Plotino (205-270) é o último filósofo
da tradição helenística e o principal representante da corrente filosófica
neoplatônica, que vai exercer uma influência marcante no pensamento ocidental.
Suas asserções acerca da alma são
referências básicas para o estudioso da história da psicologia e da psicanálise,
pois suas idéias repercutiram posteriormente na obra de teóricos do porte de
Freud e Jung.
Pois Plotino é considerado por alguns
autores (Schwyzer, 1960; Hillman, 1981) como o "descobridor do
inconsciente" e o seu conceito de psyque como similar ao
de inconsciente coletivo.
E dentre as teorizações junguianas a
respeito do inconsciente coletivo a noção que surge como central é a de
arquétipo.
O arquétipo para Jung é a parte herdada
da psique, que manifesta-se como padrões imagéticos do inconsciente coletivo.
Pode ser entendido como o correspondente do inconsciente coletivo aos complexos
do inconsciente individual, como imagens atratoras de significado.
A teoria junguiana sobre os arquétipos
inicia-se em 1912, quando relata a manifestação de imagens primordiais em
pacientes e em sua auto-análise, cujas temáticas centrais repetiam-se nos mitos
de diversas culturas. Foi influenciado pelas idéias do historiador neoplatônico
Friedrich Creuzer (1771-1858), como ele mesmo coloca:
"O acaso me conduziu ao Simbolismo
e Mitologia dos Povos Antigos, de Friedrich Creuzer, e esse livro me
entusiasmou". (Jung, 1975:145)
Creuzer foi também editor das Enéadas de
Plotino (Plotini Opera omnia), obra impressa em 1835. (cf. Bréhier inPlotino,
1993: I,XLIII)
Em 1919, Jung utiliza pela primeira vez
o termo arquétipo, diferenciando-o de suas imagens fenomênicas, como algo
irrepresentável em seu conteúdo último, como "formas do instinto".
Procura entendê-lo como um conceito psicossomático, que uniria corpo e alma, instinto
e imagem, evitando a idéia que as imagens arquetípicas fossem consideradas
meros reflexos dos impulsos biológicos. Em 1934, ele define os arquétipos (archetypoi)
como os princípios básicos do inconsciente.
Para Jung o arquétipo é uma aptidão
imaginária da psique, que reaviva imagens coletivas de significância biológica
e histórica como "categorias herdadas". (vide Jung,1981:127;VII,220)
Os arquétipos também se evidenciam nas
experiências básicas ou universais da vida (nascimento, ritos de passagem,
casamento, maternidade/paternidade, morte) e estão configurados na vida
interior da psique através de imagens como a Persona, a Sombra, a sizígia
Anima/Animus, a Grande Mãe e o Self (Selbst) ou
Si-mesmo, embora possam surgir em infinitas configurações possíveis.
Esses padrões arquetípicos permanecem
latentes até que um evento crítico ou uma conjunção de fatores o atualizem,
liberando uma força que magnetiza a psique. Os afetos liberados polarizam a
vontade, dinamizando o eu (ego), conferindo-lhe um objetivo irreprimível. Os
períodos de crise são os mais suscetíveis ao surgimento das imagens do
inconsciente coletivo.
As qualidades dos arquétipos surgem
espontaneamente nos símbolos, nos mitos e nas religiões, aparecendo na psique
individual como imagens oníricas, delírios, êxtases e na arte. Mas sempre como
imagens. Daí o papel vital da imaginação em Jung.
"A imagem é uma expressão
concentrada da situação psíquica como um todo(...) tanto inconsciente quanto
consciente." (Jung, 1991:418; VI,829)
Na conceituação junguiana, o eu pode
ser entendido como um repositório de imagens que se agrupam por significado,
oriundas tanto da percepção quanto da memória, formando um complexo de idéias e
sentimentos que conferem uma unidade e identidade pragmáticas ao self,
em especial nas relações sociais. Mas essa unidade é composta de imagens
cambiantes que não possuem realidade em si, o que equivale a dizer que o eu é
uma solução de compromisso entre as imagens prevalentes (sensoriais ou
mnemônicas) num determinado momento.
"Apesar da aparente unidade do
eu, trata-se evidentemente de um fator altamente compósito e variado,
constituído de imagens provindas das funções sensoriais que transmitem os
estímulos tanto de dentro como de fora; consiste igualmente em um imenso
aglomerado de imagens resultantes de processos anteriores. (...) Por esta razão
não falo simplesmente do eu, mas de um complexo do eu." (Jung,
1982:265; VIII/2,611)
Todas as percepções que chegam ao eu,
chegam como imagens. Essas imagens são comparadas com as imagens mnêmicas e agrupadas
segundo o sentido prevalente ao eu ou complexo do eu, como Jung prefere
denominar. A partir desse ponto ela pode ser conceituada, ou seja, tornar-se
objeto do pensamento abstrato. A linguagem é, por sua vez, a expressão da
imagem em palavras.
"Mas o que acontece na medula
espinhal é transmitido ao eu que percebe, em forma de imagem ou cópia que
podemos expressar através de um conceito ou de um nome." (Jung.
1982:163; VIII/2,435,607)
As imagens são qualificadas como
primordiais quando apresentam conteúdos arcaicos, isto é, estabelecem relações
de significado com motivos mitológicos que são partilhados por toda a
Humanidade. Seriam "engramas" mnêmicos resultantes da condensação de
processos similares que decorreram ao longo da evolução humana e, por isso,
podem ser encontrados em todas as culturas de todas as épocas.
"A imagem primordial é,
portanto, expressão condensada do processo vivo." (Jung, 1991:420;
VI,834)
Para Jung, a imagem primordial é a
origem da idéia, conceito generalizador que está na base dos demais conceitos
racionais. Esse princípio racional é, então, uma expressão codificada da imagem
primordial.
"A imagem primordial é
preâmbulo da idéia, é sua terra-mãe." (Jung, 1991:420; VI,835)
O símbolo surge através da condensação
das idéias derivadas das imagens primordiais, integrando razão e sentimento.
Por isso o processo simbólico não é um fato meramente intelectual, alegórico,
mas antes um mediador entre os conteúdos inconscientes e a consciência. Além
disso, o símbolo propicia o desenvolvimento do auto-conhecimento, pois
sintetiza toda uma experiência de vida pessoal dentro de uma representação ou
imagem analógica, que pode ser interpretada analiticamente. Entretanto, seu
conteúdo não é unívoco, pois não existem imagens que possam ser interpretadas a
priori. A diversidade cultural implica numa diversidade simbólica e a
dinâmica psíquica dos indivíduos atribui valoração diferenciada às simbologias.
Símbolo é aquilo que possui o potencial de alterar a dinâmica do eu, isto é,
desconectá-lo das suas imagens habituais e reconectá-lo a um outro patamar de
consciência, liberando um quantum de afeto. Desse modo, o
símbolo remete a um arquétipo ou imagem primordial, que transcende a
consciência, e a imagem, como o significante do arquétipo, é a expressão da
natureza da alma.
"O si-mesmo pode
certamente tornar-se um conteúdo simbólico da consciência, mas é também, sem
dúvida, transcendental como grandeza inevitavelmente superior à
consciência." (Jung, 1982:161;IX,264)
As Idéias (eide) platônicas são
consideradas habitualmente a base do conceito de imagem primordial, somando-se
às noções kantianas sobre as categorias perceptivas a priori, bem
como ao conceito de idéia ou protótipo em Schopenhauer, como o próprio Jung
relata em sua obra Tipos Psicológicos. (vide Jung,
1991:421-422; VI,836-840)
Atribue-se, também, a origem desse
conceito a Fílon de Alexandria, ao Corpus Hermeticum, à Dionísio
Aeropagita (primitivae formae), a Santo Agostinho (ideae principales)
e, ainda, a Jakob Burckhardt (imagens primordiais). Mas, apesar dessas
possíveis influências, Jung chega a definir os arquétipos como as idéias
platônicas embasadas empiricamente. (vide Jung,1981:57;VII,101 e
Jacobi,1986:39-52)
Entretanto, apesar de não ser
mencionada explicitamente, a filosofia plotiniana aproxima-se da psicologia
junguiana quanto à questão da imaginação e do si-mesmo (self). Pois
Plotino já emprega o termo arquétipo (arcetupon) num sentido propriamente
psicológico, ao supor que a elevação do self das imagens aos
arquétipos é a meta do ser, que atingiria, assim, o não-ser. (vide Plotino,1993:VI,9,11)
É relevante também o fato de Plotino
ter sido incluído por alguns historiadores - seguindo o ponto de vista
histórico-religioso e uma metodologia fenomenológica - entre os gnósticos (cf.
Torrents, 1990). A ligação dos gnósticos com a obra junguiana é concebida, pois
a Gnose e a Alquimia foram as duas maiores fontes de material analítico de Jung
(cf. Segal,1995). Por outro lado, encontramos nas Enéadas uma
diatribe intitulada Contra os Gnósticos (Plotino,1993:II,9),
que demonstra - ao menos no sentido crítico - a convivência das duas correntes
filosóficas. O ponto central da discordância seria a justificativa da origem do
mal aventada pelos gnósticos, que procederia do próprio Demiurgo; enquanto que
Plotino, como a filosofia cristã, afirmava Deus (Uno) como o Bem Supremo, sendo
o mal alheio a Ele.
Nossa tarefa, então, é analisar os
conceitos de imagem e de self segundo Plotino, comparando-os
com a conceituação de Jung, sem a preocupação de buscar exclusivamente as
possíveis influências do primeiro sobre o segundo, mas antes as confluências no
plano conceitual de ambas as teorias. Pois muitas das intuições de Plotino - um
reconhecido mestre espiritual e místico - são, de alguma forma, complementares
às de Jung, embora sigam caminhos muito diversos. Plotino - egípcio de
nascimento, mas habitante de Roma - é um filósofo cujas inquietudes remetem a
uma tentativa de síntese entre Platão e Aristóteles, sendo provavelmente
influenciado pelo hinduísmo e pelos mistérios de Ísis que Apuleio nos relata no Asinus
Aureus (Asno de Ouro).
Já Jung é médico de formação,
psicanalista rompido com a ortodoxia freudiana, psicólogo empírico por
auto-definição, mas cuja imaginação foi tomada pelos mesmos símbolos que guiaram
o pensamento dos antigos. Essa busca junguiana pela natureza da alma através
dos sonhos, dos relatos clínicos e da mitologia comparada é similar à
empreendida pela filosofia plotiniana pela via da noesis. Vale
dizer que Plotino viveu no momento de maior sincretismo e miscigenação cultural
e étnica do Império Romano, no início de sua decadência como poder unificador,
onde todas as tendências mitológicas, esotéricas, filosóficas e religiosas se
uniam e se degladiavam, onde o cristianismo monoteísta começa a mostrar sua
força, impondo-se ao paganismo politeísta que agonizava.
Plotino atribui um papel fundamental
para a imaginação na vida psíquica, pois a mesma constitui-se no aspecto
distintivo de toda experiência consciente, isto é, propriamente humana.
Propõe, desse modo, uma psicologia
imagética, um estudo da alma através de suas imagens. Os epicuristas já
postulavam que a alma sensível é basicamente imaginação, a faculdade sem a qual
não haveria a experiência consciente; para eles os pensamentos são derivados
das sensações provocadas pela ação de um "gerador de imagens" (apud Diógenes
Laércio, X, 33-34 in Brun, 1991:31). Dado o primado
epistemológico atribuído à aisthesis(sensação ou percepção),
entende-se a relevância do conceito de prolepsis (antecipação
ou prenoção), visando estabelecer parâmetros para a formação de imagens. A
diferença básica é que para Plotino as sensações não são critério de verdade e,
por isso, as imagens são emanações de uma realidade transcendente que ele
denominaNous (Inteligência). Similarmente, para os estóicos a Razão
(logos) impregna o universo tal como a alma impregna o corpo, quer
dizer, é a sua força ativa. Para eles, o corpo produz sensações que são
apreendidas pela razão como imagens das coisas; na imaginação (phantasia)
as coisas e os pensamentos coincidem por estarem submetidos ao mesmo princípio
racional, que é a simpatia cósmica (sympatheia), conceito que Plotino
incorporou à sua filosofia. Entretanto, a apreensão ou a ação de captar (katalepsis)
uma imagem ainda é tomada como critério de verdade, o que continua a ser oposto
à epistemologia plotiniana. Quanto às imagens, partilham todos da conceituação
de Aristóteles, para o qual a imaginação (phantasia) funciona como um
intermediário entre a percepção (aisthesis) e o pensamento intuitivo (noesis).
Apesar dos antagonismos epistemológicos irreconci-liáveis, eventualmente todos
poderiam concordar que a imaginação é um movimento anímico derivado da
percepção, cujo resultado são as imagens, que persistem na memória mesmo após
do desaparecimento das sensações que as causaram.
Para Plotino a alma é a expressão ativa
da Inteligência que cria o universo sensível (kosmos aisthetos) como uma
imagem (eidolon) de si mesma, que assim se reconhece:
"L'âme (...) est
une image de l'Intelligence; comme la parole exprimée est
l'image du verbe intérieur à l'âme, ainsi elle est le verbe de l'Intelligence
et l'activité selon laquelle l'Intelligence émet la vie pour faire subsister
les autres êtres." (Plotino, 1993; V,1,3)
Plotino supõe que a hyle (matéria
inteligível) é eidolon (imagem) ou eikon (reflexo)
da alma, na acepção platônica (vide Plotino,1993:III,9,3; V,2,1).
Com isso aponta para um primado da alma sobre a matéria, pois a matéria
corpórea é uma imagem da matéria inteligível refletida na alma. Assim, toda
cognição opera através de imagens, que têm seu princípio e seu destino na alma,
e a imaginação é a intermediária entre o pensamento e a natureza (vide Plotino,1993:IV,4,1).
Em Jung, o conhecimento também é uma
função imagética:
"Todo conhecimento
espiritual é uma imagem e uma imaginação." (Jung,
1983:550; XI,889)
A imagem, para Jung, é a condição do
pensamento consciente, possuindo um conteúdo representacional específico
radicado no inconsciente, que só pode ser reconhecido pela psique justamente
através da imagem que o representa. Mas, em última análise, as imagens seriam
produtos dos processos corticais e da ação biológica autônoma.
"Emprego a
palavra imagem, aqui, simplesmente no sentido de representação. Uma
entidade psíquica só pode ser um conteúdo consciente (...) precisamente quando
possui a qualidade de imagem. Por isto chamo de imagens a todos os conteúdos
conscientes porque são reflexos de processos que ocorrem no cérebro." (Jung, 1982:264;
VIII/2,608)
Para Plotino, mesmo a capacidade
racional - a parte racional da alma - é vista como uma imaginação conceptual.
Essa particularidade é que torna o homem um ser racional, sua capacidade de
apreender o pensamento discursivo e transmití-lo numa linguagem convencional.
A atividade da imaginação manifesta-se
como um poder de apreensão que distingue o próprio (o sujeito) do outro (o
objeto) de modo a torná-lo uma parte de si (da alma) como uma imagem (eidolon).
"Car il ne peut y avoir de
pensée sans altérité et identité." (Plotino, 1993; V,1,4)
As potencialidades inatas podem então
manifestar-se como uma expressão do Nous (Inteligência), que
assim se auto-conhece. As três hipóstases (princípios ou realidades) em Plotino
são a Alma do Mundo (psyque tou pantos), a Inteligência (nous) e
o Uno (hen). A faculdade cognitiva humana é um atributo da alma agregada
ao corpo, que por sua vez é uma imagem do Nous, que por seu turno é
uma imagem do Uno, que é 'projetada' sobre o mundo sensível através da alma.
Desse modo, o mundo natural é a imagem de seu Criador e a própria matéria (hyle)
é uma imagem do ser (on). Essa imagem está em contínua transformação,
pois o Uno é um devir que está para além do tempo cronológico e da própria
eternidade. (Plotino, 1993:I,8,3; III,7,11;V,1,3; V,8,12)
Essa seria a contribuição de Plotino à
ontologia de Platão e Aristóteles, que entendiam a eternidade como permanência.
Para Plotino a eternidade é a vida do Nous e o Uno, como
princípio gerador, a transcende. (cf. Aubenque,1981)
Para estabelecer uma conexão entre alma
que conhece e o seu objeto, ele introduz o conceito de apreensão consciente,
cujo limite inferior é a physis, a natureza que trabalha
inconscientemente.
"L'être, dont la vie est
perceptible à nos sens, est composé d'êtres qui vivent imperceptiblement pour
nous." (Plotino, 1993: IV, 4, 36)
Na visão de Jung:
"O arquétipo é natureza pura,
não deturpada e é a natureza que faz com que o homem pronuncie palavras e
execute ações de cujo sentido ele não tem consciência. (Jung,
1982:147; VIII/2,412)
Para Plotino, a percepção (aisthesis)
humana requer a produção de uma imagem. Essa imagem é produzida pelapsyque,
que unifica as sensações particulares (táteis, visuais, auditivas, etc.). Dessa
forma cria-se a consciência, como lugar de um conteúdo psíquico sintetizado
numa imagem, que permite à alma distinguir seu objeto no tempo e no espaço.
De modo semelhante, cria-se uma
imaginação conceptual cuja atuação é analítica, quer dizer, disseca a
unificação sensorial através do emprego de conceitos racionais.
A consciência humana, então, é formada
por essas duas imaginações acopladas, que funcionam como um espelho do real. No
entanto, essa imagem especular só é perceptível na total imobilidade, o que
equivale a dizer que é o movimento que turva o reflexo da razão.
"Telle l'image dans un miroir, quand sa surface polie et
brillante est immobile; le miroir est là, une image se produit; (...) Il en est
de même dans l'âme; si cette partie de nous-mêmes dans laquelle apparaissent
les reflets de la raison et de l'intelligence n'est point agitée, ces reflets y
sont visibles; alors non seulement l'intelligence et la raison connaissent,
mais en outre l'on a comme une connaissance sensible de cette action."
(Plotino, 1993: I,4,10)
Essas idiossincrasias do sujeito que
percebe segundo seus próprios limites também é reconhecida por Jung.
"A consciência é algo
semelhante à percepção e, como esta, também está sujeita a condições e a
limites (...) pois dependem (...) da condição do sujeito que percebe."
(Jung, 1983:553; XI,891)
Para Plotino, um poder de imaginação é
necessário para a vida anímica como elo à atuação conjunta dessa dupla
faculdade humana de captar o mundo material como essência perceptiva (eide
aistheta) e de pensá-lo segundo conceitos como essência racional (eide
noeta), faculdade essa que cria (percebendo e analisando) seus objetos.
Devido a isso, o conhecimento humano enquanto razão discursiva (dianoia) nunca
atinge a verdade (aletheia), não constituíndo-se numa ciência (episteme),
sendo basicamente uma questão de opinião (doxa). A noesis é
uma unidade entre o sujeito e o objeto que é só captável através da sua imagem
como logismos (raciocínio ou pensamento discursivo). (cf. Peters,
1983)
O processo pelo qual a alma toma
consciência formando uma imagem é denominado antilepsis ou
'apreensão consciente'. Esse processo ocorre tanto em relação à percepção
quanto à intuição. A atividade antiléptica ou imagética é o centro da ação
humana cotidiana, permitindo ao homem separar-se do seu entorno e agir como um
indivíduo, um sujeito atuando sobre objetos.
Aquilo que nos distingue dos animais é
a dianoia ou razão discursiva. Todavia, não temos consciência
nem de todos nossos pensamentos, nem de nossas funções corporais ou rotineiras.
Então a consciência só é recuperada por uma imagem mnêmica.
"La mémoire des choses sensibles appartient donc à l'imagination."
(Plotino, 1993: IV,3,29)
Em Jung:
"Percebemos
apenas as imagens que nos são transmitidas indiretamente,
através de um aparato nervoso complicado. (...) A conseqüência disto é que
aquilo que nos parece como uma realidade imediata consiste em imagens
cuidadosamente elaboradas e que, por conseguinte, nós só vivemos diretamente em
um mundo de imagens. (...) Nós somos subjugados por um mundo que foi criado por
nossa psique." (Jung, 1982:332-333; VIII/2,745-747)
Por conseguinte, a consciência humana é
o acompanhamento de uma sensação ou pensamento por uma imagem, isto é, toda
cognição é propriamente imaginária.
Devido a isso, a consciência na
filosofia plotiniana é descrita como parakolouthein (seguir
junto), enfatizando a dualidade entre a imaginação e o objeto imaginado,
permitindo o auto-conhecimento. Assim, a vida psíquica só é possível através da
intermediação da imaginação.(cf. Warren, 1966)
Entretanto, Plotino afirma que nem todo
pensamento é imagético, pois existem pensamentos racionais inconscientes. A
necessidade de imagens é uma característica da apreensão consciente e não
engloba todos os pensamentos. Só os pensamentos conscientes necessitam
transformar-se em imagens para serem pensados. E, para o pensamento discursivo,
as imagens são conceituais e não pictóricas, diversamente das imagens advindas
da sensação.
Nesse sentido, como já nos referimos,
segue a formulação aristotélica, na qual a imaginação (phantasia) é o
elo unindo sensação e pensamento.
"Si [comme le dit Aristote] une
image accompagne toute pensée (...) le langage, en la développant et en la
faisant passer de l'état de pensée à celui d'image, reflète la pensée comme um
miroir. (...) Car autre chose est de penser, autre chose de percevoir sa
pensée. Nous pensans toujours; mais nous ne percevons pas toujours notre
pensée, parce que le sujet qui reçoit les pensées reçoit aussi,
alternativement, les sensations." (Plotino, 1993: IV,3,30)
Plotino distingue, assim, o pensamento
de sua apreensão consciente pois estamos sempre pensando mas nem sempre
apreendemos (conscientemente) o que pensamos, ou seja, a alma humana pensa
(inconscientemente) sem dar-se conta do que pensa.
Essa é a concepção encampada
posteriormente por Leibniz, que ecoa sobre a psicanálise freudiana e também em
Jung:
"A psique não
coincide com a consciência, mas (...) funciona inconscientemente à semelhança
oudiversamente da parte capaz de se tornar consciente." (Jung,
1984:110; VIII/2,362)
Isso significa que o ser humano só está
consciente quando uma imagem está presente, tanto de um objeto sensível ou
inteligível. A imaginação é o que nos faculta separar o sujeito da consciência
dos objetos, senão cairíamos na atividade natural (biológica) inconsciente,
incapaz de elevar-se além das aparências sensoriais até a intuição (noesis)
das formas primeiras.
Essa diferenciação entre percepção e
apercepção e o reconhecimento da existência de pensamentos inconscientes está
amplamente de acordo com as concepções junguianas. Para Jung, esses pensamentos
agrupam-se em imagens segundo seus significados, em função das finalidades a
que se propõem, visando o auto-conhecimento:
"Posso afirmar que se trata de
'processos nucleares' significativos na psique objetiva, de certas imagens de
meta que o processo psíquico parece propor a si mesmo por 'ser orientado para
um fim'." (Jung, 1994:233-234; XII,328)
Em Plotino, alma é una na sua
multiplicidade, pois cada ser é idêntico a todos os demais seres e o todo está
em tudo. Logo, pode-se afirmar que 'tudo está em tudo'. A unidade ou mônada (monas)
é semelhante ao Uno e sempre igual a si mesma. O movimento da alma é ocasionado
pelas razões seminais (logoi spermatikoi), que são a causa das
diferenças individuais. A finalidade da alma - de todas as almas - é efetuar a
regressão ao Uno através da Inteligência. (cf. Bréhier, 1977:173)
"L'âme (...) ne se fragmente
pas pour animer par chacune de ses parties chaque partie du corps; mais toutes
les parties vivent par l'âme toute entière, elle est toute présente partout,
semblable, par son unité et son omniprésence, au père qui l'a engendrée
[l'Intelligence]." (Plotino, 1993; V,1,2)
Para Jung existe a possibilidade de um
conhecimento que ultrapasse os limites espácio-temporais. O seu conceito de unus
mundus (mundo uno), que apóia a noção de correspondência acausal ou
sincronicidade, afirma igualmente a relação intrínseca entre o uno e o
múltiplo. Em sua última grande obra, Mysterium Coniunctionis, Jung
cita Plotino como uma das origens desse conceito. (Jung, 1985:292; XIV/2,416)
Essa mesma referência já havia sido
colocada em seu texto Sincronicidade:
"Também, segundo Plotino, as
almas individuais se acham ligadas por uma relação mútua de simpatia ou
antipatia, na qual a distância não exerce nenhuma influência." (Jung,
1986:58; XVIII,917)
Nessa concepção, a consciência possui
uma dupla função cognitiva e espiritual.
"Os arquétipos (...) são
correspondentes complementares do 'mundo exterior' e, por isso mesmo, possuem
caráter 'cósmico'. Daí se explica sua numinosidade e, concomitantemente, seu
'caráter divino'." (Jung, 1982:186-187; IX/2,305)
Jung reconhece que existe um pensamento
primordial - comparável, talvez, à Inteligência plotiniana - inerente à espécie
humana, que foi construído e desenvolvido durante a evolução do Homem. Esse
pensamento foi expresso e memorizado em imagens, que funcionam como guias da
psique, como um verdadeiro fio de Ariadne rumo ao centro do labirinto.
"Há um pensamento nas imagens
primordiais, nos símbolos, que são mais antigos que o homem histórico e
nascidos com ele desde os tempos mais antigos e, eternamente vivos, sobrevivem
a todas as gerações e constituem os fundamentos da nossa alma. (...) Para mim,
as imagens primordiais são como órgãos psíquicos." (Jung, 1982:352;
VIII/2,794)
Esses 'órgãos psíquicos' são -
seguindo-se a metáfora - as 'antenas' da psique humana coletiva, arcabouço de
todo imaginário criado pela humanidade, pela qual captam-se e atualizam-se as
imagens.
No que se refere ao arquétipo central,
o self ou si-mesmo, Jung cita um extenso trecho de Plotino em
apoio às suas idéias:
"Encontramos uma
concepção paralela [à natureza psicológica do si-mesmo] em Plotino (cerca
de 205-270). Assim, diz ele em suas 'Enéadas': 'Sempre que uma alma se conhece,
sabe que seu movimento natural não se processa em linha reta, pois sofreu um
desvio; mas sabe que descreve um movimento circular em torno de seu princípio
interior, em torno de um centro. Mas o centro é aquilo de onde procede o
círculo. A alma, portanto, movimentar-se-á em torno de seu centro, isto é, em
torno do princípio de onde ela procede. Ela manter-se-á presa a ele;
movimentar-se-á em direção a ele, como deveriam fazer todas as almas. Mas só as
almas dos deuses se movimentam em direção a ele, e por isso são deuses, pois
tudo o que se acha unido a esse centro é, em verdade, deus, ao passo que o que
se acha afastado dele é o homem, o homem sem unidade, o homem animal'. Nesta
concepção, o ponto é o centro de um círculo que é produzido, de algum modo,
pela deambulação da alma em torno dele. Mas o ponto é o 'centro de todas as
coisas'; é uma imagem de Deus. É esta a concepção que ainda hoje
encontramos na base dos símbolos mandálicos dos sonhos." (Plotino,
En.VI,8,1;VI,9 in Jung, 1982:209; IX/2,342)
Para Plotino, o self noético
ou imanente (noetike kai psychike), a fonte da vida, não necessita
imaginação pois é auto-consciente. A tarefa última da consciência é tornar-se
inconsciente num patamar superior de conhecimento, onde a distinção imagética
entre sujeito e objeto foi superada e finalmente integrada. A fragmentação do self é
total no nível da physis, onde encontra-se num estado de
inconsciência de seu potencial cognitivo. Para superá-la, surge a sunaisthesis como
a unidade cognitiva básica motivada pela simpatia cósmica (sympatheia)
que une o universo num todo integrado. (cf. Warren,1964)
"Car l'intelligence est à la
fois une partie de nous-mêmes et un être supérieur auquel nous élevons."
(Plotino, 1993: I,1,7)
Na interpretação de Jung, a
conscientização das imagens primordiais, que atuam de forma inconsciente ou
pré-consciente, é que permite ao homem reconhecer sua própria humanidade:
"Existem arquétipos
pré-conscientes que nunca foram conscientes. (...) Só quando o homem possui a
capacidade de ser consciente é que se torna verdadeiramente homem."
(Jung, 1982:147; VIII/2,412)
E essa humanidade reflete-se em tudo o
que a psique pode abarcar:
"O si-mesmo surge em todas as
formas, das mais elevadas às mais ínfimas, uma vez que tais formas ultrapassam
as fronteiras da personalidade do eu, à maneira de um 'daimon' (demônio
socrático)." (Jung, 1982:216; IX/2,356)
Para Plotino o Nous mantém
a alma humana permanentemente ligada ao kosmos noetos (universo
inteligível), mas como a atenção está distraída pelos objetos sensíveis ela não
dá-se conta disso. Quer dizer, embaixo da atividade consciente cotidiana
continua a operar inconscientemente o self imanente, o
inteligível que habita em cada ser. Ontologicamente essa operação pode ser
descrita como a unidade entre sujeito e objeto numa realidade existencial,
fornecendo as bases epistemológicas para uma abordagem cognitiva da divindade.
Assim, o Uno não é um ser, mas antes um processo unificador que nada é em si,
apesar de ser em si todos os seres. (Plotino, 1993:V,1,6; VI,8; VI,9)
O self imanente pode
tornar-se cônscio para o homem, que assim cumpre uma dupla finalidade: alça a
alma humana ao nível do Nous e, ao mesmo tempo, permite que o Nous tome
consciência de si mesmo. A palavra a descrever o self é
alternadamente psyche ou anthropos, isto é, a realidade
ontológica e a consciência humana. Oself possui um dinamismo
cognitivo perpétuo e surge para o homem como imago Dei, ou seja, a
imagem de Deus espelhada na consciência.
"L'âme aussi est animée d'un mouvement éternel. (...) Il est donc
nécessaire, pour que nous percevions la présence de ces actions, de tourner nos
perceptions vers l'intérieur de nous-mêmes, et d'y maintenir notre attention." (Plotino, 1993:V,1,12)
Em Jung também encontramos o
pressuposto de um movimento:
"O processo
inconsciente como que se move em espiral em torno de um
centro(...). Poderíamos talvez dizer(...)que o centro - em si mesmo
incognoscível - age como um imã sobre o material e os processos disparatados do
inconsciente, capturando-os pouco a pouco em sua teia de cristal." (Jung, 1994:230;
XII,326)
Para Plotino esse centro é Deus. E ele
define Deus como "he tou me noein riza", a 'impensável raiz da
alma' e, assim, encontrar a si mesmo é conhecer sua origem na contemplação da
imagem do Uno, refletida no self através da Inteligência (Nous).(cf.
Warren, 1964)
"En dehors de l'Intelligence et autour d'elle circule l'âme;
elle regarde en l'Intelligence et, en la contemplant jusque dans son intimité,
elle voit par elle le Dieu suprème." (Plotino, 1993: I,8,2)
A consciência poderia ser entendida,
então, como um jogo de espelhos onde a fidelidade da imagem seria uma função da
clareza da superfície reflexiva. (cf. Plotino, 1993: VI,9,7-9)
"Il faut que,
contemplant cet Un qui est en lui-même comme à l'intérieur d'un sanctuaire, et
qui reste immobille au delà de tout, nous contemplions les images qui
déjà tendent vers l'extérieur (images stables), ou plutôt la première image qui
s'est manifestée. (...) Tous les êtres d'ailleurs, tant qu'ils subsistent,
produisent nécessairement autour d'eux, de leur propre essence, une réalité qui
tend vers l'extérieur et dépend de leur pouvoir actuel; cette réalité est comme
une image des êtres dont elle est née." (Plotino,
1993:V,1,6)
A realidade é criada pelo ser como uma
imagem na qual ele se insere. Enquanto que para Plotino a crença em Deus é o
resultado natural do pensamento que alcança a contemplação da verdade (aletheia),
o que interessa a Jung é demonstrar a realidade empírica desses fenômenos e
desvinculá-los de toda crença religiosa. Jung também diferencia a imagem de
Deus de Deus mesmo, embora por razões diversas das de Plotino. Diz ele:
"O que se pode é constatar que
o simbolismo da totalidade psíquica coincide com a imagem divina, embora não se
possa demonstrar que uma imagem divina é o próprio Deus ou que o si-mesmo
substitui Deus." (Jung, 1982:188; IX/2,308)
Além da separação dos pressupostos
teológicos dos psicológicos, Jung dicotomiza a possível interpretação do
significado do self em teses materialistas ou espiritualistas:
"Numa interpretação
materialista poder-se-ia afirmar que o 'centro' nada mais é do que aquele ponto
em que a psique se torna incognoscível, por ser lá que se funde com o corpo.
Numa interpretação espiritualista, inversamente, afirmar-se-ia que o si-mesmo
nada mais é do que o espírito, o qual anima a alma e o corpo, irrompendo no
tempo e no espaço através desse ponto criativo." (Jung, 1994:233;
XII,327)
Para Jung o self pode
ser compreendido como a imagem da totalidade da psique, como seu centro e
também como símbolo dessa unidade, abrangendo consciente e inconsciente e o
próprio eu.
O self, como o arquétipo
central, seria um princípio unificador da personalidade, conferindo um sentido
às ações do indivíduo e integrando-as num todo coerente, como o lapis alquímico.
Por outro lado, o self é
também uma imago Dei, isto é, uma imagem de Deus. Essa imagem seria
um símbolo da unidade e da transcendência do universo, a qual realiza a síntese
de todas as oposições.
Por isso, Jung recupera a formulação
escolástica:
"'Deus est circulus cuius
centrum ubique, circunferentia vero nusquam' [Deus é um círculo
cujo centro está em toda parte e cuja periferia não está em lugar algum]."
(Jung, 1982:144; IX/2, 237, n.113)
Por conduzir à síntese dos opostos, o self carrega
uma conotação tanto do bem (Deus como encarado pelas religiões monoteístas),
como do mal, quer dizer, a divindade maligna e destruidora (o Demônio). Devido
a essa enantiodromia (relação entre opostos), o símbolo do self é
em geral um quatérnio ou quaternidade. Assim, o símbolo cristão da divindade, a
Trindade, complementa-se com o Demônio, o quarto elemento.
"Coincidentia oppositorum
(coincidência dos opostos), por meio da qual se exprime a divindade do si-mesmo."
(Jung, 1985: 142; XIV/1, 171)
Nesse sentido, como anteriormente observado
em relação aos gnósticos, a filosofia plotiniana afasta-se da concepção de
Jung, pela sua crença na divindade como um Bem absoluto.
Para Plotino, porém, essa discussão
sobre a origem do mal, como todo conhecimento discursivo, é só uma parte do
processo - a parte inferior - da busca intuitiva pelo conhecimento da alma, que
vai além do humano:
"Donc il y a une double
connaissance de soi-même; ou bien l'on connaît la nature de la pensée
discursive de l'âme; ou bien on la dépasse, et l'on se connaît como être
conforme à l'intelligence; c'est par elle qu'on se connaît non plus comme homme."
(Plotino, 1993: V,3,4)
Para ele a alma é de natureza
inteligível, que funciona como um veículo para todos os seres, não é uma
exclusividade humana. A ordem do universo é mantida pela ação racional da alma,
sendo ela o verdadeiro princípio do mundo. Ela gira ao redor de um ponto
central, circularmente, e anima a natureza, possibilitando o movimento e,
assim, criando a physis ou o mundo natural. O Uno cria o
cosmos sem sair de si mesmo, através da processão ou emanação (proodos),
e o cosmos retorna ao Uno por meio da conversão ou retração (epistrophé),
num movimento perpétuo que não possui uma gênese no tempo. (cf. Brun,1991)
"Elle est comme le centre dans un cercle: tous les rayons tirés
du centre à la circonférence laissent pourtant le centre immobile, bien qu'ils
naissent de lui et en tiennent leur être; ils participent du centre, et ce
point indivisible est leur origine; mais ils s'avancent au dehors, bien qu'ils
y restent attachés." (Plotino, 1993: IV,2,1)
Jung associa essa noção às concepções
alquímicas:
"Na filosofia
neoplatônica a alma mantém uma relação nítida com a forma esférica.
(...) Como no Timeu de Platão, a 'anima mundi' bem como a
'alma do corpo' tem para os alquimistas a forma esférica." (Jung, 1994:93;
XII,109, n.41)
Plotino incorpora essa noção platônica
na sua filosofia:
"Comme notre corps est une
partie de l'univers, ainsi notre âme est une partie de l'âme de l'univers".
( Platão,Filebo:30 in Plotino, 1993: IV,3,2).
Para Plotino, a psyche tou
pantos ou anima mundi possui uma parte voltada à
contemplação (theoria) e a outra ligada à ação (praxis) que é a
própria natureza (physis). Mas, ao contrário de Platão, a Alma do Mundo
plotiniana é a responsável pela produção do mundo sensível que transcorre no
tempo, que assim ganha um estatuto de realidade (embora no seu mais baixo
nível), não sendo mera fantasmagoria, pois a própria matéria espelha o ser.
Portanto, a alma é una e múltipla e
atende à demanda divina por auto-conhecimento.
"Notre âme est chose divine; elle est d'une nature différente de
l'être sensible; elle est telle que l'âme universelle." (Plotino,
1993:V,1,10)
Jung reconhece nessas formulações um
eco de suas próprias teorias:
"A alma do
mundo, portanto, que constitui o princípio dominante de toda a physis, possui
uma natureza trina e, visto como para Platão o mundo é um segundo Deus, a alma
do mundo constitui uma imagem revelada e desdobrada de Deus." (Jung,
1983:126; XI,187)
Contudo, diversamente de Platão e
Plotino, Jung vê nessa noção apenas uma outra imagem de totalidade e não uma
substância 'pensante' ou 'consciente' autônoma:
"A alma ou o espírito do mundo,
constitui uma projeção do inconsciente. (...) A 'alma' e o 'espírito', isto é,
a psique em geral é, em si e por si, totalmente inconsciente enquanto
substância." (Jung, 1982:133; IX,219)
Para Plotino e Jung, então, a
consciência é dependente da imaginação que, por sua vez, é direcionada pelas
funções corporais e pela atenção. O centro subjetivo do ser humano - aquilo que
denominamos eu - nada mais é que uma função do imaginário. Os processos
inconscientes estão fora de seu acesso e as imagens são as únicas chaves de
compreensão.
As imagens partem de um centro - que é
o centro da própria alma - que reflete o self. Esse self é
inconsciente e só é apreendido pelo esforço concentrado da atenção. Mas quanto
à contemplação da imagem de Deus, é como se o centro do eu se sobrepussesse ao
centro do universo e, assim, não houvesse mais sentido na separação entre
sujeito e objeto. Quem contempla é o próprio self, através da nossa
consciência, alcançando a "raiz da alma". (vide Plotino,1993:VI,9,10)
Por isso, na experiência do dia a dia o self é
reduzido à manutenção do corpo, ocupando-se da sensação e do pensamento em
termos de sujeito e objeto localizados em um espaço e um tempo determinados,
quer dizer, reduz-se a um eu (ego) que responde a um nome em função de sua
inserção social.
Mas sua raiz é atemporal e, assim, o eu
subsiste apenas na phantasia (imaginação), como um núcleo de
imagens da alma derivadas da percepção e da memória.
Para ambos, o self é
concebido segundo uma imago Dei, uma imagem de Deus, embora Jung
tenha o cuidado de diferenciar o campo da Psicologia do da Teologia, o que é
impensável em Plotino.
Quanto à anima mundi, a
alma do mundo, embora exista uma discordância sobre a questão de sua
substancialidade, poderia ser interpretada como uma noção similar à de
inconsciente coletivo, como memória coletiva das imagens primordiais.
Certamente a base biológica e empírica
da teoria junguiana não se coaduna ao espiritualismo de base mística da
filosofia plotiniana, mas os pressupostos essenciais são os mesmos. Pois muitos
dos argumentos biológicos em Jung surgem como uma maneira de conferir aos seus conceitos
uma roupagem mais aceitável ao empirismo dominante, não sendo premissas
necessárias para as suas teorias.
Assim, podería-se dizer que o campo de
estudos privilegiado da psicologia junguiana é a análise das imagens
arquetípicas e que a base de seu método é a intuição, ou seja, o pensamento
noético aplicado às configurações simbólicas.
E se a dianoia (pensamento
discursivo) presente nas Enéadas sobreviveu por tantos séculos
foi devido às suas grandes intuições. Seus ensinamentos chegaram até nós como
algo vivo. Seus reflexos estão não só nas idéias de Jung, mas também num sem
número de correntes filosóficas e crenças religiosas ou esotéricas.
E o conceito para o qual os dois
autores confluem é o de self, cuja abrangência ultrapassa o âmbito
da análise da personalidade, envolvendo questões epistemológicas fundamentais,
pois seria também o centro do cosmos.
Dessa forma, tanto para Plotino como
para Jung, o homem privado de imagens é um estranho para si mesmo, inconsciente
de sua existência, incapaz de aperceber sua constituição íntima.
Tal asserção - paradoxalmente - vale
tanto para o homem de alma embrutecida - num sentido negativo - quanto para o
sábio que na contemplação do Absoluto, refletido em seu self, perde
sua consciência e se une à totalidade do cosmos - tomada no aspecto positivo.
Nesse último caso, a atenção (phrontis)
concentrada produz uma espécie de inconsciência que separa o homem superior de
suas imaginações, como uma força psíquica que o conduz a níveis mais elevados
de conhecimento.
Rafael Raffaelli
Doutor em Psicologia Titular UFSC -
Universidade Federal de Santa Catarina
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