Oyèrónké Oyěwùmí
OYĚWÙMÍ, Oyèrónké.
Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e
o desafio das epistemologias africanas. Tradução para uso didático de: OYĚWÙMÍ,Oyèrónké.
Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of Feminist Concepts and
thechallenge of African Epistemologies. African Gender Scholarship: Concepts,
Methodologies and Paradigms. CODESRIA Gender Series. Volume 1, Dakar, CODESRIA,
2004, p. 1-8 por Juliana Araújo Lopes.
Os últimos
cinco séculos, descritos como era da modernidade, foram definidos por uma série
de processos históricos, incluindo o tráfico atlântico de escravos e
instituições que acompanharam a escravidão, e a colonização europeia de África,
Ásia e América Latina. A ideia de modernidade evoca o desenvolvimento do
capitalismo e da industrialização, bem como o estabelecimento de estados-nação
e o crescimento das disparidades regionais no sistema mundo.
O período tem
assistido a uma série de transformações sociais e culturais.
Significativamente,
gênero e categorias raciais surgiram durante essa época como dois eixos fundamentais
ao longo dos quais as pessoas foram exploradas, e sociedades, estratificadas.
Uma
característica marcante da era moderna é a expansão da Europa e o estabelecimento
de hegemonia cultural euro-americana em todo o mundo. Em nenhum lugar isso é
mais profundo que na produção de conhecimento sobre o comportamento humano, história,
sociedades e culturas. Como resultado, os interesses, preocupações,
predileções, neuroses, preconceitos, instituições sociais e categorias sociais
de euro-americanos têm dominado a escrita da história humana. Um dos efeitos
desse eurocentrismo é a racialização do conhecimento: a Europa é representada
como fonte de conhecimento, e os europeus, como conhecedores. Na verdade, o
privilégio de gênero masculino como uma parte essencial do ethos europeu está
consagrado na cultura da modernidade. Este contexto global para a produção de conhecimento
deve ser levado em conta em nossa busca para compreender as realidades africanas
e de fato a condição humana.
Neste artigo,
meu objetivo é interrogar gênero e conceitos aliados com base em experiências e
epistemologias culturais africanas. O foco aqui é sobre o sistema de família nuclear,
que é uma forma especificamente europeia, e ainda é a fonte original de muitos
dos conceitos que são usados universalmente na pesquisa de gênero. O objetivo é
encontrar maneiras em que a pesquisa africana possa ser mais bem informada por
preocupações e interpretações locais e, ao mesmo tempo, simultaneamente, para
que experiências africanas sejam levadas em conta na construção teórica geral,
a pesar do racismo estrutural do sistema global.
Gênero e a
política de conhecimento feminista quaisquer estudos sérios sobre o lugar do
"gênero" em realidades africanas devem necessariamente levantar
questões sobre conceitos vigentes e abordagens teóricas. Este é um resultado do
fato de que a arquitetura e mobiliário de pesquisa de gênero têm sido em grande
parte destilada desde a Europa e experiências americanas. Hoje, estudiosas
feministas são a mais importante circunscrição com foco em gênero e a fonte de
muito conhecimento sobre as mulheres e hierarquias de gênero. Como resultado de
seus esforços, o gênero tornou-se uma das categorias analíticas mais
importantes na empreitada acadêmica de descrever o mundo e tarefa política de
prescrever soluções. Assim, embora a nossa busca por entender não possa ignorar
o papel das feministas ocidentais, devemos questionar a identidade social,
interesses e preocupações das fornecedoras de tais conhecimentos. De acordo com
esta abordagem "sociologia do conhecimento", Karl Mannheim afirma:
Pessoas
ligadas entre si em grupos se esforçam em conformidade com o caráter e a
posição dos grupos a que pertencem para mudar o mundo em torno da natureza e da
sociedade ou tentar mantê-lo em uma determinada condição. É o sentido desta
vontade de mudar ou de manter, desta atividade coletiva, que produz o fio
condutor para a emergência de seus problemas, seus conceitos e suas formas de
pensamento. (1936: 4)
As
feministas, como um destes grupos, têm usado seu poder recém-adquirido nas sociedades
ocidentais para transformar o que antes eram vistos como os problemas
particulares das mulheres em questões públicas. Eles mostraram como problemas
pessoais das mulheres na esfera privada são de fato questões públicas
constituídas pela desigualdade de gênero da estrutura social. Está claro que as
experiências das mulheres euro-americanas e o desejo por transformação
forneceram as bases para as perguntas, conceitos, teorias e preocupações que produziram
a pesquisa de gênero.
Pesquisadoras
feministas usam gênero como o modelo explicativo para compreender a subordinação
e opressão das mulheres em todo o mundo. De uma só vez, elas assumem tanto a
categoria "mulher" e sua subordinação como universais. Mas gênero é
antes de tudo umaconstrução sociocultural. Como ponto de partida da investigação,
não podemos tomar como dado o que de fato precisamos investigar. Se o gênero
predomina tão largamente na vida das mulheres brancas com a exclusão de outros
fatores, temos que perguntar: por que gênero? Por que não alguma outra
categoria, como raça, por exemplo, que é vista como fundamental porafro-americanas.
Porque gênero é socialmente construído, a categoria social "mulher"
não é universal, e outras formas de opressão e igualdade estão presentes na
sociedade, questões adicionais devem ser feitas: Por que gênero? Em que medida uma
análise de gênero revela ou oculta outras formas de opressão? As situações de
quais mulheres são bem teorizadas pelos estudos feministas? E de que grupos de
mulheres em particular? Até que ponto isso facilita os desejos das mulheres, e
seu desejo de entender-se mais claramente?
Muitos
estudiosos têm criticado o gênero como um conceito universal e têm mostrado a
medida em que ele é particular a políticas de mulheres anglófonas/americanas e
brancas, especialmente nos Estados Unidos. Talvez a crítica mais importante de
articulações feministas de gênero é aquela feita por uma série de estudiosas
afro-americanas que insistem que nos Estados Unidos de forma alguma o gênero
pode ser considerado fora da raça e da classe. Esta posição levou à insistência
sobre as diferenças entre as mulheres e a necessidade de teorizar múltiplas
formas de opressão, particularmente sobre as quais as desigualdades de raça,
gênero e as desigualdades de classe são evidentes. Fora dos Estados Unidos, as
discussões centraram-se sobre a necessidade de atentar-se ao imperialismo, à
colonização e outras formas locais e globais de estratificação, que emprestam
peso à afirmação de que o gênero não pode ser abstraído do contexto social e
outros sistemas de hierarquia.
Neste artigo,
gostaria de acrescentar outra dimensão para as razões pelas quais o gênero não
deve ser tomado por seu valor nominal e, especificamente, para articular uma
crítica Africana. Em primeiro lugar, explorarei as fontes originais dos
conceitos feministas que são o esteio da pesquisa de gênero. Gostaria de
sugerir que os conceitos feministas estão enraizados sobre a família nuclear.
Esta instituição social constitui a própria base da teoria feminista e representa
o veículo para a articulação de valores feministas. Isto é, apesar da crença
generalizada entre as feministas que seu objetivo é subverter esta instituição
dominada pelos homens e a crença entre os detratores do feminismo que o
feminismo é anti-família. Apesar do fato de que o feminismo tornou-se global, é
a família nuclear ocidental que fornece o fundamento para grande parte da
teoria feminista. Assim, os três conceitos centrais que têm sido os pilares do feminismo,
mulher, gênero e sororidade, são apenas inteligíveis com atenção cautelosa à
família nuclear da qual emergiram.
Além disso,
algumas das questões mais importantes e debates que animaram pesquisa de gênero
nas últimas três décadas fazem mais sentido, uma vez que o grau em que eles
estão entrincheirados na família nuclear (que é uma configuração institucional
e espacial) é analisado.
O que é a
família nuclear? A família nuclear é uma família generificada por excelência.
Como uma casa unifamiliar, é centrada em uma mulher subordinada, um marido
patriarcal, e as filhas e filhos. A estrutura da família, concebida como tendo
uma unidade conjugal no centro, presta-se à promoção do gênero como categoria
natural e inevitável, porque dentro desta família não existem categorias
transversais desprovidas dela. Em uma família generificada, encabeçada pelo macho
e com dois genitores, o homem chefe é concebido como ganhador do pão, e o
feminino está associado ao doméstico e ao cuidado. A socióloga feminista Nancy
Chodorow nos dá um relato de como a divisão sexual do trabalho na família
nuclear, em que mulheres exercem a maternagem, configura diferentes trajetórias
psicológicas de desenvolvimento para filhos e filhas e, finalmente, produz
seres com gênero e sociedades generificada. De acordo com Chodorow:
A divisão do
trabalho familiar em que as mulheres exercem a maternagem dá sentido social e
histórico específico para o gênero em si. O engendramento de homens e mulheres
com personalidades, necessidades, defesas e capacidades particulares cria
condições e contribui para a reprodução dessa mesma divisão do trabalho. Assim,
o fato de as mulheres serem mães inadvertidamente e inevitavelmente se
reproduz. (1978: 12)
Distinções de
gênero são fundantes do estabelecimento e funcionamento deste tipo de família.
Assim, o gênero é o princípio organizador fundamental da família, e as
distinções de gênero são a fonte primária de hierarquia e opressão dentro da
família nuclear. Da mesma forma, a mesmice de gênero é a principal fonte de
identificação e solidariedade neste tipo de família.
Assim, as
filhas se auto-identificam como mulheres com sua mãe e irmãs. Haraway, por sua
vez escreve: “O casamento encapsulou e reproduziu relação antagônica de dois
grupos sociais coerentes, homens e mulheres" (Haraway 1991: 138).
A família
nuclear, porém, é uma forma especificamente euro-americana; não é universal.
Mais
especificamente, a família nuclear continua a ser uma forma alienígena na
África, apesar da sua promoção pelos Estados colonial e neocolonial, agências
internacionais de (sub)desenvolvimento, organizações feministas, organizações
não-governamentais (ONGs) contemporâneas, entre outros.
A
configuração espacial do agregado familiar nuclear como um espaço isolado é fundamental
para a compreensão de categorias conceituais feministas. Não é de se
surpreender que a noção de feminilidade que emerge do feminismo euro-americano,
que está enraizada na família nuclear, é o conceito de esposa, uma vez que, como
Miriam Johnson coloca, [Nas sociedades ocidentais] “a relação de matrimônio
tende a ser a relação nuclear de solidariedade adulta e, como tal, faz com que
a própria definição de mulher se torne a definição de esposa.” (19:40) Porque a
categoria "esposa" está enraizada na família.
Em grande
parte da teoria feminista branca, a sociedade é representada como uma família
nuclear, composta por um casal e suas/seus filhas/os. Não há lugar para outros
adultos.
Para as
mulheres, nesta configuração, a identidade esposa é totalmente uma definição;
outros relacionamentos são, na melhor hipótese, secundários. Parece que a
extensão do universo feminista é a família nuclear.
Metodologicamente,
a unidade de análise é o lar da família nuclear, o que, teoricamente, então,
reduz mulher à esposa. Porque raça e classe não são normalmente variáveis na
família, faz sentido que o feminismo branco, que está preso na família, não
veja raça ou classe.
Assim, a
categoria fundamental da diferença, que aparece como um universal a partir dos
limites da família nuclear, é o género. A mulher no centro da teoria feminista,
a esposa, nunca fica fora do domicílio. Como um caracol, ela carrega a casa em
torno de si mesma. O problema não é que a conceituação feminista comece com a
família, mas que ela nunca transcenda os estreitos limites da família nuclear.
Consequentemente, sempre que mulher está presente, torna-se a esfera privada da
subordinação das mulheres. Sua própria presença definea como tal.
Ao teorizar a
partir do espaço confinado da família nuclear, não é de se estranhar que as questões
de sexualidade automaticamente vêm à tona em qualquer discussão de gênero.
Mesmo uma categoria como mãe não é inteligível para o pensamento feminista
branco, exceto se a mãe é inicialmente definida como esposa do patriarca.
Parece não haver compreensão do papel de mãe independente de seus laços sexuais
com um pai.
Mães são,
antes de tudo, esposas. Esta é a única explicação para a popularidade do seguinte
paradoxo: mãe solteira. A partir de uma perspectiva africana e como uma questão
de fato, mães por definição não podem ser solteiras. Na maioria das culturas, a
maternidade é definida como uma relação de descendência, não como uma relação
sexual com um homem.
Dentro da
literatura feminista, a maternidade, que em muitas outras sociedades constitui
a identidade dominante das mulheres, está subsumida a ser esposa. Porque mulher
é um sinônimo de esposa, a procriação e a lactação na literatura de gênero
(tradicional e feminista) são geralmente apresentadas como parte da divisão
sexual do trabalho. A formação de casais pelo casamento está assim constituída
como a base da divisão social do trabalho.
A socióloga
feminista Nancy Chodorow argumenta que mesmo uma criança experimenta a sua mãe
como um ser generificado – esposa do pai – o que tem implicações profundas no
que diz respeito ao desenvolvimento psicossocial de filhos e filhas. Ela universaliza
a experiência da maternidade nuclear e toma-a como um dado humano, estendendo assim
os limites desta forma euro-americana muito limitada para outras culturas que
têmdiferentes organizações familiares.
A família
Iorubá não-generificada
Até este
ponto, mostrei que os conceitos feministas emergiram da lógica da famílianuclear
patriarcal, uma forma de família que está universalizada de forma inadequada.
Nesta seção, desenhando a partir da minha própria pesquisa sobre a sociedade
Iorubá do sudoeste da Nigéria, eu apresento um tipo diferente de organização
familiar. A família Iorubá tradicional pode ser descrita como uma família
não-generificada. É não-generificada porque papéis de parentesco e categorias
não são diferenciados por gênero. Então, significativamente, os centros e poder
dentro da família são difusos e não são especificados pelo gênero. Porque o
princípio organizador fundamental no seio da família é antiguidade baseada na
idade relativa, e não de gênero, as categorias de parentesco codificam
antiguidade, e não gênero. Antiguidade é a classificação das pessoas com base
em suas idades cronológicas. Daí as palavras egbon, referente ao irmão mais
velho, e aburo para o irmão mais novo de quem fala, independentemente do gênero.
O princípio da antiguidade é dinâmico e fluido; ao contrário do gênero, não é
rígido ou estático.
Dentro da
família Iorubá, omo, a nomenclatura para a criança, é melhor traduzida como prole.
Não há palavras que denotem individualmente menina ou um menino em primeira instância.
No que diz respeito às categorias de marido e esposa dentro da família, a
categoria oko, que normalmente é registrada como o marido em Inglês, não é
especificada por gênero, pois abrange ambos machos e fêmeas. Iyawo, registrada
como esposa, em Inglês refere-se a fêmeas que entram na família pelo casamento.
A distinção entre oko e iyawo não é de gênero, mas uma distinção entre aqueles
que são membros de nascimento da família e os que entram pelo casamento. A
distinção expressa uma hierarquia em que a posição oko é superior a iyawo.
Esta
hierarquia não é uma hierarquia de gênero, porque mesmo oko fêmea são
superiores a iyawo fêmea. Na sociedade em geral, mesmo na categoria de iyawo inclui
homens e mulheres, em que os devotos dos Orixás (divindades) são chamados iyawo
Orisa. Assim, os relacionamentos são fluidos, e papéis sociais, situacionais,
continuamente situando indivíduos em papéis modificativos, hierárquicos e não
hierárquicos, contextuais que são.
O trabalho da
antropóloga social Niara Sudarkasa sobre as características contrastantes dos
sistemas familiares baseados em África e formas baseadas na Europa é
especialmente esclarecedor. Ela ressalta que a família nuclear é uma família
que tem bases conjugais, que é construída em torno de um casal como núcleo
conjugal. Na África Ocidental (da qual os Iorubá são uma parte), é a linhagem
que se considera como a família. A linhagem é um sistema familiar baseado
consanguineamente, construído em torno de um núcleo de irmãos e irmãs por
relações de sangue. Ela explica:
Após o
casamento, os casais normalmente não estabeleciam famílias separadas, mas sim
se juntavam ao composto familiar da noiva ou do noivo, dependendo das regras
vigentes de descendência. Em uma sociedade em que a descendência é patrilinear,
o grupo principal do composto consistia de um grupo de irmãos, algumas irmãs,
seus filhos adultos e netos. O núcleo da unidade co-residencial era composto de
parentes de sangue. Os cônjuges são considerados pessoas de fora e, portanto,
não parte da família [grifo da autora]. (1996: 81)
No caso
Iorubá, todos os membros da linhagem são chamados omo-ile e são classificados individualmente
por ordem de nascimento. Todas as fêmeas que adentram pelo casamento são conhecidas
como iyawo ile e são classificadas por ordem de casamento. Individualmente, um
omoile ocupa a posição de oko em relação à iyawo que chega. Esta relação
insider-outsider está ranqueada, com o insider sendo o idoso privilegiado. O
modo de recrutamento para a linhagem é a diferença crucial – nascimento para
oko e casamento para iyawo.
Se havia um
papel-identidade que definia fêmeas era a posição de mãe. Dentro da casa, os
membros são agrupados em torno de diferentes unidades mãe-filhas/os descritos
como omoya; literalmente, irmãos filhos de uma mesma mãe-ventre. Por causa da
matrifocalidade de muitos sistemas familiares africanos, a mãe é o eixo em
torno do qual as relações familiares são delineadas e organizadas.
Consequentemente, omoya é a categoria comparável na cultura Iorubá à irmã
nuclear na cultura euro-americana branca. A relação entre irmãos de ventre,
como aquela das irmãs da família nuclear, é baseada em uma compreensão de
interesses comuns nascidos de uma experiência compartilhada. A experiência
partilhada definidora, que une os omoya em lealdade e amor incondicional, é o
ventre da mãe. A categoria omoya, diferentemente de irmã, transcende o gênero.
Omoya também
transcende a casa, porque primos matrilaterais são considerados como irmãos de
ventre, e são percebidos como mais próximos uns dos outros do que irmãos que compartilham
o mesmo pai e que podem mesmo viver na mesma casa. Omoya localiza uma pessoa
dentro de um agrupamento reconhecido socialmente, e ressalta a importância dos
laços entre mãe e filha/o ao delinear e ancorar o lugar de uma criança na
família; assim, estas relações são primárias, privilegiadas, e devem ser
protegidas acima de todas as outras. Além disso, omoya ressalta a importância
da maternidade como instituição e como experiência na cultura.
O Desafio de
conceituações africanas
A dificuldade
da aplicação de conceitos feministas para expressar e analisar as realidades africanas
é o desafio central dos estudos de gênero africanos. O fato de que as
categorias de gênero ocidentais são apresentadas como inerentes à natureza (dos
corpos), e operam numa dualidade dicotômica, binariamente oposta entre
masculino/feminino, homem/mulher, em que o macho é presumido como superior e,
portanto, categoria definidora, é particularmente alienígena a muitas culturas
africanas. Quando realidades africanas são interpretadas com base nessas
alegações ocidentais, o que encontramos são distorções, mistificações
linguísticas e muitas vezes uma total falta de compreensão, devido à incomensurabilidade
das categorias e instituições sociais. Na verdade, as duas categorias básicas
de mulher e gênero demandam repensar, dado o caso Iorubá apresentado acima, e,
como argumentei em meu livro The Invention of Women: Making an African Sense of
Western Gender Discourses. Escritos de outras sociedadesafricanas sugerem
problemas semelhantes. Seguem alguns exemplos.
A antropóloga
social Ifi Amaduime escreve sobre filhas do sexo masculino, maridos fêmeas, e a
instituição do casamento de mulheres na sociedade Igbo (Amaduime 1987). Essas concepções
confundem a mente ocidental e, portanto, não deveriam ser aprisionadas pelam moldura
interpretativa feminista. No romance Nervous Conditions,Tsitsi Dangarembga, escrevendo
em um contexto Shona, discute os privilégios do que ela chama de "status
patriarcal" da Tia Tete, uma personagem da história: "Agora, este
tipo de trabalho era trabalho de mulheres, e das treze mulheres lá, minha mãe e
Lucia eram um pouco incapacitadas – com Tete tendo status patriarcal, não se
esperava que fizesse muita coisa". (1989: 133) Compreendemos que TiaTete é
uma mulher, mas tem "status patriarcal", que a isenta do trabalho de
mulher. Emerge então a questão de como a categoria "mulher" é
constituída na sociedade Shona. Quem, então, é a mulher que faz o trabalho das
mulheres? O que significa tudo isso dentro da organização social da sociedade?
Da mesma forma, Sekai Nzenza Shand, escrevendo sobre sua família Shona em seu
livro de memórias Songs from an African sunset, descreve a relação superior de
sua mãe para com os varões assim:
Em sua aldeia
de solteira, minha mãe era visto como a grande tia, ou um homem honorário; os
varões deram-lhe o respeito devido a um pai, e minha mãe poderia comandá-los
como desejasse. Eles, portanto, vieram à aldeia de seu “marido” para apoiá-la
em luto (1997: 19). A mãe de Nzenza Shand é um homem (ainda que um homem
honorário)? O que isso significa?
Voltando à
África Ocidental, o linguista ganês, Kwesi Yankah em sua monografia sobre os
Okyeame - porta-voz de chefes Akan - ele fez a seguinte observação: "um
Okyeame é tradicionalmente referido como o ohene yere, esposa do chefe - é
geralmente aplicado a todos Okyeame, se em posições de nomeação governamental
ou hereditárias" (1995: 89). Ele explica:
"mesmo
em casos em que um chefe é fêmea e seu Okyeame é macho, o akyeame ainda é
esposa, e o chefe, marido" (89). Esse entendimento confunde claramente a
compreensão ocidental generificada em que o papel social "esposa" é
inerente ao corpo feminino. Finalmente, a historiadora Edna Bay, escrevendo sobre
o reino de Dahomey, afirma: O rei também se casava com homens. Artesãos
proeminentes e líderes talentosos de áreas recém conquistadas eram integrados aos
Dahomey através de laços com base no idioma do casamento. Junto a eunucos e
mulheres do palácio, tais homens eram chamados de ahosi. Ahosi do sexo
masculino traziam famílias consigo ou ganhavam mulheres e escravos para
estabelecer uma linhagem. (1998: 20)
A categoria
"mulheres do palácio" mencionada na citação não inclui as filhas da linhagem.
As fêmeas nascidas na linhagem ficam com seus irmãos na categoria de membros da
linhagem, um agrupamento que deriva do local de nascimento. Esses fatos
reforçam a necessidade de submeter a categoria "mulher" a uma análise
mais aprofundada, e de privilegiar as categorias e interpretações destas
sociedades africanas.
Estes
exemplos africanos apresentam vários desafios aos universalismos injustificados
de discursos de gênero feministas. A partir dos casos apresentados, torna-se
óbvio que estas categorias sociais africanas são fluidas. Elas não se baseiam
no tipo de corpo, e o posicionamento é altamente situacional. Além disso, a
linguagem do casamento, que é utilizada para classificação social,
frequentemente não é, a princípio, sobre gênero, como interpretações feministas
da ideologia e organização familiar poderiam sugerir. Em outro momento, argumentei
que o idioma casamento/família em muitas culturas africanas é uma maneira de descrever
relações patrono/cliente, que pouco têm a ver com a natureza dos corpos
humanos.
Análises e
interpretação de África devem começar a partir de África. Significados e interpretações
devem derivar da organização social e das relações sociais, prestando muita atenção
aos contextos culturais e locais específicos.
Referências
Amadiume,
Ifi. (1987). Male Daughters, Female Husbands: Gender and Sex in an African Society.
London: Zed Press.
Bay, Edna
(1998). Wives of the Leopard: Gender, Politics, and Culture in the Kingdom of Dahomey.Charlottesville,
University of Virginia Press.
Chodorow,
Nancy. The Reproduction of Mothering: Psychoanalysis and the Sociology of Gender.
Berkeley: University of California Press, 1978.
Dangarembga,
Tsitsi (1989). Nervous conditions: A Novel. Seattle, Seal Press Mannheim, Karl
(1936). Ideology or Utopia? London, Routeledge: Kegan and Paul Haraway, Donna
(1991). Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. New York:
Routledge.
Nzenza-Shand,
sekai (1997). Songs to an African Sunset: A Zimbabwean Story. Melbourne and
London :Lonely Planet Publications.
Oyewumi,
Oyeronke (1997). The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender
Discourses.(University of Minnesota Press).
Sudarkasa,
Niara (1996). The Strength of Our Mothers:African and African American Women and
Families :Essays and Speeches.Trenton and Asmara: Africa WorldPress.
Yankah, Kwesi
(1995). Speaking for the Chief : Okyeame and the Politics of Akan Royal Oratory.
Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press.