O exercício humano de apreensão e compreensão da própria existência, e do universo, sempre dispôs de inúmeras formas de interpretação da realidade. Na maioria das vezes essas diferentes formas de representação utilizam-se de imagens que visam representar as experiências vividas pelos indivíduos e pelos grupos. No passado, assim como hoje, esse exercício constitui a origem do conhecimento abstrato humano, ou seja a idéia de que a experiência vivida pode ser de alguma forma perenizada por meio de um símbolo que expresse o seu valor. Os ritos e rituais que caracterizam o caminho iniciático é em grande parte resultado dessa tentativa humana de transmitir a experiência vivida aos seus descendentes, utilizando-se para isso de símbolos capazes de expressar os ciclos da vida e a conexão com a o processo de criação através de sua representação.
A vida, a morte, a matéria, o espírito/alma, o começo, o fim, e todas as faces da criação são percebidas pela humanidade no ciclo ininterrupto da vida natural. A tentativa de compreender esse ciclo pode ser feita de muitas formas, através da Religião, da Ciência, da Arte, da filosofia… enfim, toda a criação humana pode ser vista como uma tentativa de compreender a própria existência.
O caminho iniciático não é uma particularidade do universo místico/religioso, mas é uma configuração presente em todo processo humano de desenvolvimento pessoal. É por essa razão que o uso de determinadas imagens simbólicas será recorrente nas mais diversas culturas. Essa “coincidência” nos fala de que o recurso simbólico exemplifica a busca de satisfação de necessidades humanas essenciais, inerentes a todos de nossa espécie, necessidades estas que expressam a busca pela (re)ligação do sujeito com sua origem e sua essência primordial, ou seja, é como se de alguma forma, todos nós inconscientemente buscássemos o vínculo de nossa existência com algo que transcenda nossa vida ordinária e do dia-a-dia, algo que nos conecte para sempre com a dinâmica do universo e nos aproxime da imortalidade, que é representada pelas figuras divinas.
Tanto as experiências de nossa vida cotidiana quanto as figuras que transcendem essas experiências são representadas em linguagem simbólica, seja por meio de parábolas e/ou metáforas. Existem símbolos que são universalmente aceitos e podem ser encontrados nas mais diversas culturas, alguns associam-se ao nosso desejo de transcender, como as Montanhas; outros expressam nossa luta cotidiana no plano da existência material, como a Espada; outros traduzem a nossa interdependência do mundo físico, como a caverna; e há aqueles que visam simbolizar a interação dinâmica entre esses vários níveis da experiência, a Árvore é o principal deles.
A Árvore como um símbolo sagrado é encontrada em várias culturas humanas e nas mais diversas épocas de nossa história. A Árvore representa a estrutura do universo, sendo que seus galhos simbolizam a conexão com as dimensões superiores da existência, ao passo que a raiz evoca a nossa vinculação com os aspectos mais primitivos e funcionais de nossas vidas. Da mesma forma, as múltiplas dimensões da Árvore e seus frutos representam os atributos positivos do eterno. A Árvore Sagrada faz parte da tradição de povos tão distintos quanto Maias, Escandinavos, Chineses, Maoris, Africanos e Hebreus.
Em nossa maneira de tentar explicar a nossa própria existência em suas diferentes dimensões, conferimos às experiências vividas valores distintos, em função basicamente das sensações e sentimentos desencadeados por cada um dos eventos que experienciamos. Um dos recursos simbólicos que utilizamos para eternizar uma experiência e dar-lhe significado é a metáfora espacial. A metáfora espacial implica na distribuição dos eventos no espaço geográfico de forma que sua função esteja associada a um determinado local/região do nosso campo de percepção/ação. Por exemplo, a Mandala, sua forma circular confere uma ênfase especial ao centro que representa o ponto de origem, e que por conseguinte encerra a idéia de união, assim como de equilíbrio, já que todo o movimento circular gira em torno desse ponto, que se torna tanto o distribuidor quanto o catalisador do movimento. Encontraremos essa metáfora espacial da Mandala/Círculo em lugares tão diversos quanto “O Esquema Cabalístico da Criação”(Herne, 10/02/02) quanto nas Danças Circulares Sagradas.
A Metáfora Espacial revela a força que as dimensões espaciais possuem em nossa interpretação do mundo, assim como pode nos ajudar a entender suas conotações arquetípicas. Os conceitos de “acima” e “abaixo”, por exemplo, possuem numerosas associações conotativas que tem um caráter universal. Em culturas de línguas diferentes, a idéia de sentir-se bem é associada a dimensão espacial do alto, do movimento crescente: “pra cima”, “10/1000”, “no topo”. Por outro lado, quando nos sentimos tristes, derrotados, apáticos usamos expressões que remetem a dimensão espacial do baixo, do movimento decrescente: “no fundo do poço”, “no limbo”, “na sarjeta”, etc. Da mesma forma, acreditamos que podemos “superar dificuldades”, que nosso padrão de vida está “caindo” ou “subindo”, que nossas chances “foram pelo ralo” ou que atingimos “o topo”.
Na Mitologia, nos Contos de fadas, nas Religiões, assim como nas expressões do dia-a-dia, encontraremos imagens que reportam ao espaço geográfico do alto como sendo símbolo de ascensão física e/u espiritual, em paralelo, os lugares subterrâneos como cavernas, poços e minas estarão associados a idéias tristes como morte, queda e todo tipo de perda. Os Deuses que habitam os lugares altos costumam apresentar características menos humanas como inveja, luxúria, cobiça, etc., que os Deuses que habitam as profundezas da terra. Mesmo quando características muito humanas são encontradas em Deuses do alto, isso é colocado de forma lúdica, jocosa, ao passo que nos Deuses dos subterrâneos essas características são mostradas de forma destrutiva e agressiva. Também é nos subterrâneos que habitam criaturas monstruosas e primitivas como ogros e dragões, e todo a sorte de seres rastejantes,venenosos e mortais, ao passo que grande parte dos seres míticos/mitológicos tidos como superiores apresentam alguma habilidade de vôo, que muitas vezes pode ou não ser representada por asas, ou qualquer outro tipo de deslocamento que independa do contato com o solo.
Dessa forma, objetos e estruturas verticais geralmente simbolizam níveis superiores e/ou inferiores da experiência, a existência e do ser, e a Árvore Sagrada é um dos símbolos humanos que apresenta essa estrutura. A imagem do Buda Sakiamuni recebendo sua iluminação, após 49 dias de meditação profunda, sentado sob a árvore Bodhi, normalmente representada como uma figueira da índia (na verdade, um trabalho profundo de iluminação dos 49 níveis de sua mente pela energia sagrada da kundalini, simbolizada pela Árvore do Bem e do Mal), é um forte exemplo do caráter simbólico da Árvore como expressão dos mundos superiores e inferiores. Um outro bom exemplo disso é Yggdrasil, a árvore mítica escandinava representada por um gigantesco Freixo situado no cimo de uma montanha, cujos galhos mais altos atingem o Valhalla, a morada dos deuses, e suas raízes (as forças primárias) estendem-se até duas fontes: a da primavera e a da sabedoria, guardadas pelo lobo Fenris (a Lei) e pelo gigante de gelo Mimir (as forças instintivas da natureza).
Assim como podemos também ver na Árvore da Vida dos Cabalistas, cujas raízes estão em Malkut, ou reino e o topo em Kether ou a Coroa, a árvore como símbolo arquetípico indica uma conexão entre os mundos superiores e inferiores. Tal conexão se torna possível por meio de uma terceira estrutura da árvore, o seu tronco. É através do tronco que podemos ascender da raiz à copa, do mundo material ao mundo espiritual. No corpo humano, o simbolismo vertical de conexão entre os mundos aparece na coluna vertebral, que representaria a idéia de progresso moral e espiritual, servindo de conexão entre as funções inferiores (sexualidade, atividades de liberação de toxinas) e superiores (conhecimento, iluminação espiritual). Dessa forma, assim como o tronco, a coluna vertebral torna-se um símbolo de transcendência ou transformação.
A necessidade do tronco para se atingir a copa da árvore, fala-nos de algo muito próprio do caminho iniciático, que é a idéia de que o processo de iluminação não implica na eliminação de nossa porção animal, física, material, mas na integração desta ao movimento dinâmico da existência, de forma que isso nos permita usar essa energia telúrica, terrena, para nosso próprio crescimento. Em verdade, essa é a proposta de formas de conhecimento como a Yoga e a Dança do Ventre, por exemplo.
Na Yoga, entende-se ser necessário o despertar da energia Kundalini, localizada na base da coluna vertebral e representada por uma serpente. Essa energia associa-se fundamentalmente as forças da terra, as necessidades básicas de sobrevivência como comer e reproduzir e aos sentimentos de manutenção das condições necessárias para isso, sua força de ação fundamenta-se no contato do corpo com o solo através de pernas e pés. O despertar da Kundalini, tem por finalidade a condução dessa energia coluna acima, a fim de que ao subir pela coluna ela desperte vários centros espirituais (Chacras), até atingir o mais alto deles, o “Lótus de mil pétalas”, localizado no topo da cabeça, e assim, promover a conexão entre os dois níveis da existência.
Na Dança do Ventre o processo é similar, inicia-se o aprendizado por meio do trabalho de conscientização corporal através de exercícios de pés, pernas e quadril que representam a ligação da mulher com a terra, isso vai promovendo o desbloqueio dos movimentos da região do ventre e membros inferiores, e favorecendo a circulação da energia corporal. Há a inclusão progressiva de movimentos dos membros superiores, e por fim o trabalho de coordenação entre os dois níveis corporais, levando por fim aos estágios mais avançados da Dança que são caracterizados pela harmonização entre os membros inferiores e superiores do corpo feitas sob o pulsar rítmico da musica. Esse envolvimento integral do corpo e mente da Dançarina com a musica pode ser expresso na dança de transe ritual conhecida como Zaar, e em outras formas de compreensão do aspecto iniciático e mítico dos símbolos e movimentos utilizados na Dança.
Esses breves exemplos servem como ilustração da função simbólica da Árvore como veículo de conexão do ser humano com os diversos níveis da existência. De certa forma… “o ser humano é o ponto de encontro entre o Céu e a Terra, é uma imagem da criação, e por essa razão pode ser entendido como uma árvore em miniatura completa mas irrealizada, e situada em um grau inferior ao dos anjos, o homem tem a escolha de elevar-se galgando os próprios ramos, até atingir o derradeiro fruto” (Z’ev ben Shimon Halevi, 1991). Nesse sentido a coluna vertebral, como símbolo correspondente ao tronco da Árvore Sagrada, nos torna um símbolo vivo da dinâmica universal e nosso próprio veículo de ascensão aos níveis superiores da existência.
A partir dessa concepção talvez seja mais fácil compreender o fascínio infantil por “trepar” em árvores, esse exercício único que nos permite atingir a copa, os galhos mais altos por nossos próprios méritos, e de lá descortinar o mundo, ou colher o fruto do nosso esforço, compartilhando o espaço com os passarinhos – os seres de asas, aqueles que atingem as alturas – conhecer o inacessível e tornar-se uno com ele.
*Angelita Viana Corrêa Scárdua é Psicóloga Clínica; Mestre em Psicologia Social pela USP (SP); Especialista em Abordagem Junguiana; em Neurociências e Comportamento e Professora Universitária.
Seu blog continua maravilhoso. Felizes aqueles que podem consultá-lo!
ResponderExcluirCada vez melhor esse lugar! Está cada vez mais o senhor se tornando quem és: inevitavel mestre e irmão da antiguidade!
ResponderExcluirComo sempre, admiro muito tuas reflexões, Ygbere!
ResponderExcluirEspero ter acesso em 2011 a muitos desses pensamentos.
Adorei!
Abraço
Fatima Desombergh