quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O olhar - viajante: a visão do outro




por Alda Rocha Mendonça

Há séculos os homens viajam pelo mundo, entram em contato com os mais diversos tipos de sociedades / povos, relatam suas experiências sob diferentes formas .
Atualmente, esses relatos, principalmente aqueles sob a forma de diários de bordo ou uma série de cartas, são considerados pela História Social como documentos, fontes que podem revelar a história das estruturas mentais comuns a uma categoria social, a uma sociedade , a uma época, isto é, a História das mentalidades. Até décadas atrás essas narrativas não eram vistas como fontes históricas de grande importância.
Um dos primeiros a registrar suas viagens foi Heródoto, de Halicarnasso, cognominado de “o pai da História” , pelo latino Cícero ( 106a .C – 43a .C ) Esse grego do século Va. C. conheceu uma boa parte do mundo: Egito, Síria, Ásia Menor, Pérsia, Macedônia, Grécia continental e insular, Líbia, Magna Grécia entre outros. Em seus relatos, destacam-se as descrições minuciosas das guerras persas ( 490 – 479a .C.) e do Egito com suas pirâmides e a Esfinge. Como bom grego, chamava os outros povos de “bárbaros”. Bárbaros para os helenos e, posteriormente, para os romanos, eram os outros, os diferentes , que não falavam grego e latim, respectivamente.
No século Va. C, até mesmo antes , os gregos tinham certeza de que a única luz que brilhava no universo era a da inteligência, da racionalidade humana, capaz de transformar o mundo, pois mais poderosa que a força animal. Sócrates dizia que o mundo era cheio de maravilhas, mas nada era mais maravilhoso que o homem. Porém essa inteligência e racionalismo humanos eram privilégios dos gregos, eles detinham essa “luz”. Eis aqui, registrado, um dos primeiros exemplos de etnocentrismo.
Através da História, os exemplos se repetem, entre os mais diversos povos. Romanos, franceses, ingleses, alemães desenvolveram e explicitaram, em diferentes momentos, esse etnocentrismo, bem como justificaram-no. As justificativas variavam em função de múltiplos interesses: políticos, econômicos, religiosos, ideológicos etc.
A sensação de estranhamento ao encontrar-se um outro , que lhe é diferente , é, praticamente , inevitável. Quem será esse outro? Tão diferente dele , que lhe causa, às vezes, medo, repulsa e sempre estranhamente; tão diferente a ponto de duvidar de sua humanidade. Isto ocorreu aos europeus nos primeiros contatos que tiveram com os habitantes do mundo recém-descoberto: a América. Cabelos, olhos, cor da pele, idioma, religiosidade, tudo lhes era estranho.
Os inúmeros relatos de viajantes europeus, já na era cristã, mostram a dificuldade de lidar com o diferente , embora igual ( ? ) . Um caso exemplar e paradigmático é relatado por Lévi-Strauss, em seu livro Raça e História ( p.22 ) : (...)”enquanto os espanhóis enviavam missões de investigação para indagar se os índios possuíam ou não alma, estes últimos dedicavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros para verificar, através de uma vigilância prolongada, se o cadáver daqueles estava, ou não, sujeito à putrefação”.
Era grande a dificuldade de perceber que os indígenas eram seres humanos, que se relacionavam de formas diversas com a natureza e com o mundo, construindo-se / constituindo-se como sociedade diferente da deles ( europeus).
A sociedade européia há séculos vem se considerando superior, como outras o fizeram antes dela. Esta cosmovisão atinge seu apogeu no século XIX, com a teoria do Evolucionismo social que , de um certo modo, legitimou, ideologicamente, a posição hegemônica do ocidente europeu com a expansão mundial do capitalismo. Esta teoria procura avalizar essa pretensa superioridade, erigindo seus padrões comportamentais, códigos morais , éticos e estéticos como o centro acabado de todas as racionalidades, exemplo perfeito do apogeu civilizatório. Os relatos dos viajantes europeus muito contribuíram para a formação e divulgação de preconceitos e estereótipos culturais.
Muitos deles ainda hoje são empregados. Um dos poucos a questionar estes estereótipos foi o francês Michel de Montaigne , no século XVI. No seu “Ensaios”, na parte sobre os canibais do Novo Mundo, escreve:
“Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé; como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos, e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado.”
Este ensaio, “Des cannibales” é, precisamente, consagrado a povos de costumes muito diferentes dos europeus, os índios da América . Nele o autor procurou “relativizar”.
“Avant la lettre”, ele utiliza um dos importantes verbos da antropologia contemporânea: relativizar, isto é, respeitar o outro na diferença, vendo-o com suas próprias razões e racionalidades, que, logicamente, não são iguais às do observador.
Segundo Peter Burke, um estudo antropológico do “mito de comer gente” “observa como era comum os viajantes perceberem os habitantes de uma sociedade culturalmente distante como canibais”.
Outro preconceito / estereótipo cultural recorrente, desde o século XVI, é o do nativo preguiçoso, seja no caso do Extremo Oriente ( malaios, filipinos, javaneses etc.) , seja na relação Norte-Sul européia, seja na América indígena. Esta visão de preguiça, indolência era uma produção de europeus nos seus relatos de viagens.
Para demonstrar que rótulos depreciativos são comuns aos mais variados povos, pode-se citar os de algumas tribos que se denominam “ os homens”, “os perfeitos” e a seus inimigos de “ovos de piolho” ,” macacos de terra”; os de europeus do norte da Europa em relação aos do sul do continente, principalmente, italianos. A estes últimos, durante os séculos XVII, XVIII e XIX, era aplicada a versão européia do mito do nativo preguiçoso.
Os viajantes citavam “homens robustos, sadios, deitados ao sol, sem fazer nada”, no sul da Itália. Ainda sobre este país, Sharp ( 1766 ) escreve que “as necessidades da natureza aqui são tão facilmente satisfeitas que a classe inferior das pessoas trabalha, mas pouco: seu grande prazer é banhar-se ao sol e nada fazer”. (Burke).
O estereótipo do italiano preguiçoso foi várias vezes reafirmado pelos mais diferentes viajantes, à parte Goethe que, em 1787, rejeitou essa ideia como um exemplo de estereótipo que os do norte tinham com relação aos dos sul.
A partir do final do século XV, os ingleses já viam a Itália como o outro / o diferente; percebiam a distância e relatavam-na. Desde este século, as viagens de britânicos à Itália tornaram-se muito frequentes e, no século XVI, o italiano era, segundo Burke , provavelmente , a língua estrangeira mais conhecida deles. Tanto a natureza do país quanto a cultura ( religião, costumes, política ) proporcionavam aos viajantes ingleses um agudo senso de distância cultural. Criticavam, frequentemente, os costumes, destacando vingança, luxúria e ciúme como marcas do povo. Veem-se esses preconceitos e estereótipos tanto nos relatos de religiosos quanto nos de laicos.
Para Richard Lessels, um padre católico, os italianos eram vingativos, conscientes de sua honra e rigorosos com as esposas. Impressionava-se com a apresentação visual, destacando serem eles (italianos) “parcimoniosos na alimentação para poder viver e amar elegantemente; gastando nas costas o que gastamos em nossos estômagos”. ( Burke).
O bispo de Salisbury, Gilbert Burnet, escocês e calvinista, viu a Itália em 1680, como o avesso do seu país: preguiça e indolência grassavam na sociedade. Não se deve esquecer que a Itália era, no século XV, o berço da Renascença ( do antropocentrismo, do humanismo , do racionalismo ) e que, em termos de arte, estava à frente das demais nações européias ,              ( principalmente as do norte) , com a elaboração da perspectiva científica , a redescoberta da pintura etc. Mesmo nesse período e nos seguintes ( com mais intensidade ) era vista como diferente , no sentido de inferioridade, pelos do norte.
No século XVII, os britânicos viam Milão como um lugar sinistro , perigoso. O protestante Skipon que visitou Pádua relatou seus choques com a falta de reverência dos italianos dentro das igrejas : “conversavam durante a missa, não tiravam o chapéu, davam as costas para o altar-mor, conversando e rindo muito”. (Burke)
No século XVIII, os do norte da Europa achavam os do sul exóticos e os ingleses parece que esqueciam que , neste século , Londres era uma cidade perigosa, um covil.
Muitas dessas viagens geravam meses de permanência na Itália, que poderia ser estendida a anos, quando seu objetivo era de educar jovens nobres, que iam acompanhados de preceptores.
Não apenas ingleses, mas também, franceses, holandeses, dinamarqueses e poloneses passavam grandes temporadas na Itália. A procura por esse destino “turístico” gerou a publicação de vários guias sobre o país, em geral, e sobre as principais cidades, como Veneza e Roma , em particular. Surgiram livros sobre “ a arte de viajar”;
instruções sobre como viajar eram um gênero literário estabelecido por volta do século XVII. Orientavam sobre o que ver e registrar nos lugares visitados: os monumentos fúnebres; as pinturas; os prédios públicos e privados, religiosos e seculares; as fortificações; os sistemas políticos; as maneiras e costumes dos habitantes. Muitos viajantes seguiam, religiosamente, esses conselhos.
Pelos exemplos acima, vê-se como europeus “rotulam” europeus, em função de suas diferenças culturais, deixando clara a oposição norte x sul, cultura x natureza,              civilização x selvageria .Destaque-se que essas análises / transcrições eram feitas por pessoas das “camadas mais altas” da sociedade: cavalheiros, nobres, padres / pastores, membros de governo etc.
Burke chega a uma conclusão sobre esses relatos: “eles revelam, ao mesmo tempo , a percepção da distância cultural e a tentativa de se chegar a um acordo ou ‘traduzí-la’ em algo mais conhecido, porque à medida em que críticas são feitas aos povos visitados, busca-se sempre a comparação com o padrão cultural do narrador ”.
As infinitas formas dos grupos humanos se relacionarem com o mundo, criando especificidades culturais, construindo a sua história, ainda hoje causam estranhamento (repulsa, atração, indiferença) a outros homens/sociedades. Difícil respeitar o outro na sua diferença; evitar rotulá-lo, classificá-lo tendo como referencial a sociedade européia.
O estereótipo do italiano preguiçoso, expondo-se ao sol, num “dolce far niente”, relatado por viajantes durante os séculos XVII, XVIII e XIX, que já fora aplicado a filipinos, javaneses, malaios etc, é o mesmo lançado sobre os habitantes do Rio de Janeiro, no século XVIII, por ingleses e franceses, que aqui estiveram. É como que uma transposição que remete a um padrão seguido por viajantes anteriores. Que teriam, realmente, em comum esses povos de tão diferentes continentes?
No início do século XVIII, viajantes europeus estavam à procura do “pitoresco”,uma palavra nova, que estava na moda . Seria ela sinônimo de exótico?
O Brasil desde a sua descoberta já foi “visto” como “paraíso terreal”, inferno e até mesmo purgatório ( purgar / pagar as penas), dependendo da posição e objetivo de cada ser humano nessa terra de Deus. Há relatos de franceses e ingleses que falam da sensualidade das mulheres aqui no Rio de Janeiro, com seus olhares lânguidos e propensas ao amor; da grosseria dos portugueses ciumentos e violentos com suas “senhoras”; da polícia andrajosa, mendicante, corrupta que achacava viajantes incautos , que circulavam pela cidade à noite. Estas narrativas feitas em diários de bordo, relatos, cartas etc  eram, posteriormente, publicadas na Europa sob a forma de livros de viagens. Uma oposição, muito cara ao Setecentos europeu, revela-se nestes textos: natura x cultura. A natureza é elogiadíssima por sua beleza luxuriante, enquanto que o homem/ povo a degrada já que é degradante com seus hábitos e códigos morais. É o que se vê na oposição norte-sul de alguns viajantes; aqui a barbárie, a selvageria. No caso do Brasil parece que a imagem do Rio , descrita por europeus no século XVIII , se cristalizou chegando até ao século atual.
No século XIX, a teoria do Evolucionismo de Spencer e Tylor procura explicar a diferença entre os povos tendo como “padrão civilizatório’ a sociedade européia branca, cristã, tecnológica. Nesta perspectiva todos os povos não europeus saíam perdendo, porque quanto mais diferente dos padrões europeus mais atrasados, inferiores. Esta ideologia foi divulgada com intensidade até às primeiras décadas do século XX e internalizada por muitos brasileiros.
É emblemática a crítica feita ao Brasil em função de sua ”mistura” étnica (índios, africanos e europeus), por Gobineau, conde e diplomata. Este representante do governo francês no Rio de Janeiro, grande amigo do imperador Dom Pedro II, se horroriza com a população carioca, declarando que, aqui, dificilmente construir-se-ia uma grande nação por causa da miscigenação. Segundo ele , que é considerado o “pai das teorias racistas”, “as grandes raças primitivas que formavam a humanidade nos seus primórdios - branca, amarela, negra – não eram só desiguais em valores absolutos , mas também diversas nas suas aptidões particulares. A tara de degenerescência estava, segundo ele, ligada mais ao fenômeno da mestiçagem do que à posição de cada uma das raças numa escala de valores comum a todas ( ... ) “ Lévi-Strauss” (p.8). Seus escritos foram publicados , sendo reeditados e com certeza muito contribuíram para essa visão da miscigenação como sinônimo de inferioridade étnica e intelectual.
Os preconceitos e estereótipos culturais sobre brasileiros , aliados ao etnocentrismo e ao evolucionismo europeus, contribuíram para uma determinada cosmovisão, segundo a qual este povo está, geralmente, numa posição de inferioridade, de desvantagem. O pior é que esses valores exógenos foram tão introjetados que , muitas vezes, brasileiros se “olham” com um olhar “europeu”, isto é, analisam-se com os valores da cultura européia. Em países que foram colonizados ( metade do mundo o foi) , é normal durante algum tempo, seguirem-se os padrões culturais da Metrópole. O problema reside em que, mesmo após a independência política e neste século, ainda se julguem, se avaliem através dos padrões do Velho Continente.
Esse “olhar europeu” é utilizado, às vezes, na hora se julgar outros brasileiros, de outras regiões na quais houve grande influência das culturas indígena e africana. Quanto maior a influência indígena ou africana, maior a distância dos padrões europeus e se a cultura européia é usada como parâmetro ( “régua e compasso” de Giberto Gil ) para medir o mundo , logicamente estes brasileiros são colocados numa posição de inferioridade: menos “desenvolvidos”, menos “capazes” , pois que miscigenados. É só pensar na seleção de candidatos a postos de trabalho em algumas empresas ( tipo de roupa, boa aparência ? ).
A escala de valores e de julgamento é calcada, ainda, no evolucionismo do XIX. Não se pretende desvalorizar as culturas européias , mas, também, não se admite desvalorizar qualquer outra, produto ou não de miscigenação. Como colônia, reconhecesse, logicamente, a marca forte na sociedade brasileira da cultura portuguesa: o idioma, os valores estéticos , os códigos morais e éticos, a construção intelectual, a religião ( oficial durante séculos ) etc.
Com o desenvolvimento incrível da antropologia e das ciências sociais, felizmente , esses “olhares” estão mudando, mesmo que lentamente. As imagens internalizadas, introjetadas são seculares, daí a dificuldade, ainda hoje, de olhar com outros olhos. Um “olhar brasileiro” ? Talvez, mas não num futuro próximo.
O “outro” vem provocando“ estranhamento” desde tempos imemoriais, só que aqui, no Brasil, todos os outros ( miscigenados ou não, filhos de imigrantes ou não, produtos da terra ou não ) são brasileiros, pois aqui nasceram. Perdão pela tautologia, ela possui uma função didática! Brasileiros, de qualquer ascendência, não são europeus; nem os do sul e sudeste não são o “centro do mundo”, o padrão de referência através do qual os do norte / nordeste / centro-oeste têm que se mirar, imitar ou seguir o exemplo. Não se pode olhar para eles como se fossem estranhos , vivendo em regiões longínquas , exóticas e “pitorescas”, num outro mundo.
A diversidade cultural brasileira, motivo de vergonha para alguns , é justamente a riqueza desse país. É graças à mistura de heranças culturais tão distintas que se pode chamar a atenção do mundo ,oferecendo um patrimônio rico e variado ao turista, gerando empregos e divisas e, quem sabe? possibilitar uma distribuição mais eqüânime de renda, num país de tantos “desvalidos da sorte”.
A diferença continua atraindo os viajantes, como atraíra há muitos séculos.
O “outro” continua a procurar o “outro”, que lhe é igual , mas diferente!
FONTES:
1. BUCHER, Bernadette. La sauvage aux seins pendants. Paris, Hermann ed. , 1977.
2. BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio, Civilização, 2000.
3. GOFF, Jacques Le. História e memória. São Paulo, ed. UNICAMP, 1996.
4. LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. Lisboa, ed. Presença. 1980.
5. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo, Nova Cultural, 1991.
6. SOUZA, Laura de Mello e . Inferno Atlântico. São Paulo, Cia das Letras, 1993.
7. TODOROV, Tzvetan. La Conquête de l’ Amérique: la question de l’ autre. Paris,
ed. Du Seuil, 1982.
Alda Rocha Mendonça
Profª. Adjunta de História da Cultura e História da Arte – UniverCidade