e todos são discípulos, todos aprendem uns dos outros, inclusive
entre gerações. Aqui está um dos aspectos mais interessantes do Talmud e do
ensinamento judaico: o Talmud é um livro composto por uma infinidade de diálogos
de mestres que buscam a verdade. Todos são mestres e citam, para seus
ensinamentos, a autoridade de seus próprios mestres, ou seja, todos sabem que
são também discípulos – “o mestre tal levantou-se e falou em nome do mestre
tal...”. Aliás, a posição inicial e básica de cada um não é de mestre, mas de
discípulo que cita seu mestre: é como discípulo que se aprende e se exercita o
caminho da verdade, é como discípulo que se aprende também a ser portador da
verdade, mestre em nome de outro mestre, sem cair na tentação da arrogância de
se achar dono da verdade, mas simples servidor daquilo que se recebeu como
verdadeiro.
Um profeta ou um mestre solitário, isolado, é criticado pelos
mestres do Talmud como um “traficante de mentiras”. Sozinho, um mestre
confundiria a verdade com a sua imaginação, e o que ele comunicaria seria um
produto da sua mente – uma “mentira”. Somente em uma comunidade de ensinamento,
de discípulos e mestres ao mesmo tempo, amadurece uma verdadeira linguagem e se
atinge um conteúdo substancial e provado de verdade. Talvez seja este o segredo
do sucesso dos “simpósios” filosóficos, nos diálogos de Platão em torno de seu
mestre Sócrates. Esta é também a raiz antropológica da existência de um
magistério exercido em
comunidade. E justamente em tempos de ciências,
metodologicamente e culturalmente avessas a todo autoritarismo que confunde
verdade com poder, há lugares comuns de autoridade e magistério em torno de
alguma verdade científica que está em debate: uma famosa equipe de pesquisa,
uma famosa revista científica, uma comunidade científica, uma importante
universidade.
Tente-se imaginar Jesus aos doze anos, conforme Lucas 2, 46:
estava entretido com o círculo dos mestres em Jerusalém, aprendendo, interrogando
e respondendo. Todo bom discípulo é aquele que entra no círculo dos mestres. Assim
ele permaneceu até o fim: como testemunha da verdade, não somente pela palavra,
mas pagando o preço de seu testemunho da verdade com sua própria vida. A
credibilidade ou autoridade da verdade está na fidelidade que se mantém
inclusive quando se sofre e, eventualmente, se morre, pela verdade. A palavra
que os cristãos deram a este testemunho radical é martírio, palavra grega que significa justamente testemunho – com a própria vida, com a
própria morte.
A palavra “fidelidade”, nas Escrituras judaico-cristãs, é
praticamente um sinônimo de verdade. A fidelidade é a consistência, e
finalmente a prova da verdade. É o que dura contra o que há de mais corrosivo
para a verdade: o tempo e o contratempo. Fidelidade é permanência na verdade. E
verdade é, depois de um tempo, só o que permanece na fidelidade. É que a
verdade, como relação, é um laço de fé – fides
- não apenas um ato pontual de fé,
mas um ato contínuo - fidelidade. Viver na verdade é viver da fé e da
fidelidade. Como os bens transcendentais, também as virtudes fundamentais tem
um fundo comum: a verdade, a liberdade, a fé, a esperança, o amor, tem raízes
comuns e conexões comuns. Por isso “a verdade vos libertará” (Jo 8,32) assim
como somente na liberdade é possível ser verdadeiro. Da mesma forma, é na fé,
na esperança e no amor que a verdade se “verifica”, se torna veraz, operativa,
libertadora. Enfim, porque a verdade se dá em relações, em comunidade, é o amor
o caminho régio da verdade. Somente uma postura amorosa comunica bem a verdade,
mesmo a mais crua e dura. Isso é eficaz nos círculos familiares e de amizade
como na pedagogia e no jornalismo: somente no amor há comunicação adequada da
verdade.
7. Todos tem direito à
verdade, todos tem dever para com a verdade.
A verdade prospera onde há democracia e também a democracia
prospera onde há verdade, a partir da informação. Assim se compreende porque a
imprensa tem crescido em importância em nossas sociedades. Contra uma imprensa
submetida à censura de poderes totalitários e ideológicos, a liberdade de
imprensa é vital para a democracia. A liberdade de circulação de informações
garante o direito de todos à informação e também o cumprimento do dever de
todos de buscar, de saber e de dizer a verdade. A constatação de perseguição,
inclusive com mortes, de jornalistas em meio a conflitos ao redor do mundo,
reforça a necessidade de saber a verdade e de zelar por ela porque com a
verdade estão em jogo os bens maiores da democracia, que são a justiça e a paz.
Mais uma vez, há equivalências aqui: a verdade e a justiça. Trabalhar com amor
pela verdade é trabalhar para que aconteçam a justiça e a paz. Há algo de
messiânico nisso, como canta o salmo: “Amor e Verdade se encontram, Justiça e
Paz se abraçam; da terra germinará a Verdade, e a Justiça se inclinará do céu!”
(Sl 85, 11-12).
No entanto, para que a verdade e a inocência não sejam
vítimas de precipitações, nossos códigos de direito prevêem investigações que
devam ocorrer “sob segredo de justiça”. Em termos sociais, a presunção de
inocência de todo cidadão até que não se prove o contrário é vital inclusive
para a democracia. Por isso as suspeitas e os inquéritos devem seguir um
caminho de discrição sem confundir indícios com verdade. Os danos morais por
juízos precipitados podem afetar tanto réus como vítimas e todos os seus
entornos, transformando inocentes em vítimas expiatórias. O complicador é que a
transformação de um réu em vítima expiatória impede a objetividade de sua
verdade e leva à convicção em torno de uma verdade adulterada difícil de
desmascarar, a do funcionamento da vítima expiatória como descarga das
frustrações mais gerais de uma sociedade. A tarefa de quem passa informações e
comenta os fatos com suas interpretações se torna, neste ponto, uma tremenda
responsabilidade ética: até onde, e como, sem omissão mas sem distorção, se
deve passar as informações que comovem uma sociedade inteira? Um critério de
verificação de uma boa informação é o bem comum, novamente a justiça e a paz
social. E um critério operativo, é o trabalho de informação em equipe.
Já em termos pessoais, o “segredo” a respeito da verdade é
ainda mais delicado. Cada pessoa é um abismo, um mistério que nem ela mesma
abarca inteiramente, como uma aventura a ser percorrida para se compreender
melhor. O respeito aos seus segredos, às suas dores e à sua história, aos seus
processos de libertação e de revelação sem coação, o direito a não sofrer
nenhum tipo de tortura para dar informações e, mais ainda, para se revelar, é
um teste muito grande à democracia e à justiça. O nosso mundo, globalizado com
o imperialismo de sistemas de controle e ao mesmo tempo com o surgimento do
terrorismo globalizado que se rebela, está criando tensões crescentes em torno
do “biopoder” e da tecnologia cada vez mais sofisticada em torno do controle de
indivíduos. Novamente, a imprensa pode estar de um lado ou de outro, e tem uma
responsabilidade crescente do ponto de vista ético. E também aqui se aplicam os
mesmos critérios de verificação: os bens de justiça e paz, incluindo no bem
comum o bem de cada cidadão e de cada pessoa em seu inalcançável e inefável
mistério.
Em conclusão, a verdade transcendente e universal, é um
horizonte último de uma realidade histórica de caminhos de investigação, de
provação, de fidelidade, de testemunho. Os filósofos posmodernos preferem dizer
que as interpretações são um caminho plural e sem fim. Umberto Eco, comentando
seu romance de sabor nominalista O nome
da rosa, lembra que boa atitude é sorrir da busca insana da verdade e
aceitar a precariedade de nossas pequenas verdades. No entanto, há muita vida
em jogo quando se busca a verdade, e ela não é apenas um jogo intelectual, mas
uma busca ética, de justiça e de paz. Por isso, parafraseando o profeta Isaias,
como são belos sobre os montes os pés do
mensageiro que anuncia a felicidade, que traz boas notícias e anuncia
libertação (Is 52,7), mesmo na precariedade e na parcialidade de suas
possibilidades. Pois a verdade é um dom irrecusável que dá sustento à liberdade,
é uma busca comum, uma peregrinação e uma aventura percorrida em comum. Em termos
bíblicos, a verdade é tecida nas relações humanas, é saboreada na palavra das
testemunhas, em palavras e atos. Assim, as testemunhas são reconhecidas e
veneradas como mestres, como profetas e também como mártires. Foi o caso de
Jesus. Em última análise, o que é
verdadeiro, bom, amoroso, justo, belo, pacífico, comunicável, transparente,
livre, provém de uma experiência que une o humano e o divino. Ensaiando uma
resposta a Pilatos – que é a verdade? -
tomamos a liberdade de cantar parafraseando Paulo na primeira carta aos
coríntios:
A verdade é
paciente,
A verdade é
prestativa,
Não é
invejosa, não se ostenta,
Não se incha
de orgulho,
Nada diz de
inconveniente,
Não procura
seu próprio interesse,
Não se irrita,
não guarda rancor,
Não se alegra
com a injustiça,
Mas se
regozija sendo verdade,
Tudo
desculpa, tudo crê,
Tudo espera,
tudo suporta,
Porque é a
verdade. (Cf. 1Cor, 13, 4-7)
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<!--[endif]-->
<!--[endif]-->
<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]-->
Capuchinho, natural de Caxias do Sul-RS, nascido em 1949, com formação em licenciatura
em filosofia e doutorado em teologia,atualmente professor de teologia
sistemática na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e na
Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. É membro do Comitê
Editorial da Revista Internacional de Teologia Concilium e Secretário Geral do fórum Mundial de Teologia e
Libertação.
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Atribui-se a Freud a afirmação de que, caso o paciente não fale com palavras,
fala com os dedos.
<!--[if !supportFootnotes]-->[3]<!--[endif]--> SANTOS
Jair Ferreira dos, O que é o pos moderno.
Coleção Prime iros Passos, 165. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986.
<!--[if !supportFootnotes]-->[4]<!--[endif]--> O Talmud
é a reunião dos comentários rabínicos à Escritura, livro de grande importância
na tradição judaica pós-bíblica.
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