terça-feira, 10 de maio de 2011

Evolucionistas e criacionistas


Talvez não haja mais eloqüente sinal da miséria mental dos nossos tempos do que o debate entre o evolucionistas e anti-evolucionistas. Nunca tanta informação científica foi usada a serviço de idéias tão simplórias e filosoficamente insustentáveis.
Invariavelmente, a questão toma aí a direção de um confronto entre a combinatória espontânea e a idéia de um “propósito” da criação. Se for possível provar que o homem como espécie biológica nasceu de adaptações oportunistas às exigências do meio-ambiente físico, acreditam os materialistas, estará derrubada a hipótese de um plano inteligente na engenharia da criação. Inversamente, para sustentar essa hipótese, será preciso reduzir cada passo da história natural a uma etapa lógica de um longo silogismo cosmogônico cuja premissa maior seriam as metas fixadas por Deus antes da criação do mundo.
Em termos aristotélicos, é uma disputa entre causas eficientes e causas finais. O método consiste portanto em examinar as primeiras para saber se elas se bastam a si mesmas ou se exigem uma explicação suplementar finalística.
O papa atual do evolucionismo, Richard Dawkins, simplifica ainda mais a fórmula do problema: trata-se apenas de saber se “organizações complexas”, como homens e computadores -- e homens que fazem computadores -- podem ser explicadas a partir de meros arranjos bem sucedidos ou se requerem um plano inteligente. Se a sucessão de arranjos não deixar nenhum hiato para as causas finais, adeus causas finais. Os adversários do evolucionismo, por isso, são pertinazes buscadores de hiatos na sucessão de arranjos oportunistas (ou causas eficientes).
Ninguém aí parece se dar conta de que a finalidade de qualquer coisa transcende, por definição, a existência material dessa coisa. Nenhum ente, examinado nas minúcias da sua constituição imanente, revelará jamais sua finalidade, porque esta, se existe, só pode realizar-se para além dele. Sinais que insinuem uma finalidade podem-se talvez encontrar no corpo do imanente, porém sempre juntos com indícios contraditórios que ao menos pareçam desmenti-la. Se a finalidade estivesse explícita, manifesta, nítida na atualidade corporal do ente, ao ponto de poder ser provada empiricamente como um dado sensível, ela estaria, por isso mesmo, plenamente realizada na existência atual, sem qualquer necessidade de um salto para o transcendente.
Mais ainda, nenhum fato, por mais simples que seja, pode produzir-se sem o encadeamento completo de suas causas eficientes, acidentais inclusive. Se por explicação se entende a reconstituição intelectual desse encadeamento, todo e qualquer ato ou acontecimento pode ser inteiramente “explicado” por suas causas eficientes, sem qualquer necessidade de uma causa final. Esta só aparece pelo sentido total do resultado último, que se estende para além da materialidade do fato mesmo.
Por exemplo, toda a sucessão causal de gestos que um marceneiro realiza para construir uma mesa tem de poder ser explicada pelas causas psicofisiológicas e processos mecânicos postos em movimento durante a operação. Se um só desses elementos falhar, a mesa não chegará a existir. Logo, a sucessão das causas eficientes não pode ser incompleta. Se dependêssemos disso para poder apostar numa causa final da mesa, jamais as mesas teriam qualquer finalidade ou utilidade. A finalidade -- portanto a intenção -- só se revela no sentido da forma final tal como este se revelará no uso que alguém possa vir a fazer da mesa. Este sentido evidentemente está para além da sucessão de gestos do construtor, portanto também além da operação total de construção da mesa. Nenhum exame das operações realizadas pelo marceneiro, bem como das transformações sofridas pela madeira durante essas operações, nos dirá jamais para que serve uma mesa ou o que o marceneiro tinha “em mente” ao construí-la. É verdade que o uso previsto determina a forma essencial da mesa; mas a conexão entre a forma essencial e a seqüência da construção é meramente acidental, já que há muitas maneiras de construir uma mesa. Logo, o conhecimento dessa seqüência, por si, não pode mostrar o propósito final senão a quem o conheça antecipadamente.
Se isso é assim para a simples fabricação de um artefato, quanto mais não o será para a totalidade operante da natureza universal!
No entanto, os evolucionistas não cessam de tentar completar a descrição em detalhes do processo originante dos seres da natureza, na esperança de suprimir as causas finais, e os anti-evolucionistas não cessam de buscar hiatos nesse processo, na esperança de salvá-las.
A dose de canhestrice filosófica necessária para se empenhar em qualquer dessas linhas de argumentação é formidável.
A rigor, seria inconcebível, metafisicamente, um mundo criado que mostrasse claramente, nos lineamentos da sua construção material, a prova da sua finalidade. A razão disto é simples. Nenhuma realidade concreta pode consistir somente de seus traços essenciais, reveladores da sua natureza. Tudo o que existe requer, para existir, a concorrência de um número ilimitado de acidentes que preparam, acompanham e sustentam sua existência. A possibilidade de localizar, na malha de acidentes, a linha nítida de uma “finalidade”, é praticamente nula. Sinais, indícios da finalidade, certamente existirão, mas sempre de mistura com uma massa obscura de acidentes fortuitos que ao menos parecerão desmenti-la e que a desmentirão mais ainda se, na esperança de encontrá-la, revirarmos cada um em busca de descobrir as causas eficientes que os produziram; pois nada acontece sem causa eficiente e a descoberta das causas eficientes que produziram os acidentes pode prosseguir indefinidamente, sem que jamais se reconstitua a lógica do todo.
Por exemplo, a execução de uma sinfonia consiste de uma grande número de gestos corporais e efeitos mecânico-acústicos que, rastreados um a um, dissolverão cada vez mais a forma final da sinfonia num caos de processos fisiológicos e físicos nos quais será impossível encontrar o menor sinal de uma “idéia musical”. É deplorável o esforço com que os anti-evolucionistas se empenham em demonstrar a existência da Quinta Sinfonia de Beethoven mediante a revelação de hiatos causais na fisiologia dos músicos e na mecânica dos instrumentos. É grotesco o ar de triunfo com que os evolucionistas, preenchendo esses hiatos, crêem ter demonstrado a inexistência de Beethoven.
Nem o evolucionismo nem o anti-evolucionismo são teorias científicas, porque nenhum dos dois pode ser validado ou impugnar o outro exceto por uma acumulação ilimitada de provas e contraprovas.
A discussão só prossegue porque é possível alguém conhecer muita biologia ignorando ao mesmo tempo os princípios da lógica científica, enquanto seu adversário conhece muita teologia sem ter a menor idéia de quanto ela depende de pressupostos metafísicos.
O mesmo argumento, mais compactamente, foi apresentado no meu artigo “Evolução e mito”, publicado no Jornal da Tarde de 6 de maio de 2004:
“As discussões correntes sobre evolucionismo e criacionismo, ciência e fé, espiritualismo e materialismo, são em geral bem pobres de compreensão filosófica, em comparação com a riqueza de dados e argumentos que põem em jogo. Se eu metesse minha colher no assunto, seria apenas no intuito de chamar a atenção para algumas precauções básicas que têm sido aí bastante negligenciadas.
É que o ser humano só tem três linguagens para dar forma ao que apreende da realidade: o mito, que expressa compactamente impressões de conjunto; a ciência experimental, que descreve e explica grupos particulares de fenômenos segundo um protocolo convencional de métodos e aferições; a filosofia, que faz a transição entre as duas anteriores. Qualquer conhecimento satisfatório das origens escapa necessariamente às possibilidades da ciência, já que a descoberta delas seria apenas mais um capítulo do mesmo processo cósmico que se pretende explicar e não um miraculoso arrebatamento da mente científica para fora e para cima do processo. Um evolucionismo conseqüente teria de explicar-se a si mesmo como etapa da evolução, mas para isso seria forçado a abdicar da pretensão de veracidade literal e consentir em ser apenas mais um símbolo provisório depois de tantos, sujeito, como todos eles, a converter-se no seu contrário mais dia menos dia. A única verdade do evolucionismo é a de uma contrapartida dialética do criacionismo, assim como nenhum criacionismo pode existir sem deixar aberta alguma brecha evolucionista.
(...) Tanto o evolucionismo quanto o criacionismo são mitos, isto é, narrativas analógicas, insinuações finitas de um conteúdo infinito, separadas do seu sentido por um hiato tão imensurável quanto esse mesmo sentido.”
Olavo de Carvalho

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