quinta-feira, 4 de agosto de 2011

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RATIO ET FIDES NO PENSAMENTO DE SIGMUND FREUD

Elinês Júlio Costa

RESUMO

Não obstante sua formação judaica, Sigmund Freud, o criador da psicanálise, é conhecido pelo seu ateísmo visceral. Em sua teoria do psiquismo humano, a crença religiosa torna-se um importante tema de estudo, sendo considerada uma ilusão mediante a qual as pessoas buscam alcançar segurança e sentido diante do sentimento de desamparo presente desde a infância. As idéias de Freud a respeito da religião adquirem um tratamento mais sistemático em sua obra O Futuro de uma Ilusão (1927). A fé religiosa seria uma expressão da neurose obsessiva universal, sendo Deus visto como uma projeção da relação dos filhos com a figura paterna. O artigo pondera que,apesar das afirmações de Freud de que as suas idéias não foram influenciadas por pressupostos filosóficos, percebe-se claramente em seus posicionamentos a respeito da religião o impacto do ceticismo iluminista, mais especificamente o pensamento de Ludwig Feuerbach. A autora também argumenta que Freud substitui uma cosmovisão (Weltanschauung) religiosa por outra científica, em que a razão (logos) torna-se uma espécie de deus. Apesar do seu cientificismo, Freud pode dar uma contribuição positiva para o aconselhamento cristão no sentido de mostrar as distorções imaturas muitas vezes presentes na religiosidade das pessoas, quer no seu entendimento de Deus, quer nas suas atitudes a respeito da vida espiritual.

INTRODUÇÃO

Não parece haver fim para os problemas da heterogeneidade entre ciência e religião. Isso, porém, torna-se surpreendente ao considerarmos as cartas trocadas, desde 1907 até 1937, entre Sigmund Freud (que se autodenominava “um judeu totalmente ateu”) e o psicanalista e pastor reformado Dr. Oskar Pfister (chamado por Freud de “querido homem de Deus”), que sustentaram um diálogo tenso, mas ao mesmo tempo caloroso, a respeito da religião e sua relação com o tema da ilusão.
Privilegiamos, nesta pesquisa, o estudo sobre a concepção freudiana da religião em O Futuro de uma Ilusão, datado de 1927. Sem dúvida, essa obra traz em si o caráter sedutor e interminável de um diálogo entre um clérigo e um ateu. Pode ser considerado um trabalho endereçado a Pfister, chamando para si a responsabilidade do seu ideal: desfazer a ilusão e, mais especificamente, a ilusão religiosa. Para Freud (1859–1939), é um ponto problemático sustentar a crença em um Deus protetor e benevolente que se mostra, de acordo com a sua interpretação crítica, incapaz de cumprir as suas promessas de um futuro feliz e de uma vida eterna. Procuraremos demonstrar que não existem motivos concretos para o receio de que a psicanálise freudiana derrube a autenticidade da fé cristã, pois esta transcende a razão e suplanta o ataque de Freud à crença religiosa.

Este estudo procura sinalizar um dos pontos de tensão no pensamento de Freud no tocante a ratio et fides (razão e fé) e chamar a atenção para uma das suas ambigüidades, a saber: a sua fé no deus logos apresentada em O Futuro de uma Ilusão. A relevância deste estudo consiste não somente em ser um
exercício acadêmico, mas também em oferecer uma tentativa de compreender a religião em Freud. Acreditamos no   m estabelecimento de uma interlocução entre os campos da teologia e da psicanálise a fim de ressaltar suas diferenças e/ou aproximações. Sobre estas últimas, os pontos em comuns são tão tênues que, a princípio, seria difícil circunscrevê-los e explicitá-los aqui. O presente trabalho nos conduz a uma síntese dos aspectos gerais da religião, com uma
conclusão final baseada nas influências, idéias e ambigüidades do autor, seguida de implicações para a prática do aconselhamento pastoral.

1. O INTERESSE DE FREUD EM FIDES

A filosofia da religião é um tema recorrente na investigação freudiana, como forma de contemplar e oferecer esclarecimentos quanto aos processos mentais inconscientes. Ao produzir o seu método específico, Freud pensou o homem e a condição humana inserida na cultura, atrelada aos ditames da psique,
estendendo-se à solução de problemas dentro de esfera diversas, dentre elas a mitologia, a história das civilizações, a origem da fé e da moralidade. Ao
estudar o conceito de religião na metapsicologia freudiana, inevitavelmente iremos nos ater a alguns fatos da sua história de vida e ao contexto de uma época que marcou a humanidade. É sobre isto que vamos tratar agora.

1.1 Momentos da vida de Freud

Uma análise dos motivos pessoais que levaram Freud ao estudo do tema da religião favoreceria muito pouco a compreensão do que de fato é relevante para os nossos propósitos – compreender o pensamento do autor. Contudo, é mister lembrar a sua origem judaica e o fato de que o problema religioso
o acompanhou ao longo de toda a sua vida, constituindo um dos principais interesses nos seus últimos anos.
Ademais, valer-se minimamente de alguns dos elementos biográficos do autor é um indício significativo para se observar a repercussão do tema da religião em sua história. Nesse intuito, chamamos a atenção para um sentimento
especial que muito influenciou Freud em sua busca pelo conhecimento. Como assinala Ernest Jones, ele “sentia uma verdadeira paixão por compreender”.1
Essa necessidade ilustra a sua atitude e o estímulo que coroou a sua vida, favorecendo a realização de contribuições reconhecidas mundialmente.

É importante perceber que certos acontecimentos da sua vida se apresentaram como decisivos para as suas atitudes posteriores em relação à religião.
Nesse sentido, uma indicação objetiva de alguns desses fatos marcantes merece consideração: a influência que recebeu da sua babá, que até os dois anos e meio costumava levá-lo à igreja católica; a atmosfera familiar isenta de uma educação rigorosamente marcada pelos princípios do judaísmo; o
envolvimento de Freud com a Bíblia Ilustrada de Philippson;2 o interesse freqüente, na adolescência, pelos estudos culturais das religiões romana, grega e egípcia, entre outras religiões orientais da Antiguidade, o que parece ter-se estendido ao longo da sua vida; o seu hobby de colecionar antiguidades, especialmente egípcias;o desejo de se tornar um herói cultural;a necessidade, na juventude, de compreender algo dos enigmas do mundo em que vivemos;a sua visão de mundo partidária da teoria de Charles Darwin, pela qual sentiu-
se fortemente atraído;a influência do ensaio de Goethe sobre a Natureza; a influência dos argumentos convincentes do professor Franz Brentano sobre a existência de Deus, cuja refutação se lhe apresentou como um grande desafio;sentimentos ambivalentes em relação ao seu pai, Jakob Freud,
que o havia privado de sua infância e falado duras palavras a seu respeito; predileção da mãe em relação a ele, acrescida da “vinculação da figura materna à morte e a Deus”;sua trajetória como médico;a descoberta da psicanálise;sua ávida busca pela compreensão do psiquismo humano; o fascínio pelos problemas culturais e o grande interesse pelo totemismo; a concepção da religião como mero conto de fada, destituída de valor; a ciência como única capaz de prestar um efetivo serviço à humanidade; descrença em um mundo sobrenatural e na “Providência Benevolente Universal” que rege o curso de todas as coisas; interesse pelo Moisés de Michelangelo, tamanha a infidelidade ao texto das Escrituras e a suposição de uma alteração no seu caráter, conforme seu ponto-de-vista; familiaridade com o destino de estar sempre na oposição e de ser posto sob o anátema da “maioria compacta
Em sua posição ateísta Freud se autodenominava um “ateu natural”, ou seja, alguém que não vê razão para acreditar na existência de qualquer Ser sobrenatural e que não sente necessidade emocional dessa crença. O mundo da natureza parecia abranger tudo e ele não conseguia encontrar evidência de nada fora dela.
Essa definição parece expressar a tentativa do autor de encontrar a legitimidade do saber sobre a psique desde a esteira do darwinismo até o cientificismo, englobando o “problema da natureza do mundo” e a “organização
mental do homem”. Esse projeto culminou na publicação da obra
O Futuro de uma Ilusão.
Sobre as expectativas de seu pai, Jakob, encontramos indícios de que ele se referiu ao nascimento de Freud como o de alguém que seria um judeu preparado para o novo mundo, um grande líder advogando a Idéia Religiosa, um mestre moderno da natureza e de suas ciências, fazendo descobertas e ao mesmo tempo reverenciando a criação de Deus.
Ora, ao contrário das expectativas do pai, embora Freud tenha advogado a sua causa em favor da natureza e das ciências e se tornado um homem revolucionário, fazendo grandes descobertas, ele deixou de se submeter aos ensinamentos da tradição judaica e reverenciar o Deus da Aliança. A idéia religiosa sempre lhe forneceu os indícios para um debate e um ataque implacável. A sua intenção era destronar crenças, deuses e o Deus da crença de seu pai, reduzindo todos eles à criação humana. Essa idéia enfática percorrerá todos os trabalhos de Freud, especialmente aqueles que tratam de cultura e a religião, como veremos a seguir.

1.2 Contextualização histórico-crítica de: O Futuro de uma Ilusão

Para podermos melhor entender o que está por trás de toda a interpretação de Freud sobre a origem da crença, façamos uma breve contextualização histórico-crítica que lançará a base da sua representação da imagem de Deus e da necessidade de religião, no texto de 1927.
Conforme nota do editor inglês, “foi com O Futuro de uma Ilusão que Freud ingressou na série de estudos que vieram a constituir seu interesse principal pelo resto da vida”.
Na ocasião, Freud já havia elaborado o Projeto para uma Psicologia Científica (1950 [1895]), apresentado as primeiras descrições sobre a mente em A Interpretação dos Sonhos (1900), sinalizado os indícios da sua visão naturalista da religião expressando o desejo de transformar a metafísica
em metapsicologia (1904 [1901]), explicitado o significado etiológico da vida sexual e da importância das experiências infantis em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), demarcado as suas contribuições sobre os
problemas culturais trazendo à luz o mito do pai primevo com a publicação da extensa obra Totem e Tabu (1912-1913), introduzido a sua metapsicologia nos artigos de 1915, exposto o seu posicionamento acerca da tolerância da vida e negação da morte em Reflexões sobre os Tempos de Guerra e Morte e Sobre
a Transitoriedade nos ensaios de 1915, escritos logo após a deflagração da I Guerra Mundial, desenvolvido o seu pensamento sobre as pulsões em Além do Princípio do Prazer (1920) e trazido as atribuições do superego em sua origem no agente paterno, esposado em O Ego e o Id (1923).

Seguem-se a esses trabalhos O Problema Econômico do Masoquismo
(1924), no qual Freud retoma o curso do desenvolvimento da infância e o temor da morte apresentado pela humanidade; Inibição, Sintoma e Angústia (1935 [1926]), enfatizando o entrelaçamento da angústia com a neurose, e A Questão da Análise Leiga (1926), que aborda a polêmica em torno da análise entre os leigos, envolvendo diretamente a aplicação da análise na cura de almas. No texto O Futuro de uma Ilusão, Freud destaca o problema do desamparo humano, apresenta a religião como sendo uma ilusão e enaltece a concepção de deus enquanto logos. Na época em que o redigiu, seu interesse girava em torno de duas questões básicas, a saber: a natureza da religião e o seu futuro.

É importante registrar alguns acontecimentos marcantes da segunda metade do século 19, período esse que em muito antecedeu a publicação de O Futuro de uma Ilusão, mas que marcou a iniciação de Freud no campo da psicanálise. Podemos dizer resumidamente que as tragédias pessoais, culturais
e sociais, e os conseqüentes sentimentos de perda, eram comuns em Viena durante a decadência imperial e encontraram sua maior expressão com a deflagração da I Guerra Mundial.
Uma característica dessa época é a interligação entre o sexo e a morte, que constituíram temas proeminentes na cultura vienense. Em meio ao estardalhaço de acontecimentos políticos, corriam boatos sobre os novos métodos de tratamento de distúrbios mentais, teorias sobre a sexualidade em geral e conflitos de interesses sociais. Nesse espírito de “esplendor nervoso”, “decadentista” e “intelectualista”, não havia como escapar à realidade cheia de aflições humanas, sendo a psicanálise um dos principais progressos intelectuais da época.

Temos aí um pequeno retrato do contexto histórico que marca os fins do século 19 até o fim da Primeira Guerra:16 crise no império, fascínio pelas doenças mentais, interesse pelo estudo das perversões sexuais, período de ruína, morte, desespero e sofrimento. Predominava o sentimento de desapontamento e de incerteza quanto ao futuro, fazendo emergir o desejo generalizado de mudanças. Para alguns, o refúgio contra estas ameaças encontrava-se na Instância psíquica que representa a internalização de cultura e da moral.
Focalizando esse clima de ambivalência predominante em Viena, que marcou a vida e posteriormente a obra de Freud, percebemos em seus escritos reminiscências dos conflitos vienenses como expressão das preocupações de seu contexto histórico, intelectual, social, econômico e emocional. Basta
considerar a predominância de temas que abordam a tendência destrutiva inerente ao homem, a compreensão das forças pulsionais (interiores),o estudo dos distúrbios neuróticos, a teoria da sexualidade humana, a relevância dos processos mentais inconscientes e, em especial, os problemas culturais. Nesse ínterim, perpetua-se um desprazer pela realidade caótica, uma recusa da metafísica, uma supremacia da ciência e uma atração pelos temas que retratam as obscuridades da psique humana.

Quase três décadas mais tarde, quando já está atenuada a situação conflituosa, Freud retoma o problema da cultura na sua análise sobre a religião em O Futuro de uma Ilusão. A obra gira em torno do esclarecimento do conceito de religião e da crítica ao papel desempenhado pela Weltanschauung (visão de mundo) religiosa. Todo o conflito é gerado pelo fato de ele refutar os argumentos da metafísica e substituir a sua descrença numa Weltanschauung religiosa pela sua crença numa Weltanschauung científica. Assim, Freud faz um apelo à humanidade “em favor da atribuição de motivos puramente racionais aos preceitos da civilização”.
Consideram-se importantes as discussões que dominaram o cenário da Áustria no período do pós-guerra e, maisenfaticamente, na mesma época em que Freud redigia O Futuro de Uma Ilusão. A primeira delas foi o movimento de reforma educacional, inspirado por ideais republicanos e socialistas e liderado pelo Ministro da Educação, Otto Glockel, com uma participação expressiva de intelectuais austríacos.
A segunda se concentrou em defender a prática analítica entre os não-médicos, comprometidos com o rigor e as exigências do ofício, e o afastamento da psicanálise de qualquer julgamento moral.
Após uma contextualização histórico-crítica dos acontecimentos, das polêmicas e dos interesses de Freud na ocasião em que veio à luz O Futuro de uma Ilusão, vale lembrar que, nessa obra, o autor se dedica a reflexões sobre o
problema da crença. Todo esse trabalho está imbuído de uma atitude dialogal, haja vista o debate do autor com um interlocutor e opositor imaginário.
Para o psicanalista vienense, pensar de acordo com a metapsicologia é o desafio e a chave para a compreensão da psique, da natureza humana e da interpretação do sistema religioso. Este era o interesse que estava por trás detoda a sua investigação sobre a origem da crença. É preciso considerar ainda que essa obra, redigida na primavera e publicada no início do inverno de 1927, nos coloca diante de um Freud apaixonado pelo otimismo cientificista e criticado pela originalidade de suas especulações e experiências, o que reforça o seu desejo de desvendar a fonte do sentimento religioso.

2. O VALOR DAS IDÉIAS RELIGIOSAS

Analisaremos agora, mais de perto, aquilo que se mostrou um dos temas centrais de Freud em suas ávidas buscas para o deciframento dos enigmas da fé. Quatro implicações importantes são salientadas por ele, em sua fase mais madura, sobre os desdobramentos da crença, à luz do argumento psicológico
– primeiro: “Por que acreditamos?”; segundo: “Em que reside o valor peculiar das idéias religiosas?”; terceiro: “Qual é, então, o significado das idéias religiosas e sob que título devemos classificá-las?”; e quarto: “Onde reside a força interior dessas doutrinas e a que devem a sua eficácia, independente, como é, do reconhecimento da razão?”
Nessa perspectiva, o principal objetivo de Freud na obra O Futuro de uma Ilusão é retomar questões específicas sobre a cultura para auxiliar na compreensão do que realmente lhe interessa, o seu conceito sobre a religião.
Esse desejo permeia não apenas a obra em questão, mas todo o seu discurso, como veremos a seguir.

2.1 O conceito de Hilfslosigkeit

O ponto de sustentação da fé em Deus, em Freud, encontra sua raison d’être no desamparo causado pelas experiências e temores da primeira infância.
Nesse diálogo Freud parece ter-se esquivado a algumas colocações do seu oponente, recusando-se a tecer melhores explicações em sua resposta. Vale dizer que Freud já havia adotado essa estratégia um ano antes, em sua Análise Leiga.
A sua construção metapsicológica sustenta a imagem do homem em toda a psicanálise sob o enfoque da sua constituição psíquica. A historiadora Elizabeth Roudinesco nos indica que a metapsicologia freudiana se deu “numa referência à metafísica, ramo da filosofia que trata das coisas especulativas, do
ser ou da imortalidade da alma. Nessa metapsicologia ele introduziu, entre outras coisas, o inconsciente, as pulsões, o recalcamento, o narcisismo, o eu e o isso”.
Várias idéias estão intimamente associadas a esse tema. De acordo com o psicanalista Zeferino Rocha, todos nós, humanos, estamos diante de um estado de Hilfslosigkeit – estado de desamparo – característico da criança que fomos um dia. Como a criança, o adulto em estado análogo também procura segurança junto das figuras paternas, idealizadas sob a forma de seres onipotentes, que tudo sabem e tudo podem.
Assim procede a maioria dos homens.
Interessante, pois desde a sua obra inaugural, Projeto para uma Psicologia Científica (1895), Freud já havia indicado alguns desdobramentos futuros sobre a natureza da religião. Ele diz: “... e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais”.Nesse contexto, uma das manifestações mais curiosas da sua investigação sobre o tema da religião é que trinta e dois anos após ter escrito o Projeto, ele retoma o problema do desamparo dos bebês em seu vínculo com a “necessidade de proteção do homem” e com a “raiz da necessidade de religião”.
Na esteira da metapsicologia freudiana o tema do desamparo humano se mostra relevante e, de forma enfática, procura decifrar os enigmas da fé. A sua primeira aparição no texto-base de 1927 decorre do comentário de Freud sobre os métodos de coibição da natureza (terra, água, tempestades, doenças
e o enigma da morte): “É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização”.
Das forças indomáveis da natureza à criação de deuses; do temor dos perigos da vida à certeza de uma proteção paterna; dos ataques do mundo externo a medidas de fortalecimento do ego e de proteção. Nessa perspectiva, Freud chama a atenção para a necessidade dos indivíduos em recorrer a uma medida
protetora que responda ao desamparo. Em seu famoso artigo Atos Obsessivos e Práticas Religiosas, ele comenta que um dos principais mecanismos de defesa da idéia de Deus é a projeção. Seguem-se a esse outros dois de maior
significado: a sublimação e o deslocamento.
É ao se reportar à idéia do desamparo inicial dos bebês – temor da perda do amor dos pais e anseio por proteção – que se articulou em Freud a suspeita de que a formação da religião vem responder a uma tentativa do homem de minimizar a sua angústia. Segundo ele, trata-se de “uma solução universalmente aceita para amenizar o sofrimento humano e reenviar o indivíduo para a situação de um futuro feliz”. Aliás, ele tenta mostrar que a crença religiosa proporciona ao homem a idéia de que o mesmo permanecerá protegido, tal como na situação da infância. Sendo assim, “para Freud, o desamparo sentido pela criança é a raiz que dá origem a toda a elaborada maquinaria teológica construída pela humanidade ao longo das eras”.

Para ele, não há como o ser humano fugir a esse estado de desamparo.
Contudo, muitos homens buscam alternativas para superá-lo. Nos tempos da sua maturidade, Freud critica a atitude do ser humano diante da realidade dos fatos, tornando-se necessário, a cada um, abolir toda e qualquer ilusão insustentável e de natureza infantil. O trabalho que ele empreende em
O Futuro de uma Ilusão caminha exatamente nessa direção, dando grande ênfase às necessidades narcísicas do homem em busca de satisfação imediata e ao desenvolvimento de sistemas de crenças que tendem a preservar algo da infância como garantia
para a satisfação das necessidades humanas. Assim, ao admitir toda a extensão do seu desamparo, o ser humano torna-se apto a superar o infantilismo outrora atuante. Nosso próximo passo é investigar a tese de Freud sobre a origem psíquica das idéias religiosas.


2.2 A ilusão religiosa

Em uma alusão parcial ao poema de Heine, Deutschland, Freud expressa o seu desejo: “Deixemos o Céu aos anjos e aos pardais”.Com este propósito, Freud nos dá ocasião para contemplarmos a sua tese principal ao declarar que as idéias religiosas proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados de experiência ou resultados finais de pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos.
É interessante percebermos que o conceito de ilusão em Freud atinge o seu clímax ao associar-se à idéia de um futuro incerto e duvidoso. Para ele, a postulação de uma vida após a morte sempre se mostrou desprezível e de uma copiosa insensatez. Não é à toa que ele manifesta o seu pensamento: “Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja feliz não se acha incluída no plano de Criação”.
Vejamos como Freud define a ilusão. A sua proposta inicial é distingui-la dos erros. Assim, utiliza-se de exemplos, classificando-os em dois grupos. No primeiro, estão quatro exemplos: a crença de Colombo na descoberta de um novo caminho marítimo para as Índias; a crença de que as crianças são criaturas sem sexualidade; a crença da moça de que seu príncipe chegará e a crença dos crentes na volta do Messias; no segundo grupo, são dados dois exemplos: a crença de Aristóteles ao imaginar que os insetos se desenvolvem a partir do esterco e a crença de uma geração anterior de médicos de que a tabes dorsalis (doença degenerativa da medula espinhal) constitui resultado de excessos sexuais. Em sua forma sintética, àqueles Freud denomina “ilusões” e a estes, “erros”.
O seu objetivo é mostrar, basicamente, que as ilusões, quer aquelas que se mostram falsas, ou em contradição com a realidade, ou possíveis de ocorrer, e mesmo aquelas que são difíceis de encontrar e que se mostram verdadeiras,
como a alquimia, derivam dos desejos humanos. Segundo ele, nos “erros” não encontramos a presença do desejo em seu cerne. Assim, a presença do desejo na formação de uma crença assume um papel preponderante em sua crítica à religião, redefinindo-a como “crença de ilusão”. Ele acrescenta:
Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá
valor à verificação.
E quanto à correspondência das ilusões com as crenças religiosas? Como ele explica tal relação? Podemos resumidamente dizer que, para Freud, as crenças:
(1) Carecem de objetividade científica: “Todas elas são ilusões e insuscetíveis de prova”.
(2) Assemelham-se a delírios: “Algumas são tão improváveis, tão incompatíveis com tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do mundo, que podemos compará-las a delírios”.
(3) São isentas de juízo: “Do valor de realidade da maioria delas não podemos ajuizar; assim como não podem ser provadas, também não podem ser refutadas. Conhecemos muito pouco para efetuar sua abordagem crítica”.
Ele parece indicar com tudo isso que o sistema das doutrinas religiosas é repleto de suposições. Tal sistema nos reenvia às realizações de desejos nas quais predomina uma busca da solução dos enigmas e necessidades do homem, de tal modo que a eleição de uma saída pela vertente religiosa alivia o borbulhar desses conflitos e demandas emocionais.

Para Freud, os escritos religiosos estão cheios de contradições, revisões e falsificações e, mesmo onde falam de confirmações concretas, elas próprias acham-se inconfirmadas. Não adianta muito asseverar que suas palavras, ou inclusive apenas seu conteúdo, se originam da revelação divina, porque essa asserção é, ela própria, uma das doutrinas cuja autenticidade está em exame, e nenhuma proposição pode ser prova de si mesma.
Em suma, de acordo com seu pensamento, o ponto fraco da crença
religiosa está na ilusão da existência de Deus. Uma ilusão que merece ser abandonada, ainda que seja necessário fazer uma revisão do relacionamento entre civilização e religião, com vistas a apaziguar os temores que certamente sempre estarão permeando a humanidade.

3. INFLUÊNCIAS, IDÉIAS E AMBIGÜIDADES

Apesar de Freud mencionar constantemente o seu afastamento da filosofia, a psicanálise desde a sua fama internacional foi impactada por adesões e críticas provenientes do campo filosófico. Nesse sentido, ele e seus discípulos que se projetaram na literatura psicanalítica não se posicionaram totalmente à parte do discurso filosófico, ainda que Freud, em especial, julgasse a matéria uma questão irrelevante. Entre aqueles discípulos que se mantiveram leais a Freud, destacamos Abraham, Eitingon, Ferenczi, Otto Rank, Ernest Jones, Brill, Sachs, Oskar Pfister, van Emden, Reik e outros; dentre os dissidentes,citamos Jung, Adler e Stekel.
É inegável a contribuição de Freud à esteira da vida mental, exercendo influência, impactando mentes e alterando humores em diversas áreas do conhecimento. Essa foi uma estrada que ele perseguiu ao longo da sua vida.
Ao levarmos em conta a grandiosidade da sua obra, percebemos que ela traz contribuições para a humanidade, ainda que haja ambivalências e obscuridades nos seus escritos, o que é de se esperar nas mentes iluminadas e dedicadas ao exercício do trabalho científico.
Não nos deixemos, contudo, enganar pela conhecida máxima, pontual e reducionista, de que “Freud tudo explica”. Como diria Drawin, “a pretensão do Saber Absoluto seria, para a psicanálise, uma forma de psicopatologia”.
Assim, em nenhum dos textos que compõem a obra de Freud pretendeu-se explicar todas as coisas.
Ao percorrer as suas investigações científicas não nos causa surpresa descobrir elementos que reforçam ambivalências e obscuridades. Nenhum pensador está isento disso. No caso da psicanálise, esses elementos só confirmam que, em si mesma, ela não detém a palavra final sobre qualquer assunto.
Pelo contrário, ao emitir avanços, recuos e contribuições dos seus conceitos mais gerais calcados nos processos mentais, Freud mostra-nos que muitos deles carecem de clareza e precisão. Uma breve explanação dos contornos da influência filosófica na metapsicologia freudiana se faz necessária.

3.1 Influência filosófica

Sob a influência da ideologia iluminista, Freud assumiu seu ateísmo até o fim de sua vida. Com toda a sua irreverência e ironia, referia-se à sua própria pessoa como “um estranho à religião de seus pais como a qualquer outra religião”.Em sua vida acadêmica sofreu influência dos mestres filiados à
Escola de Helmholtz, adeptos do projeto da Aufklärung.
Zeferino Rocha auxilia essa compreensão ao descrever sumariamente o projeto iluminista nos seis aspectos que desencadearam o apreço e entusiasmo freudiano:
De fato, o projeto iluminista era entusiasmante: (1) a libertação que emancipava o homem do medo e das superstições, levando-o a sair de sua “menoridade intelectual” e a assumir a sua “maioridade”; (2) a dessacralização da natureza, que se tornava, assim, um grande livro aberto à curiosidade de todos sem a preocupação das censuras e das interdições impostas pela autoridade daqueles que detinham o poder sobre o pensamento; (3) a desmitologização deste mesmo pensamento correlacionada com o trabalho de dessacralização da natureza; (4) o desmascaramento do poder daqueles que alimentavam suas ambições de domínio nas trevas da ignorância – poder do clero, absolutismo despótico dos imperadores, direito divino dos reis; (5) paralelamente à dessacralização da natureza e à desmitologização do pensamento, a naturalização da moral até então sufocada pelos preconceitos e, finalmente, (6) o obscurantismo religioso que servia unicamente para mascarar interesses e salvaguardar a hipocrisia, tudo isto não podia não despertar um grande entusiasmo no “espírito esclarecido”
do jovem Freud.
Na Universidade de Viena, as aulas de filosofia de Franz Brentano, um expadre que manteve seu teísmo e ensinava sobre Aristóteles, sobre a psicologia empírica e sobre as provas da existência de Deus, despertaram a curiosidade de Freud, deixando marcas indeléveis em seu pensamento. No início freqüentava as aulas em caráter obrigatório, mas por três anos voluntariamente matriculou-se em cinco de suas matérias e não poucas vezes referiu-se ao mestre como um erudito, um filósofo e um cristão. Em uma de suas cartas ao amigo Silberstein, datada de 15 de março de 1875, falou sobre Brentano:
Não escapei de sua influência – não sou capaz de refutar um simples argumento teísta dos que constituem o corolário de suas deliberações... É desnecessário dizer que sou apenas um teísta por necessidade, e honesto o bastante para admitir minha impotência diante desse argumento; contudo, não tenho a intenção de me dar por vencido tão rápida e completamente.
Apesar das evasivas de Freud,as incursões pela filosofia fizeram parte da sua formação intelectual. Ele conhecia minimamente a história do pensamento filosófico ocidental e desde o início dos seus estudos sobre a psicanálise
mostrou-se receptivo às idéias de Fetchner quanto ao princípio da constância.
Em sua obra encontramos referências à filosofia de Schopenhauer e Nietzsche.
Aqui, portanto, já precisamos levantar uma questão: A quem podemos atribuir a influência de Freud em suas convicções religiosas?

3.2 Um interlocutor não declarado no ensino freudiano

Devemos, no entanto, assinalar de qual filosofia mais especificamente Freud parece tomar emprestado o seu posicionamento sobre a religião. Apesar de não fazer nenhuma referência explícita de seu recurso às teses filosóficas,
sutilmente ele nos indica em suas idéias uma certa atitude especulativa quanto a essa matéria. Como nos esclarece Zeferino Rocha: É compreensível que, na qualidade de um Aufklärer, ele sentisse vontade de criticar a religião com os instrumentos de sua ciência psicanalítica, seguindo, desse modo, o exemplo dos seus “grandes predecessores” – tais como Voltaire, Diderot, Darwin e Feuerbach – que, nos seus respectivos campos, de modo mais vigoroso, mais completo e mais expressivo anteciparam tudo o que ele, Freud, escreveu contra a religião.
Assim, interessa-nos sublinhar que Ludwig Feuerbach (1804-1872), um filósofo apreciado pelo jovem Freud, parece ter sido um dos seus interlocutores não declarados. Segundo o psicanalista Peter Gay, Feuerbach teria dito uma
vez: “Não sou, senão, um pesquisador intelectual da natureza – um geistiger Naturforscher”. Aliás, como nos relembra Gay, esse “era um nome que Freud julgaria adequado para si próprio”.
Fato é que a influência mais significativa em Freud sobre o tema da religião à luz de ressonâncias do pensamentofilosófico e do psicanalítico nos indica que podemos atribuir a Feuerbach aquela que mais se evidencia. Na mesma direção desse filósofo, Freud defenderá a idéia de projeção. Considerando a leitura parcial de A Essência do Cristianismo cabe-nos sublinhar o impacto que ela nos causou, a partir das releituras, principalmente do segundo capítulo da obra, que trata especificamente sobre o tema da religião. O Futuro de uma
Ilusão nos pareceu aludir ao seu tônus afetivo e teórico, acentuando as idéias apresentadas no texto de Feuerbach, com acréscimos e outras articulações. Enfim, ainda que não em forma explícita, os estudiosos dizem que Freud insinua uma primeira aproximação com o pensamento desse filósofo. Sinteticamente, sobre as idéias desse autor no tocante ao assunto que nos interessa de perto, temos que:
A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo, o conhecimento de Deus o conhecimento que o homem tem de si mesmo (...) Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segredos de amor.
Em seu estudo sobre a essência da religião em geral, Feuerbach nos apresenta a religião como manifestação do conhecimento que o homem nutre por si mesmo. Assim, Deus traria em si a essência de um antropomorfismo, ainda que a religião não aceite essa tese. À luz dessa reflexão, a religião é
apresentada como “invenção humana”, ou seja, uma projeção à imagem do homem. Considerado o “pai do ateísmo moderno”, na origem do pensamento de Feuerbach estão os pressupostos racionalistas e, na origem da experiência religiosa, estão os desejos e as necessidades humanas em sua estreita conexão com o desenvolvimento cultural.
Apesar de nossa breve apreciação do assunto, julgamos suficiente citar que o paradigma freudiano quanto à religião é impressionante em sua consistência e coerência com o projeto de Feuerbach. Com efeito, estamos diante de
dois pensadores que denunciam a ilusão religiosa. Tratemos agora de um dos
pontos de tensão no pensamento freudiano.

3.3 A Fides e o espírito da Aufklärung

Mas há algo ainda que parece não se encaixar muito bem no posicionamento de Freud. Não nos parece admissível que ele recorra à razão acreditando que ela fornecerá respostas aos enigmas do universo. Contudo, as particularidades da ciência despertam o seu interesse, aguçando ainda mais a sua curiosidade. Ele admite que:
O espírito científico provoca uma atitude específica para com os assuntos do mundo; perante os assuntos religiosos, ele se detém um instante, hesita e, finalmente, cruza-lhes também o limiar. Nesse processo, não há interrupção; quanto maior é o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis, mais difundido é o afastamento da crençareligiosa, a princípio somente de seus ornamentos obsoletos e objetáveis, mas, depois, também de seus postulados fundamentais. (...) A civilização pouco tem a temer das pessoas instruídas e dos que trabalham com o cérebro. Neles, a substituição dos motivos religiosos para o comportamento civilizado por outros motivos, seculares, se daria discretamente; ademais, essas pessoas são em grande parte, elas próprias, veículos de civilização.
É interessante o diálogo de Freud com o interlocutor imaginário quando este tece a sua crítica aos esforços de substituir uma ilusão valiosa por outra,carente de valor. Para o interlocutor, o não reconhecimento de Freud quanto às vantagens da doutrina religiosa dá indícios de um discurso reducionista. Freud responde a isso:
Não sou inacessível à sua crítica. Sei como é difícil evitar ilusões; talvez as esperanças que confessei também sejam de natureza ilusória. Aferro-me, porém, a uma distinção. À parte o fato de castigo algum ser imposto a quem não as partilha, minhas ilusões não são, como as religiosas, incapazes de correção. Não possuem o caráter de um delírio.
Para Freud, a primazia do intelecto representa o elemento destinado a extirpar os grandes males – a ignorância e o desamparo – presentes no discurso e na essência mesma da religião. Ademais, a “ânsia pelo pai e pelos deuses”,
enquanto revivência de um elo perdido, como sugere o autor, não passa de uma ilusão construída para apaziguar o sofrimento do indivíduo em sua relação com a hostilidade que permeia a civilização. Nesse sentido, acreditar num ser
espiritual superior é alimentar uma ilusão. Portanto, o desafio da ciência vai muito além, dispensando o trabalho de recorrer às fantasias infantis a fim de
assegurar sua influência e seu valor para a humanidade. Em suas palavras:
Nosso Deus, logos, atenderá todos esses desejos que a natureza a nós externa permita, mas fá-lo-á de modo muito gradativo, somente num futuro imprevisível e para uma nova geração de homens. Não promete compensação para nós, que sofremos penosamente com a vida. No caminho para esse objetivo distante, suas doutrinas religiosas terão de ser postas de lado, por mais que as primeiras tentativas falhem ou os primeiros substitutos se mostrem insustentáveis. Você sabe o porquê: a longo prazo, nada pode resistir à razão e à experiência, e a contradição que a religião oferece a ambas é palpável demais.
Freud mostra que a sua ilusão se distancia infinitamente da ilusão religiosa.
Ele chega a expressar a sua esperança de que as pessoas resistam ao teste da realidade e aceitem a “miséria humana” e a “hostilidade da vida”.
Sob a influência do conhecimento científico, elas aprenderão a lidar com as circunstâncias reais e insatisfatórias como um fator determinante aos anos de maturidade. Aliás, afastando a religião da formação infantil, o indivíduo ficará livre para fazer escolhas mais ajuizadas sem a necessidade de recorrer
à ilusão religiosa – um passo necessário e decisivo onde cada um se entrega à conquista da sua independência.
Tomando a tese darwiniana como pressuposto fundante para a sua compreensão do mundo, Freud, filho do Iluminismo e vivendo a inquietude que predominou no período entre as duas grandes guerras mundiais, não se furtou aos avanços e progressos que também imperavam naquela época. Partidário do argumento do “Credo quia absurdum” atribuído a Tertuliano, acentuou o desdém por qualquer que seja a forma de reconhecimento de uma crença religiosa.
Segundo ele, de nada adianta a crença num Deus benevolente e protetor como forma de apaziguar o temor da humanidade diante de um futuro incerto. A sua atitude iconoclasta suscitou um dos seus mais ambiciosos empreendimentos, que consistiu na tentativa de desconstruir a ilusão religiosa e conferir à ciência o seu valor. Em sua defesa final quanto à primazia do intelecto, Freud declarou:
“Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar”.
Já foi visto amplamente que o problema da alma humana ganha amplitudee profundidade na obra de Freud. É esse o âmago da teoria psicanalítica. Todavia, a despeito do tema da antropologia como ponto de partida para a interface entre psicanálise e religião, podemos indicar que os aspectos suscitados pela discussão entre razão (ratio) e revelação fides), sob o olhar da psicanálise freudiana, não se nos apresentam como novidade ou surpresa.
Ora, foi a partir dos pressupostos subjacentes à abordagem antropológica que se assistiu, desde Santo Agostinho, com o nascimento da “filosofia cristã”, à instauração de uma nova forma de se haver com essas duas realidades:
ratio et fides. Assim, a conversão do homem a Deus, mediante a fé em Cristo, através da revelação,tornou-se o eixo da acessibilidade relacional entre o humano e o divino. Agostinho já dizia: “Somente na conversão é que se torna certa a fé, que não é necessitada por nada e não pode ser transmitida através
de nenhuma doutrina, mas lhe é dada em dom por Deus”.
É importante perceber que a recusa de Freud em aceitar a crença em Jesus Cristo e em um Deus pelo fato de pré-existirem à razão vai além de simplesmente escapar à compreensão racional humana. Em O Futuro de uma Ilusão, o deus logos se apresenta como sendo o único capaz de possibilitar um “certo conhecimento da realidade do mundo”. Segundo o biógrafo Ernest Jones:
A figura central do Cristianismo, Jesus, era, aos olhos de Freud, tão embaçada pelos ditos e crenças míticas, evidentemente provenientes de fontes religiosas mais antigas do Oriente, de forma a ficar indistinto a ponto de não se visualizá-lo claramente. Ele pode ter sido um dos muitos pregadores judeus peregrinos da época. Uma vez, em uma conversa sobre o assunto, Freud me disse que Jesus podia até ter sido “uma criatura comum iludida”. Mas Paulo parecia uma pessoa bem mais definida e grandiosa. Era mais obviamente uma figura histórica, o verdadeiro fundador da teologia cristã e, em um sentido importante, da própria religião cristã.
Freud manteve até o fim da vida a sua postura racionalista e a expectativa de ver dissipadas as trevas da sua ignorância sobre a fé pelo alcance da obra da redenção. O seu projeto, no fundo, foi reducionista no sentido de valorizar demasiadamente a ciência e menosprezar radicalmente a experiência religiosa,
conferindo a esta um caráter meramente neurótico. A ele não foi concedida a revelação pela Graça Divina, apta a suplantar a tensão entre ratio et fides.
É irônico perceber que aquele que recusava a construção de Weltanschauugen, negando radicalmente toda a metafísica, foi o mesmo que reconheceu a força da razão ao prestar o seu culto ao deus logos. Ao invés de falar de Adão, falou de pai primevo. Uma repetição que marcou a sua interpretação do sagrado. No texto intitulado Freud e Wittgenstein – A Perspicácia do Cientista e a Sabedoria do Filósofo, o estudioso Paulo Margutti faz uma crítica às palavras finais de Freud em O Futuro de uma Ilusão no tocante à exaltação da ciência. Ele diz:
Trazem à mente, de imediato, o aforismo 6.52 do Tractatus, que claramente se contrapõe ao cientificismo freudiano: Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida nãoterão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa.

CONCLUSÃO

Ao longo da sua obra, a linha de pensamento de Freud acerca da religião permaneceu a mesma em comparação com os textos que o precederam. Para ele, a via de compreensão da religião instaurou-se sob uma forma de ilusão:
como já se sabe, “uma crença cheia de desejo”. Ao falar sobre a sua experiência religiosa, Freud confessou:
Nunca me permitira escutar uma voz interior e se, em vista de minha idade, não se apressasse, não seria culpa minha se eu permanecesse até o fim de minha vida o que agora sou – “an infidel Jew” (um judeu infiel).
Para ele, o inimigo da realidade, a religião, reaviva os desejos infantis e confere ao caminho da ilusão religiosa uma saída possível para o desamparo do homem. Relacionada à neurose obsessiva universal, a religião serve para aplacar a angústia humana frente à dureza da vida e à incerteza de um futuro apaziguador e feliz, enquanto forma de perpetuar os sentimentos de proteção, consolo e segurança – puro infantilismo que mereceria um corretivo. O prognóstico em Freud? O deus logos há de reinar para sempre. Dono do seu próprio destino, o homem deverá abandonar o desejo de proteção tão presentificado na infância. Entendemos que O Futuro de uma Ilusão abre-se a releituras e revisões, principalmente se considerarmos ambigüidades na sua construção teórica da neurose. É justamente a postura da fé cristã que foi rompida no pensamento de Freud. Ao invés de se calar frente aos limites do intelecto humano, ele incorreu no erro de justificar a crença a partir do argumento psicológico, em seu arsenal metapsicológico. Ele atribuía mais vantagem à necessidade dos crentes de abandonar a noção de fé do que a reconhecer a limitação da sua capacidade humana em lidar com enigmas de ordem mística. Ele não compreendeu que a razão por si só mostra-se caduca diante da metafísica.
Um mês antes da sua morte, ele escreveu o que parece ser seu comentário final sobre religião e misticismo: “O misticismo é a autopercepção obscura da região exterior ao ego, do id”.
Alimentado pelas contribuições da Aufklärung, Freud imortalizou-se, aos olhos da teologia cristã, como um filho das trevas. Apesar de não ter negado a sua descendência judaica, desde a sua infância duvidava do valor de verdade
das idéias religiosas. Assim, uma investigação da origem psíquica da crença lhe pareceu a única resposta plausível apta a satisfazer o seu anseio de busca.
Portanto, para expressar uma gratidão pelo intelecto em sua capacidade de resolver os enigmas da vida, atribuiu ao logos a figura do seu deus, já que o Deus do cristianismo reduzia-se a uma projeção humana da relação dos filhos com o pai.
Ele sustentou desde o início a religião em sua função de interdição, que fala sobre culpa, angústia e punição. Acreditamos que essa é uma tradução possível, mas não é a única. Freud não falou sobre as outras saídas possíveis,
como aquela que nos diz sobre o apaziguamento da angústia, tal como nos coloca o psicanalista Christopher Chapman.61 Segundo o pastor reformado Pfister, a visão pessimista de Freud se mostra incompreensível. Afinal, a “autêntica espiritualidade cristã” não é uma ilusão. Afinal, que crença não é cheia de desejo? Como será viver em um mundo sem ilusão? Dentre os estudiosos que analisaram a experiência religiosa de maneira positiva, citamos: Santo Agostinho, Kierkegaard, Wittgenstein, Schopenhauer, William James, Julian Marías e as contribuições de C.S. Lewis.
Entendemos que a psicanálise, assumindo quer a filogênese quer o darwinismo como ponto de partida para sua antropologia, estaria, sob o olhar da teologia judaico-cristã, equivocando-se e perseguindo um entendimento mitológico. Para nós, é preciso ir além da filogênese, da mitologia, do darwinismo
e do cientificismo, e recorrer ao criacionismo para explicar a origem do homem.

Apesar das ambigüidades no pensamento de Freud, acreditamos que a psicanálise é um instrumento benéfico para salvaguardar a qualidade da fé ou, nos dizeres de Pfister, purificá-la. Pensamos que o problema do complexo paterno e a criação de um deus pessoal que supre demandas emocionais trazem como conseqüências fixações em alguns dos atributos do ser de Deus.
Na observação dos casos clínicos, Deus se manifesta em várias facetas que destoa   da forma como ele realmente é. Ou seja: Deus, como substituto do amor paterno, geralmente é apresentado como a cópia de um pai tal como foi visto e experimentado na infância.
Em situações de aconselhamento, a direção do tratamento consistirá em um retorno aos princípios da fé com vistas a um processo de restauração da alma. Aqui, já não se fala em religião e, sim, numa filosofia de vida que tem em seu cerne a crença num Deus Criador que dá ao homem a liberdade de
escolha e se revela, como lhe apraz, aos seus filhos.

No campo prático, através do trabalho de “Jornada Interior®”, o indivíduo irá se deparar com descobertas, idéias e (re)construções da sua história, possibilitando mudanças significativas na sua forma de se haver com a espiritualidade, trazendo a consciência de identidade interna em seu contexto mais amplo: criação, queda, redenção e restauração. É importante saber quem somos, de onde viemos e aonde queremos chegar. Sabemos que somente a iluminação sobrenatural do Espírito Santo de Deus produz a obra de redenção no coração do homem. Contudo, esse método estabelece o início de um contínuo processo de crescimento e qualidade de vida. O nosso lema é: “A palavra de Deus é perfeita e restaura a alma” (Sl 19.7). Estamos conscientes de que este assunto não deveria ser tratado de forma tão apressada, mas,
infelizmente, o limite do artigo impõe-nos tal tarefa.

Sob o olhar do pastor Pfister, a teoria psicanalítica freudiana se presta a um corretivo para a vida dos cristãos. Uma medida profilática, ilustrativa e útil no meio teológico. Que se faça valer a qualidade da fé e a restauração da alma
no exercício do aconselhamento cristão, trazendo à luz resultados frutíferos para a saúde do indivíduo que se estendem à família, sociedade, igreja, nação e Reino de Deus.



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