Em
Violência e o Sagrado, tradução brasileira do original La Violence et le Sacré,
o antropólogo René Girard integra a sua teoria do desejo mimético anteriormente
desenvolvida com seus estudos sobre o sacrifício ritual nas sociedades antigas,
buscando desenvolver uma teoria compreensiva do sacrifício humano em tais
sociedades.
Girard
inicia o livro demonstrando o duplo aspecto das vítimas expiatórias. Elas são a
um só tempo tratadas como seres sagrados e criminosos. Isto é assim porque
representam nestas sociedades o papel de válvula de escape dos impulsos
violentos acumulados no interior da mesma. Ela é vítima substitutiva: sobre ela
seus verdugos despejam todo ódio e sede de violência que carregam, aliviando-se
e livrando a sociedade de possíveis conflitos. Assim, para Girard, o sacrifício
ritual, presente invariavelmente em todas as culturas primitivas e antigas,
mesmo na Grécia clássica, contra vítimas humanas ou animais, tem uma
significação real e não meramente simbólica, pois serve para ?apaziguar as violência
intestinas e impedir a explosão de conflitos.?
Uma
sociedade está sempre sujeita a uma escalada de violência devido ao círculo
vicioso de represálias. Tal já foi observado por etnólogos em sociedades
primitivas. O surgimento de uma violência incontrolável no interior de uma
sociedade ocorre normalmente nos momentos da crise sacrificial, ou seja, quando
os sacrifícios rituais já não mais atuam eficientemente como válvula de escape
dos impulsos violentos.
Para Girard
os ritos sacrificiais bem como os mitos que os narram simbolicamente
representam a forma de uma sociedade reviver o seu acontecimento fundador, o
sacrifício não mais ritual, mas real e espontâneo de uma vítima expiatória.
Aqui insere-se a teoria do desejo mimético. Conforme nos conta Girard, com
fortes argumentos e amplo embasamento documental, o desejo mimético ( o desejo
de ter o bem do outro) é inerente à natureza humana. Os homens desejam o bem e
o ser do próximo invariavelmente, o que terminará por gerar a rivalidade
mimética. O detentor do bem quererá defendê-lo mas, ao mesmo tempo, estimulará
o desejo do outro pois o fato de o seu bem ser também desejado por outrem
potencializa o valor do mesmo. Quando um irromper com um gesto violento o outro
imediatamente revidará também por impulso mimético e assim se iniciará o blood
feud, um rosário interminável de represálias que somente terminará com o
sacrifício de uma vítima expiatória que trará de volta a paz à sociedade.
Para
Girard, toda sociedade primitiva em seus primórdios experimentou o evento de
uma crise de violência generalizada que ameaçava a sua própria existência e que
findou com o sacrifício de uma vítima escolhida arbitrariamente sobre a qual
foram despejado todos os ódios e desejos de vingança, restaurando-se a paz
social e fundando-se a própria sociedade politicamente organizada. Os mitos
narrariam figuradamente aqueles eventos, e dentre os mitos, Girard inclui não
apenas as narrativas mitológicas, mas a tragédia grega e mesmo o Antigo
Testamento. Nestes textos, Girard descobre a descrição figurada parcial ou
total da rivalidade mimética, da escalada de violência e do sacrifício de
vítimas expiatórias. A análise e comparação destes textos, bem como os
subsídios científicos trazidos pelos estudos etnológicos e antropológicos, compõem
a metodologia através da qual Girard chega às conclusões de seu trabalho. Assim
Girard explica o sentido oculto de muitos dos textos das culturas primitivas e
antigas: eles representam simbolicamente os horríveis eventos fundadores da
sociedade que terminam no sacrifício da vítima expiatória.
Os ritos
sacrificiais são invariavelmente encontrados nas sociedades primitivas e
antigas. É válido lembrar aqui o exemplo do pharmakós grego, um pária que era
mantido cativo para ser sacrificado em épocas de grandes crises e catástrofes,
mesmo naturais, como se sua morte pudesse eliminar a crise ou a catástrofe, tal
como,no acontecimento fundador da sociedade, o sacrifício da primeira vítima
expiatória eliminou uma grave crise de violência.
O rito serve assim para
manter viva a memória do acontecimento fundador e para servir como um despejo
de impulsos violentos.
Quando o rito já não mais desempenha a sua função, surge
a crise sacrificial que é muito bem representada pelo mito de Caim e Abel. Abel
sacrifica os primogênitos de seu rebanho, portanto tem uma válvula de escape.
Caim já não a possui, por isso não contém seus impulsos violentes e, movido
pelo desejo mimético ou inveja pelo amor que Deus tem pelo seu irmão, mata
Abel.
Não apenas
os ritos e os mitos são explicados por Girard através de suas teorias do desejo
mimético e do sacrifício, mas inúmeros costumes primitivos como o uso de
máscaras, a repulsa ao sangue menstrual e aos gêmeos, e muitas das proibições
ou regras de direito primitivas.
A teoria de Girard, cujos dois pilares são os
conceitos de desejo mimético e de sacrifício de vítimas expiatórias, constitui
assim uma verdadeira teoria antropológica e sociológica geral, compreensiva de
muitos fenômenos sociais e humanos. Assim, as teorias de Girard nos ajudam a
compreender problemas do nosso próprio tempo tais como o racismo, o
anti-semitismo ou o aborto. Afinal, a perseguição por motivos de raça ou a luta
pela liberação do aborto não seriam formas de ressuscitar o velho mecanismo
sacrificial, elegendo novas vítimas expiatórias de nossos ódios intestinos.
Numa etapa
posterior de seu trabalho, a partir da obra ? Das Coisas Ocultas desde a
Fundação do Mundo?, Girard explica como o mecanismo dos sacrifícios rituais foi
perdendo importância e sendo eliminado das sociedades ocidentais por força do
judaísmo e do cristianismo.
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