REMÉDIO E VENENO[1]
Apontamentos
sobre o poder curativo e destrutivo da religião
por Paulo Suess
Phármakon significa na língua de Sócrates “remédio” e “veneno”. Esta coincidência reflete, certamente,
uma experiência profunda sobre a ambivalência dos objetos dos nossos desejos e
a proximidade entre nossas virtudes e vícios. A experiência das religiões
mostra, que elas também são um phármakon que pode favorecer e
custar a vida. As religiões
podem ser gratuitas, mas podem tornar-se também “religião do mercado” e manipuladoras
do sagrado; podem ser um referencial para invocar a paz e para praticar a
violência.
Compreensão e
respeito entre culturas e religiões não são atitudes inatas. São adquiridas no
decorrer de processos educativos, que pretendem transformar o olhar
etnocêntrico – o etnocentrismo feliz - num olhar crítico que admite um ponto
morto na própria maneira de ver o mundo. Na cegueira da própria casa,
individual ou coletiva, pode-se
esconder a barbárie como parceira da razão religiosa e como
possibilidade do próprio projeto de vida.
Depois de umas
rápidas pinceladas sobre a gênese do campo religioso (I) pretendo refletir
sobre algumas encruzilhadas entre cristianismo e psicologia, sobre
ambivalências e horizontes que podem, neste vai e vem entre dois saberes,
maximizar o efeito “remédio” do cristianismo e minimizar o efeito “veneno”.
Vejo três eixos de um interesse recíproco entre psicologia e religião: o
princípio da realidade (II), a contribuição para as pessoas se tornarem adultas
(III) e as ambivalências e perspectivas frente à “libertação do mal” (IV).
I.
Introdução: um itinerário
No início das
religiões está um “narcisismo
primário” das “religiões primeiras”. Amalgamadas com a natureza, com o campo
sócio-político e cultural, sem diferenciação entre o campo das “crenças” e o
campo “científico”, a religião, com certas fantasias de onipotência, tinha uma
função determinante, em última instância. Até a emancipação da ciência do campo
religioso e um tratamento leigo e democrático das religiões, portanto, sem
hegemonia de uma ou outra religião ou crença, foi um longo caminho com voltas
entre um mundo desencantado (Max Weber) e reencantado.
1) O discernimento mosaico
As “religiões
primeiras” da humanidade eram religiões orais com cultos aos espíritos-ancestrais ou às divindades. Em
algum momento na antiguidade, entre 800 e 200 a.C., e em vários lugares diferentes, se produziu uma
ruptura nestas religiões. É o tempo dos pensadores ambulantes na China, dos
ascetas na Índia e dos filósofos na Grécia. Na Palestina, surgiram os profetas Isaías, Jeremias e o Deutero-Isaías. Karl
Jaspers cunhou para esta época a
expressão “tempo axial” (JASPERS,
97ss). Este “tempo axial” forjou “religiões segundas” que até hoje
coexistem com as “religiões primeiras”. As “religiões segundas” são religiões da escrita e do livro sagrado,
religiões monoteístas que se agradecem, como o judeu-cristianismo, a um ato de fundação e revelação.
Estas novas religiões se emanciparam das forças da
natureza, da pertença à tribo, ao Estado e à cultura local. E esta
“emancipação” permitiu que as religiões ultrapassaram as fronteiras de um país
e se tornaram missionárias até os confins do mundo. O ponto central deste surgimento das “religiões
segundas” é o discernimento entre o Deus verdadeiro e os deuses falsos, entre a
“verdadeira religião” e a “falsa religião”, entre ortodoxia e heresia, entre
verdade e mentira. O ponto
central desta transformação, que Jan Assmann chama o “discernimento mosaico”
(Assmann, p. 11-18), é o discernimento entre o Deus verdadeiro e os deuses
falsos, entre a verdadeira e a falsa religião, entre ortodoxia e heresia, entre
fé e magia, entre verdade e mentira.
Este “discernimento mosaico” encontra-se com toda
exatidão no primeiro e segundo mandamento (“Adorarás o Senhor teu Deus e o
servirás”, e “Não pronunciarás em vão o nome do Senhor teu Deus”), na história
do Bezerro de Ouro (Ex 32), no divórcio dos casamentos mistos (Esdras, 9) e na
purificação do povo de “todo elemento estrangeiro” depois da volta da Babilônia
(Neemias 13,30), na destruição dos templos pagãos e das sinagogas dos judeus.
O “discernimento
mosaico” não admite mais “a verdade” como algo complementar ao lado de outras
verdades. As verdades dos Outros não são simplesmente “outras verdades”. São
idolatrias e mentiras. As “religiões segundas” conhecem pagãos, hereges,
seitas, idolatria e magia para denunciar a não-verdade. O “discernimento
mosaico”, uma herança fortemente presente no cristianismo, é a afirmação de uma
verdade exclusiva. A Revelação, na tradição judeu-cristã, não é algo
culturalmente adquirido, mas algo comunicado pelo próprio Deus e, no
cristianismo, confirmado pelo próprio Filho de Deus que se encarnou na
história. O cristianismo, que articula através da encarnação, a transcendência
com a imanência, tem a noção mais ampla de universalidade.
Depois da
experiência de guerras sangrentas por causa da verdade absoluta nas religiões,
a modernidade, com seus eixos de esclarecimento, individualização e secularização produziu uma segunda separação entre
cultura, política e religião, uma neutralidade e indiferença positiva e
oficial, com a separação entre Igrejas, Credos e Estado, diante das afirmações
de verdades religiosas. Agora, os mitos das respectivas religiões e suas
práticas rituais e/ou sacramentais não
pertencem mais a uma esfera do macro-culturalmente correto. Têm a sua vida
própria entre exotismo e contestação, entre alienação e engajamento. O cultural
e religiosamente correto, no interior de um determinado Estado, é o múltiplo e
a diversidade, que afirmam a sua capacidade de uma convivência democrática.
2) Mundo da ciência e secularização
A emancipação da
ciência do campo religioso aconteceu, muitas vezes, contra as religiões
institucionalizadas. Esta trajetória tem dimensões cósmicas (Galileu, Copérnico),
geográficas (Vasco da Gama, Colombo), biológicas (Darwin e a microbiologia de
hoje), sócio-políticas (Marx) e psicológicas (Freud). Depois de uma fase de
afirmação da identidade específica não só da religião, mas também das
disciplinas e dos campos que dela se emanciparam, assiste-se hoje em vários
cenários científicos – na bioética e na física quântica, por exemplo – a uma
nova confraternização entre religião e ciência, sem constituir propriamente uma
regressão ao status quo anterior. As chamadas ciências exatas
já não estão mais tão convencidas de sua exatidão. As “exatas” que procuram a
sua verdade em partículas e partes de células e unidades temporais cada vez
menores, e o fiel que procura a sua verdade na abertura contemplativa ao todo,
compreendem as suas aproximações à realidade cada vez mais complementares,
semelhante à complementaridade entre
exatidão e relevância. Pelo olhar simples e a medição das
partículas, o observador muda o microsistema que ele observa. Quem exagera na
exatidão perde, pela especialização e particularização, o contexto
sócio-cultural que é importante para a compreensão da relevância para a
estrutura holística da realidade (cf. Dürr). Entre a experiência subjetiva da religião e a experiência
objetiva da ciência acontece um reencontro adulto.
Neste mundo,
onde “nada existe” (Dürr),
como dizem os novos físicos, mas tudo acontece num entremeio de uma
relação infinita, são necessárias as contribuições recíprocas entre religião e
ciência, entre exatidão e relevância, para banir o medo do vazio (horror
vacui) diante de um espaço vazio que se abre cada vez mais e nesta abertura
configura a vida sempre mais complexa. O fato da abertura do espaço cósmico e
dos espaços da microfísica como condição da vida, recoloca também para os seres
humanos e suas sociedades a questão das relações, da abertura e do porvir para
o fundamento de sua saúde integral. Exatidão científica e relevância religiosa,
ao trabalhar a abertura da vida em direções diferentes (imanência e
transcendência), reconhecem mais e mais que não os separam muros demarcatórios
de sua identidade, mas arbustos permeáveis, “sem confusão nem divisão” rigorosa
dos campos.[2]
A emancipação da
ciência com a sua racionalidade específica e a própria religião, no caso o
cristianismo, voltada para as realidades terrestres, contribuíram para fazer
emergir o que hoje chamamos de “mundo secularizado”. Mas, a parceria entre
racionalidade e utilitarismo, entre materialismo e hedonismo não ganhou aquela
força que se esperava para expulsar o pensamento mágico, mítico e religioso da
face da terra. Assiste-se, hoje, a um retorno do reprimido ou negligenciado
campo religioso, da religiosidade difusa, ao lado de um certo enfraquecimento
das religiões institucionalizadas.
Também a volta e a “revanche do
sagrado” (cf. CRUZ) acontece sob o signo do phármakon, do veneno, do
placebo, do remédio. Os processos de modernização, de racionalização, secularização e democratização mudaram
o mapa do mundo religioso cujas características mais marcantes são:
a)
Uma certa privatização do religioso afrouxou a
pertença herdada a estruturas denominacionais e, por conseguinte, aumentou a
circularidade entre adeptos de determinadas estruturas religiosas e credos.
b)
A emancipação do campo religioso do campo
político-cultural favoreceu um pluralismo nunca dantes visto em países
da cristandade.
c)
Uma autonomia hermenêutica que a ninguém permite
a última palavra. As Igrejas perderam a sua autoridade significativa; podem
impor signos sem controlar os significados. Sob signos uniformes se escondem
múltiplos significados diferentes.
d)
Emergiu uma mística terapêutica que promete
cura, sentido e bem-estar.
e)
Um utilitarismo milagreiro e mercantilista causa
migrações constantes em busca
do santo mais forte ou do padre-pastor mais hábil na animação de um auditório.
II.
O princípio da realidade
Na tradição
judeu-cristã, o sentido da religião pode ser interpretado como uma espécie de
discernimento, de iluminação e/ou ilustração
do caos cósmico, da opacidade da realidade e da confusão entre destino, acaso e
providência na vida própria.
A primeira
palavra de Deus que a Bíblia transmite no mito da criação, pode ser
compreendida nesta perspectiva de discernimento, iluminação ou ilustração: “Faça-se a luz!” E a luz foi
feita (Gn 1,3). Também o último milagre de Jesus, a cura do cego Bartimeu (cf.
Mc 10,46-52), aponta para esta tarefa que hoje chamamos, aproximadamente, de
auto-conhecimento e conscientização. A recuperação da vista não vem de fora.
Ela está preparada dentro de cada um como possibilidade. Ao contar a sua
história e expressar o seu desejo, o cego entra num processo de transformação
que a Bíblia chama de “cura”. “Não sou eu que vai te curar”, é a resposta do
Mestre, que se auto-denomina “luz do mundo” (Jo 8,12). “A tua fé te curou”. O
Mestre não tira as dores da vida num ato mágico, mas abre a vida fechada para
enfrentar o sofrimento. Depois da recuperação da vista, ele se faz
desnecessário e desaparece em Jerusalém. Os milagres de Jesus produzem abertura
para o mundo (cura do cego, do surdo, do mudo). Esta abertura causa mais dores
que cura. Com preconceitos e meia-verdades se vive muito agradavelmente. Mas, a
recuperação da vista tira as pessoas do campo da contingência e do acaso, e
produz espaços de responsabilidade e autonomia.
A assunção do
princípio da realidade, simbolicamente expressada na recuperação da vista, não
se esgota com a iluminação do aqui e agora. Também o passado histórico pertence
ao princípio da realidade. Este passado exige a percepção dos mecanismos de
resistência do ego, ensaios de auto-esclarecimento e um trabalho de luto como
recuperação da memória traumatizada, alienada e ideologizada (cf.
Mitscherlich). Acertadamente, diz Walter Benjamin, em sua sexta tese “Sobre o
conceito da história”:
“Em cada época é preciso arrancar a tradição
ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (...) O dom de despertar no passado
a faísca da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que
também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer" (Benjamin,
p. 224s).
O Deus da Bíblia representa na psique coletiva
e institucional, geralmente, a categoria psicológica do Pai (super-ego). No anúncio de Jesus de Nazaré recebe
outros contornos. Ele não é um Deus concorrencial frente aos desejos dos
filhos, nem um Deus-Pai dos vencedores. É um Deus que liberta os vencidos.
“Memória” e “lembrança”, na tradição judeu-cristã são uma questão de “verdade”.
Os escravos que Moisés liberta do Egito, não passam pelo rio Lethe, o rio do
esquecimento, pelo qual na mitologia grega os mortos deveriam passar, mas pelo
Mar Vermelho que se torna memória de libertação, água do não-esquecimento,
memória de seu caminhar libertador. Se Lethe significa esquecimento, memória
significa a-lethe. A-lethe, aletheia (alhqeia), na língua de Sócrates,
significa “verdade”.
O que é
“verdade” e “mentira”, “pecado” e “graça” tem um núcleo histórico que religa à
história de libertação dos escravos de todos os tempos. O que é “veneno” e “remédio”, o que é “salvação” e
“perdição” não se pode saber “em si”, através de definições dogmáticas e de
costas frente aos sofrimentos da humanidade. Os que caíram nas mãos dos ladrões
indicam o caminho para a vida inteira, a vida eterna. A verdade cristã passa
pela mediação do próximo e a memória do seu sofrimento. Os dois personagens que
perguntam a Jesus pela vida eterna, o doutor da Lei que sabia tudo, e o jovem
rico que tinha tudo, não recebem, como resposta para a sua pergunta, uma lei
complementar, mas uma ordem que questiona o seu saber e o seu ter, a ordem de se
lembrarem do outro sofredor e pobre (cf. Lc 10,25; 18,18): “Vai, e faze tu o
mesmo”, que o bom samaritano fez, e “Vende tudo o que tens e dá-o aos pobres”.
Encontramos aqui uma reinterpretação do “discernimento mosaico”. A verdade é
memória e solidariedade com os que ontem sofreram e perceção dos e interação
com os sofredores de hoje. O Deus anunciado por Jesus de Nazaré não é um
contabilizador de pecados morais, nem um apaziguador do sofrimento, mas um
sensibilizador para a gênese e a raiz do sofrimento.
A neurose
individual é, na maioria dos casos, também expressão de uma alienação social.
Existem estruturas neuróticas e estruturas de pecado neste mundo capitalista,
diante das quais as funções terapêuticas de confessionários e consultórios parecem um trabalho de
Sísifo. O trabalho da recuperação da memória traumática que faz uma rememoração
do sofrimento e da própria responsabilidade, contém também o germe da
recuperação de uma “memória perigosa” que resiste às tentativas sistêmicas do
conformismo. Memória e esperança fazem parte do princípio da realidade.
III.
Tornar-se adulto
Não só para a
Evangelização pré-moderna, também para o mundo “esclarecido” representava a alteridade dos povos conquistados a
infância da humanidade. Povos sem escrita não têm história, diz a
historiografia oficial. A situação em que os portugueses encontravam os índios,
segundo Varnhagen, "não podemos dizer de civilização, mas de barbárie e de
atraso. De tais povos na infância não há história: há só etnografia. A infância
física, é sempre acompanhada de pequenez e de miséria" (VARNHAGEN, vol. 1,
p. 30). Povos sem história se tornam
povos com história e adultos pela
incorporação nos mitos e na história (de salvação) universal. Frente ao Outro,
os missionários se consideravam “pais desta mísera nação e no-los encomendando
como filhos e crianças pequenas para que como a tais (que são) os criemos,
doutrinemos, amparemos, corrijamos, os conservemos e aproveitemos na fé e
civilização cristã” (SUESS, 1992, p. 889).
Até hoje, as
práticas institucionais, muitas vezes, não ajudam no processo de tornar-se
adulto. Determinados setores eclesiais infantilizam seus adeptos, prometem
recompensas para os submissos, ideologizam sua mensagem e fazem de Deus-Pai uma
instância de terror e temor. Este super-ego divinizado como Deus Todo-poderoso
terroriza não só os fiéis, mas a própria instituição Igreja, para muitos já não
mais uma “mãe suficientemente boa” (cf. WINNICOTT, p. 25), por ser devoradora,
como “Grande Mãe, e não ser suficientemente adulta (cf. NEUMANN). O complexo de
Édipo eclesiástico é o casamento forçado do fiel com a Igreja-Mãe que encontra
seus desdobramentos numa obsessiva devoção mariana. Esta pode sufocar uma
relação adulta com Deus-Pai. Na religiosidade popular, os santos mediadores, muitas
vezes, são mais importantes que o próprio Deus. Muitos véus que escondem essa
realidade devem cair no decorrer de uma relação de crescimento na fé.
A Igreja “Grande
Mãe”, quase num retorno ao matriarcado, incorpora os medos que poderia causar
um Deus Todo-poderoso dispensado. Ela não tem medo do clero domesticado, mas
dos fiéis adultos, dos leigos, dos pobres, dos Outros e das mulheres. São medos
de perdas possíveis. Os leigos autônomos e adultos, com sua vontade e
capacidade de democraticamente participar em muitas questões institucionais,
causam o medo da perda do poder. Os pobres representam a ameaça dos bens e da
“privacidade” de sua gestão. Se entrarem em postos de comando na Igreja
haveria, certamente, outras prioridades econômicas. Os Outros ameaçam a perda
da identidade. E a exclusão das mulheres representa o medo sexual, o medo do
corpo e da perda de uma suposta inocência. O medo das perdas causa uma espécie
de exclusão e desaparecimento dos leigos, dos pobres, dos Outros e das
mulheres, não dos lugares folclóricos, mas dos lugares decisórios.
Esta
ambivalência coletiva e institucional não assusta o psicólogo, nem o teólogo,
já que se trata, na imperfeição individual e coletiva não admitida, segundo as
diferentes disciplinas acadêmicas, de uma ideologia, neurose, mentira ou
pecado. Ao cavar um pouco mais fundo na história do cristianismo encontramos
três teólogos que ajudam a compreender as questões da imaturidade que produz
violência e as questões da ambivalência, do pecado e da culpa: Agostinho, Tomas
de Aquino e Lutero.
Lutero, na
tradição agostiniana, tentou resolver esta questão melindrosa da ambivalência
do ser humano criado por um Deus infinitamente perfeito, com a justaposição do simul
justus et pecator: somos, segundo Lutero, ao mesmo tempo justificados
diante de Deus e pecadores sem chance por força própria. Esta visão bipolar do ser humano remonta à tradição de
Santo Agostinho (354-430) que afirma, em conseqüência de suas lutas contra o
pelagianismo, o efeito de ruptura do pecado original (cf. SUESS, 29ss).
Certos seguidores de Agostinho, como os
sentencialistas do século XII (Hugo de São Vitor, Anselmo de Laon, Pedro
Lombardo), atribuem ao pecado original uma força esmagadora diante da natureza
humana. Daí provêm as exigências de um contrapeso na graça e no sobrenatural
que, nos exageros da polêmica teológica, sufocam o natural. A minimização do
natural inspirou as interpretações teocráticas do poder pontifício, não só nos
tempos de Gregório VII (1073-1085) até Bonifácio VIII (1294-1303), mas também
na interpretação da “doação Alexandrina” e nas “guerras justas” contra os
índios. A teocracia eclesiástica é o contrapeso da natureza humana
profundamente ferida. Uma humanidade fraca precisa uma Igreja forte.
Já no século XIII, nas universidades de Paris,
Bolonha, Oxford e Salamanca, nasce algo novo. Agora Aristóteles – proibido
ainda no início daquele século – já pode ser traduzido e sua leitura ajuda a
teologia a ampliar seus horizontes. Tomás de Aquino (1225-1274) faz, livremente
inspirado por Aristóteles, avançar a reflexão teológica, quando começa a
distinguir entre o natural e o sobrenatural e entre razão e fé. Como o natural
não dispensa a graça (sobrenatural), também a graça não destrói a natureza, mas
a aperfeiçoa. O direito divino, que tem a sua origem na graça, não suspende o
direito humano, que é de ordem natural. O natural está ligado à essência dos
seres e não pode ser substancialmente mudado ou corrompido. Também o pecado
original não privou a natureza de seus princípios e direitos constitutivos. Se
a ordem natural permanece essencialmente intacta, apesar do pecado (original),
então não pode haver diferenças essenciais entre cristãos e “naturais”.
Tomas de Aquino, um dominicano como Las Casas,
Francisco de Vitória e Melchior Cano, como Chenu e Congar do Vaticano II,
preparou um campo teológico que permitiu, mais tarde, defender a racionalidade
e a liberdade do índio e as realidades terrestres como lugar teológico. Até
hoje se confrontam, no interior das Igrejas, essas duas correntes, a
Agostiniana-Luterana que afirma que somente a graça salva enfatizando a ruptura
causada pelo “pecado original”. A outra corrente, a de Tomas de Aquino e de Las
Casas, nega esta ruptura porque a ordem natural não sofre falhas substantivas
através do pecado original. Estas rápidas pinceladas de uma reconstrução
histórica permitem situar um certo moralismo, maniqueísmo e fundamentalismo de
hoje no contexto de seus respectivos ancestrais teológicos.
O psicoterapeuta Tilmann Moser, em seu recente
livro “Do Deus envenenado ao Deus suportável – Reflexões psicanalíticas sobre a
religião”, redigiu como último capítulo uma “Carta ao meu inimigo Agostinho”,
onde ele acusa o “doutor da graça” de ter expulsado a alegria de viver pelo
“Princípio Pecado” (MOSER, 152-176). O terapeuta qualifica o bispo-teólogo como
teólogo da desgraça, do medo e da culpabilidade. A neurose deste “filho da mãe”
no sentido literal, diz Moser, se tornou coletiva nas guerras de religião.
Trata-se de um Édipo a quatro: a mãe, com características de uma beata, sempre
correndo atrás do filho, Agostinho como rapaz, Deus como ator principal e um
pai natural como figura marginal deixado para trás pela mãe e o filho que
correm para se unir e confundir com este Deus.
Provavelmente, Moser carregou nas tintas, mas o que
interessa neste contexto é o fato de que o maniqueísmo dos evangelizadores que
quis separar o bem do mal, causou tragédias individuais e coletivas frente aos
assim chamados hereges, pagãos e selvagens.
Por ser diferente, este Outro foi considerado inferior. Pela vontade de criar a
cultura pura, os evangelizadores se tornaram destruidores de milhares de
projetos de vida. Bernardino de Sahagún descreveu seu lugar pastoral, no México
do século 16, como um beco sem saída:
“Foi
necessário destruir todas as coisas idolátricas, todos os edifícios idolátrico
e também os costumes da república que estavam misturados com ritos de idolatria
(...), e por este motivo foi necessário desbaratar tudo e pô-los em outra
maneira de civilização (...). Mas, vendo agora que esta maneira de civilização
cria gente muito viciosa, de inclinações muito más e muito más obras, as quais
os tornam odiosos a Deus e aos homens, e até lhes causam grandes enfermidades e
vida breve. (...)” (Sahagún, 218s).
A religião dos
puros causa o estrangulamento do Evangelho. Todos pecam onde procuram ser
particularmente virtuosos. Na parábola do joio e do trigo está codificada a
sabedoria do sentido da vida num mundo que ainda está por definir-se (cf. Mt
13,24-30). As pretensões da "verdadeira" religião e da "cultura
pura" entram em colisão com a obra de separação escatológica de Deus.
Quando se pretende forçadamente introduzir o Reino de Deus na história, o seu
Espírito de liberdade e gratuidade está sendo automaticamente expulso. Nesse
caso, as últimas coisas serão piores do que as primeiras. A parábola do joio no
meio do trigo representa a opção pela responsabilidade histórica, pela pulsão
da vida no meio da morte, pela convivência de Eros e Tanatos,
contra a cultura pura e qualquer tipo de maniqueísmo.
IV.
Livrai-nos do mal
Diante
da compreensão da ambivalência
humana na parábola do joio no meio do trigo, como compreender a prece do
Pai-Nosso: “livrai-nos do mal”? As modernas utopias de libertação do mal não se cumpriram. Guerras mundiais e campanhas de extermínio racial, holocausto e tortura,
exploração e pobreza extrema, narcoterrorismo e destruição ambiental
caracterizam o lado sombrio, a história do mal do século que findou. Os
estágios da violência correspondem de maneira simétrica aos estágios de cada
cultura. Ao lado do mal
público e oficial, delineia-se uma tendência à privatização do mal no lar da
“Família Adams”. Este mal não precisa mais do grande discurso legitimador, de
motivações especiais ou de grandes emoções.
Agora o mal se transformou numa
brincadeira privada, numa maneira de superar o tédio. Quando na Madrugada de 20
de Abril de 1997, cinco jovens da classe média passam pelo índio pataxó Galdino
de Jesus dos Santos, que dormia em um ponto de ônibus em Brasília, resolvem
comprar uma garrafa de gasolina, derramam o combustível sobre Galdino e tocam
fogo, não se trata mais de uma “causa”. Sem maiores motivações podiam tocar
fogo em qualquer um que por acaso se encontre por perto. “Nós queríamos apenas
vê-lo sair correndo e pegando fogo. Era só uma brincadeira”, explicaram ao
delegado de polícia.
A libertação do mal e das
conseqüências do mal é uma promessa central da Escritura. O horizonte
escatológico da redenção do mal libera sempre de novo aquelas forças que são
necessárias não só para retirar do mal histórico sua legitimação e
plausibilidade cultural, mas para ativamente lutar para libertar-se dele. Na
visão da Bíblia, o mal é um ato destrutivo de alguém contra o projeto da
criação. A difusa anonimidade do mal pode transformar-se em estruturas
concretas para depois se tornar virulento, como "poderes da morte",
como "estruturas do pecado" (Conferencias, Santo Domingo,
13 e 243) e como "violência institucionalizada" (Conferencias,
Medellín, II, 15).
O processo de libertação do
mal na história é um processo de abertura (Is 6,10; Mc 7,34s), é história de
salvação. Israel conheceu a ação libertadora de seu Deus quando foi escolhido
de sua condição de anonimato e quando foi libertado da servidão. Experimentou
seu Deus libertador no pacto da Aliança e na tomada de posse de sua terra, no
exílio, e por fim no retorno do cativeiro. O Deus da Aliança de Israel promete
não apenas uma nova terra, mas também um novo coração numa nova Aliança (Jr
31,31; Ez 37,26).
Segundo
a Escritura, o mal não é um destino, mas é responsabilidade da própria
humanidade. O diabo é na verdade "homicida desde o início" e
"pai da mentira" (Jo 8,44), mas ele não elimina a responsabilidade
humana pelo mundo. A morte veio por um ser humano (cf. 1Cor 15,21). A destruição
da vida pode ser experimentada prazerosamente, isto é, de maneira
subjetivamente fascinante, na ampla escala que vai da entrega voluntária no
martírio até à autodestruição masoquista. Pode-se explicar “doação da vida”
como sacrifício do estranho a pedido da divindade e como destruição da vida
alheia, enquanto mera demonstração de poder.
A súplica
do Pai-Nosso (cf. Mt 6,7-15) faz referência ao "perdão das dívidas" e
à "libertação do mal" nas duas situações ideais do ano jubilar e do
Reino de Deus. Na sinagoga de Nazaré, Jesus faz referência ao ideal do ano do
jubileu, que não se realizou, e declara-o programaticamente como seu projeto de
vida (Lc 4,16s), como ano da graça para os pobres, como libertação para os
oprimidos e como recuperação da vista para os cegos. O projeto do ano jubilar
recebe na pregação do Reino de Deus uma dimensão histórico-escatológica
universal. A chegada do Reino de Deus significa a ruptura com o mal em sua
composição estrutural e em sua responsabilidade pessoal. Jesus de Nazaré
anuncia o Reino como a persistente visão da possibilidade de uma vida plena.
Ora,
o cristianismo tem a pretensão de fazer andar historicamente os dois
"ideais" - o ano jubilar e o Reino de Deus - através do anúncio da
redenção do mal, realizada definitivamente em Jesus Cristo. Com isto os demais
salvadores e caminhos de salvação se aproximam da idolatria e de ídolos que têm
ouvidos surdos e olhos que não vêem (cf. Is 6,9; Jr 5,21; Mc 8,18). Exclusão e
violência contra judeus e pagãos são o resultado. O cristianismo incorpora
mimeticamente a violência sofrida. Desde o apedrejamento de Estevão, os judeus
são publicamente estigmatizados como assassinos de Deus (At 7,52).
A
continuidade destes discursos anti-judaicos, autorizada pela Igreja, nós
podemos encontrá-la nos Padres da Igreja. Em 388, Ambrósio, bispo de Milão,
defende os que incendiaram a sinagoga de Kallinikon (Eufrates) qualifica a
sinagoga como um lugar de descrença, como a pátria da impiedade, como o
esconderijo da loucura, condenado pelo próprio Deus" (AMBRÓSIO, Epist. 40 PL 16, 1104s). Os soldados de Cristo combatem,
segundo Bernardo de Clairvaux, "sem o menor medo de pecar, por se haverem
exposto ao perigo de morte ou por terem matado o inimigo. Para eles morrer ou
matar por Cristo, não significa nenhum crime, mas implica numa grande honra (S.
BERNARDO, p. 503).
Desde
as Retractationes de Agostinho, o emprego da violência é justificado com
o "compelle intrare" ("obriga-os a entrar", Lc
14,23) do evangelho (Cf. Retractationes, II 31, CSEL 36,137). Por trás
disto encontra-se a justificativa através da "responsabilidade
positiva" pela salvação dos outros. Castigos corporais que levem à
conversão dos hereges são considerados beneficios. José de Acosta, provincial
dos jesuítas no vice-reino de Peru, exigia uma "nova evangelização",
que deveria ser acompanhada por soldados. Sobretudo os aborígines "mais
primitivos" teriam que ser forçados a entrar no reino dos céus, como
também se faz com as crianças que resistem aos médicos e aos mestres (Cf. ACOSTA,
vol. 1, livro segundo, cap. 12, p.339s, tb. Proemio, p. 69). Também José de
Anchieta (1534-1597), um dos primeiros missionários jesuítas do Brasil, relata
ao geral de sua ordem, Diego Laynes: "(...) para este gênero de gente, não
há melhor pregação que espada e a vara de ferro, na qual, mais que em nenhuma
outra, é necessário que se cumpra o compelle eos intrare” (ANCHIETA, p. 197, Carta de
16.4.1563, n. 8).
Paralelamente
à luta da Reforma contra as imagens religiosas nas Igrejas, houve na América
conquistada uma luta contra as falsas imagens dos índios. Bernal Díaz, um dos
relatores da conquista do México, descreve como depois da destruição das
estátuas dos deuses dos totonacas, e sob as lágrimas de seus sacerdotes, Cortés
mandou colocar no santuário deles uma imagem de Maria, construir um altar e
celebrar uma missa (DÍAZ DEL
CASTILLO, vol. 1, p. 161ss, cap. 51s). Na América portuguesa, já antes
da batalha de Lepanto (1571), as vitórias contra os índios eram consagradas à
"Nossa Senhora da Vitória” (Cf. MEGALE, p. 465ss). Vestida com uma túnica
branca, um manto real dourado e com uma coroa sobre a cabeça e a palma da
vitória na mão direita, ela é em tudo igual à deusa pagã da Vitória, retirada
do Fórum Romano pelo Imperador Graciano. É a “primeira dama” do mundo novo e já
não mais aquela que derruba os "poderosos" de seu trono ou que exalta
os "humilhados". A primeira paróquia do Brasil, em Salvador da Bahia,
recebeu o seu nome.
No rito e
no culto se encontra, muitas vezes, um substrato sacrificial que pode
sobreviver numa teologia vulgar da cruz. Da lógica do sacrifício "cultual" que nega o eixo central do
cristianismo, a gratuidade, à violência ritualizada é apenas um passo. Isto
ficou patente também na legitimação salvífica da escravidão como "benefício
cristão" e "grande milagre da providência e misericórdia divina"
(VIEIRA, vol. 4, Sermão décimo quarto (1633), em Sermões , tomo 11, p. 301, n. 6).
Na polaridade tensa do
mundo, o fascínio do mal pode ter suas raízes na supressão de um pólo da
realidade que produz o equívoco de considerar uma meia-verdade como sendo a
verdade inteira. O fascínio do mal aponta, portanto, para uma resistência
neurótica contra partes da realidade, para a repressão e o "aprisionamento
da verdade" (Rm 1,18). Fundamentalistas são neuróticos piedosos que
reprimem partes da realidade, para depois impor e propor a Deus e ao mundo suas
meias-verdades. Meias-verdades podem ser sentidas como prazerosas e
fascinantes. As verdades inteiras geralmente são dolorosas. Na religiosidade popular, o povo elaborou uma síntese convivencial. Nas ruas
paulistanas, estátuas do beato Anchieta e de Anhangüera, que significa Diabo
Velho disputam a atenção dos transeuntes. A Grande São Paulo é atravessada por
uma "Via Anchieta", por uma "Via dos Bandeirantes" e uma
"Raposo Tavares", lembrando o chamado "ciclo de caça ao
índio". O povo herdou a alquimia de sua sobrevivência dos índios
colonizados; homenageia seus anjos da guarda e respeita seus demônios porque
sabe como pode ser útil acender uma vela a Deus e outra ao diabo.
Conclusão
Iniciaram-se estes apontamentos com a comparação
da religião com o phármakon que pode ser um remédio e um veneno.
Um fenômeno semelhante observa-se
entre o alemão e o inglês. “Veneno” em alemão significa “Gift”, e gift
em inglês significa dádiva, presente, dom. Certamente, este parentesco lingüístico quer lembrar uma experiência ancestral de que a dádiva é ou pode ser
também um veneno, um presente de grego. E a palavra “dote” significa, em
alemão, Mitgift, quer dizer, um veneno que se leva para a casa do noivo
ou da sogra. A religião é um dote a ser criticamente observado. A psicologia
pode contribuir para o discernimento entre “remédio”, “dádiva” e “veneno”.
A tarefa da
religião não está na promessa de curar a civilização da barbárie, mas na capacidade de advertir a
humanidade sobre a barbárie coletiva e individual que está, como a “bela
adormecida”, aguardando não seu príncipe, mas seu demônio. Todos querem o
consolo da promessa de cura do mal, o revolucionário mais radical e o beato
mais devoto, diz Freud e continua: “Não lhes posso oferecer consolo algum”,
porque a pulsão da morte, o Tanatos, e a pulsão da vida, o Eros,
são dois “Poderes Celestes” imortais (Freud, p. 170).
Mesmo sem
oferecer “colo”, religião e psicologia, tomando partido para um mundo melhor e
para a construção de um Estado para todos, podem, nas transformações atuais,
contribuir para o bem da humanidade ao incentivar um olhar atento para as
raízes e a realidade das sociedades e dos indivíduos, ao tratar as pessoas como
adultas e ao incentivá-las a se tornarem cada vez mais adultas na proximidade
articulada, sem identificação, e na autonomia livre, sem, indiferença.
Finalmente, religião e psicologia não podem abrir mão da “libertação do mal”,
mas advertem para as fantasias de onipotência, os narcisismos e os purismos
infantis que se manifestam nas lutas de libertação. Ao interpretar a cruz de
Cristo como “culpa feliz”, o cristianismo encontrou, na “vida falsa”, uma fenda
onde pode entrar tudo aquilo que faz a vida valer a pena de ser vivida.
Os demônios da
“vida falsa” só são perigosos sob duas condições. Primeiro, quando são negados
ou esquecidos, e eles podem, por conseguinte, fazer festa nas costas e às custas das pessoas. Segundo, quando se tenta fugir deles ou agredi-los
com tentativas de expulsão. O espírito impuro que se expusa, volta, segundo o
Evangelho, com „sete outros espíritos piores que ele“ (Mt 12,43ss). O demônio é
sempre mais forte e mais ligueiro que as pessoas. Precisa-se aprender dialogar
com ele, como Jesus no deserto. Neste diálogo com o lado escuro da humanidade,
Mefistófeles se torna „uma parte daquela força que sempre quer o Mal, mas
sempre faz o Bem“ (cf. GOETHE, p. 89).
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[1]
Palestra proferida, no dia 18 de outubro de 2003, no encontro “Psicologia e
Religião – A ética laica da psicologia”, organizado pelo conselho Federal e
Regional de Psicologia, São Paulo.
[2] O
concílio de Calcedônia, de 451, definiu que na pessoa divina de Jesus Cristo
subsistem duas naturezas, a humana e a divina, “sem confusão nem divisão” (inconfuse,
indivise).
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