domingo, 31 de julho de 2011

Teoria da complexidade...



COMPLEXIDADE E LIBERDADE

Edgar Morin

A complexidade nos convoca para uma verdadeira reforma do pensamento, semelhante à produzida no passado pelo paradigma copernicano. Mas essa nova abordagem e compreensão do mundo, de um mundo que se "autoproduz", confere também um novo sentido à ação: trata-se de fazer nossas apostas, o que vale dizer que com a complexidade ganhamos a liberdade.
A grande descoberta do século é que a ciência não é o reino da certeza. Ela se baseia, seguramente, numa série de certezas local e espacialmente situadas. A rotação da Terra em torno do sol, por exemplo, nos parece certa; mas seria possível dizer isso, tanto 100 milhões de anos antes de nossa era quanto depois, sabendo-se que o Universo está submetido a flutuações e perturbações, às quais hoje chamamos de movimento caótico? A ciência é de fato um domínio de múltiplas certezas, e não o da certeza absoluta no plano teórico. A obra de Popper se tornou indispensável para a
compreensão de que uma teoria científica não existe como tal, a não ser que, na medida em que aceita ser falível, submete-se ao jogo da "falsificabilidade" e, portanto, aceita sua biodegradabilidade.
Ordem, separabilidade e lógica: os pilares da ciência clássica
A ciência clássica se apóia nos três pilares da certeza, que são a ordem, a separabilidade e a lógica.
Para ela, esses eram os fundamentos absolutos. A ordem do Universo, tal como entendida por Descartes e Newton, era o produto da perfeição divina. Com Laplace, a hipótese de Deus é descartada: a ordem funciona sozinha, é "autoconsolidada". A idéia de determinismo absoluto tornou-se objeto de uma crença quase religiosa entre os cientistas, que por isso se esqueceram de que ela não pode, de modo algum, ser demonstrada.
A segunda idéia-chave era a separabilidade. Conhecer é separar. Em face de um problema complicado, dizia Descartes, é preciso dividi-lo em pequenos fragmentos e trabalhá-los um após o outro. Assim, as disciplinas científicas são desenvolvidas a partir da divisão do interior das grandes ciências, a física, a biologia etc, o que dá origem a compartimentos sempre novos. No limite, pode-se dizer que a separação entre ciência e filosofia e, mais amplamente, entre ciência e cultura humanista – filosofia, literatura, poesia etc –, está instituída em nosso século como uma necessidade legítima.
Nas ciências, a separação entre o observador e sua observação, ou seja, entre nós, humanos, que consideramos os fenômenos, e estes (os objetos de conhecimento), tinha valor de certeza absoluta.
O conhecimento científico, objetivo, implicava a eliminação do indivíduo e da subjetividade. Se existisse um sujeito, ele causaria perturbação – seria um ruído.
Terceiro pilar: a lógica, a indução. Com base em um número importante e variado de observações, podia-se tirar delas leis gerais. Quanto à dedução, era um meio implacável de conduzir à verdade. Os princípios aristotélicos da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído, permitiam eliminar
toda confusão, equívoco e contradição.
A lógica, a separabilidade e a ordem levaram para a ciência clássica essa certeza absoluta, na qual ela se baseia. E os resultados têm sido tão brilhantes que acabaram, paradoxalmente, colocando em xeque os princípios fundamentadores da separação. Foi a ordem, isto é, o determinismo (tudo o que escapa ao acaso, às perturbações e à imprevisão), que entrou primeiro em crise. Com efeito, a termodinâmica introduziu a desordem molecular no fenômeno chamado calor. Sabemos hoje que 1
Sociólogo, epistemólogo e filósofo francês, formado em História, Geografia e Direito.
Pesquisador emérito do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique). Formado em Direito, História e Geografia se adentrou na Filosofia, na Sociologia e na Epistemologia. Um dos principais pensadores sobre complexidade.

Nosso Universo tem uma origem calorífica, surgiu de um fenômeno térmico inicial, uma espécie de explosão seguida de enorme agitação.
A presença da desordem universal se revela em todos os níveis: microscópico, cosmofísico e também histórico, humano. Em relação a este, lembramos que a história não se reduz a processos determinísticos: é também feita de bifurcações, acasos, crises, daquilo que Shakespeare chamou de  "o som e a fúria". Isso não quer dizer, no entanto, que a desordem tomou o lugar da ordem. Um
Universo assim seria tão insensato e impossível como aquele em que reinasse a ordem pura.
No reinado da ordem pura não há criação, não há possibilidade de nada novo. Se só existisse adesordem, agitação, a álea, o Universo seria simplesmente inviável. É preciso, portanto, que desde o começo um certo número de princípios, considerados como de ordem, provoquem, sob certas
condições, alguns encontros nessa agitação de partículas. O princípio de interação forte ligará e formará núcleos; o princípio de interação eletromagnética impelirá os elétrons, para que eles se coloquem em volta do núcleo e formem os átomos; enfim, o princípio gravitacional atua no plano da formação dos astros, das galáxias...
Em outros termos, estamos diante deste paradoxo: as noções de ordem e desordem se repelem mutuamente. O Universo é um coquetel de ambas, uma mistura muito diferente segundo os casos, as condições, os lugares, os momentos...
De acordo com o ângulo de observação, um dado fenômeno pode ao mesmo tempo se inclinar para um lado ou para o outro. Os átomos de carbono, por exemplo, são formados nos sóis anteriores ao nosso, pela reunião instantânea de três núcleos de hélio.
No interior dessas fantásticas forjas que são os astros, as interações são inumeráveis e o encontro, no mesmo momento, de três núcleos de hélio, é tão raro quanto aleatório. Entretanto, uma vez ocorrido, uma lei entra em jogo: a do carbono que vai ser produzido.

É no encontro da ordem e da desordem que se produz a organização. Quando os três núcleos de hélio se reúnem, nasce uma delas, a do átomo de carbono. Essas organizações criam, no seu próprio interior, uma ordem que lhes é própria. O mundo dos seres vivos obedece a todas as leis da física e da química; sua ordem é baseada na autoprodução, na regeneração etc.
Quanto á separabilidade, percebeu-se que ela leva à divisão das partes constituintes dos conjuntos organizados em sistemas, o que proporciona um conhecimento insuficiente, mutilado. Pode-se extrair um corpo de seu meio natural, colocá-lo num contexto experimental, controlado pelas variações que sobre ele atuam. Não é possível conhecer, numa única avaliação, a relação profunda que existe entre o corpo e seu ambiente. Os seres vivos não são nada sem o seu meio. As experiências realizadas em cativeiro, para investigar a inteligência de seres sociais como os chimpanzés, não nos têm permitido saber o que eles aprenderam depois delas. Com efeito, no curso
de observações pacientes desses animais, em seu meio natural e em suas sociedades, pôde-se constatar que os indivíduos são diferenciados e que existem relações muito complexas entre eles. O chimpanzé adulto, por exemplo, não pratica o incesto.

A separabilidade perdeu seu valor absoluto. Uma das peculiaridades de um conjunto organizado em sistema decorre do fato de que, ao existir, essa organização produz qualidades novas, chamadas "emergências". Estas retroagem sobre o todo, e não podem ser identificadas quando se tomam os elementos isoladamente. Desse modo, a organização viva gera um certo número de qualidades, como autoprodução, autonutrição e auto-reparação. Tais qualidades não se encontram nas partes, mas as beneficiam. Da mesma forma, uma sociedade produz emergências culturais, como a linguagem, que retroage sobre os indivíduos e lhes permite, por sua aquisição (que é também conhecimento), tornarem-se plenamente humanos.
Consumou-se hoje, nas ciências, uma segunda transformação. A primeira aconteceu na Física, no começo deste século, e destronou a ordem. A outra começou na segunda metade do século, com as ciências ditas sistêmicas, que lidam com os sistemas ecológicos espontâneos, que nascem das
interações entre as plantas, os animais, o terreno geofísico, o clima. Todas essas interações produzem um conjunto mais ou menos auto-regulado, submetido a perturbações. Dessa maneira, a partir dos anos 80, a ecologia começou a levar em conta, além dos ecossistemas, o sistema ainda
mais complexo e mais ou menos regulado que é a biosfera. Isso permitiu acrescentar os seres humanos e sua civilização técnica, e prever com alguma certeza os riscos possíveis da desregulação.

A partir da descoberta da tectônica das placas, nos anos 60, as ciências da Terra (sismologia, vulcanologia, geologia), que não se comunicavam entre si, hoje são articuladas umas às outras. Essa circunstância tem permitido compreender o planeta como um conjunto articulado e complexo.
O ecologista, por exemplo, não conhece todos os dados da Zoologia, Botânica, Física, Geografia; tem um conhecimento parcial de cada uma, "um pouco de tudo", como dizia Pascal. No entanto, ao apelar para as competências dessas diferentes especialidades, ele dá um sentido a seus
conhecimentos e os articula entre si. Infelizmente, a Sociologia não fez essa revolução. A Biologia também não.
A cosmofísica, na realidade, tornou-se inseparável da cosmologia, que é um ensaio de compreensão do mundo. A revolução da ressurreição do cosmos (durante um século, o espaço-tempo — uma espécie de infinito — havia tomado o seu lugar) começou logo que se constatou o afastamento das
galáxias. Num determinado momento, supunha-se que elas eram muito próximas umas das outras e que havia existido um núcleo inicial. Hoje sabemos que o cosmos tem uma história e que ela sofreu transformações. O cosmólogo foi levado a refletir sobre o mundo, sua origem, seu propósito ou sentido, se é que existe um. Ele retoma assim a relação filosófica, reinventa uma filosofia em estado selvagem. Com efeito, por falta de interesse dos filósofos, os cientistas são obrigados a refletir sobre o sentido de suas descobertas.
A questão: "O que é o real?", que parecia tão evidente, reapareceu. O que é o Universo onde – para seguir d'Espagnat – as coisas obviamente separadas são, num certo nível, inseparáveis, a partir do momento em que interagem? Trata-se de falar de inseparabilidade na separabilidade. O grande desafio do conhecimento repousa sobre esse paradoxo: para uma mesma realidade, depara-se ao mesmo tempo com o contínuo e com o descontínuo. As célebres experiências sobre a onda e o corpúsculo, relativas à natureza da partícula, mostraram que ela se comporta tanto como ondulação quanto como grânulo. Ou seja: ora de modo contínuo, ora de forma descontínua – o que é contraditório do ponto de vista lógico. Reencontramos os mesmos problemas no que se refere à sociedade: se a consideramos de modo global, trata-se de um continuum – os indivíduos nela se dissolvem – como ainda imaginam numerosos sociólogos. Ou então, pode-se considerar que tanto
os indivíduos quando a sociedade se diluem, o que permite a certos autores dizer que esta não existe, e que só contam as interações entre as pessoas. No caso da espécie e do indivíduo é a mesma coisa: não existem senão indivíduos. Contudo, quando se leva em conta um longo espaço de tempo,
eles se dissolvem e surge a noção contínua de espécie.

Eis o paradoxo do separável e do inseparável. Pascal não só já o havia colocado, mas tinha também indicado o caminho a seguir para avançar no conhecimento. Que dizia ele? Que "sendo todas as coisas ajudadas e ajudantes, causadas e causadoras, estando tudo unido por uma ligação natural e insensível, acho impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, e impossível conhecer o todo sem conhecer cada uma das partes". Nessa frase, de uma densidade e clareza extraordinárias, ele formula — no mesmo momento em que Descartes, triunfante, introduz o princípio da separação absoluta — o programa do conhecimento contemporâneo, que ainda não se conseguiu pôr em prática.
No que concerne à lógica, o umbral foi transposto no momento em que certos teóricos, ou pensadores, mostraram os limites da indução. Segundo o célebre exemplo de Popper, a regra geral que diz que "todos os cisnes são brancos" já não é una, porque não se pode pressupor que não existam, em algum lugar, cisnes negros. A indução não é certeza absoluta; significa, em muitos casos, a existência de fortes possibilidades, de quase-certezas. Essa "derrapagem", que ocorre também na dedução, foi assinalada pelos gregos. É o "paradoxo de Creta", segundo o qual um cretense disse: “Tudo o que os cretenses dizem é mentira”. Se o que ele disse é verdade, então ele
disse uma mentira. Se o que ele disse é mentira, então ele disse uma verdade.

Esse paradoxo foi retomado por Russell, que tentou superá-lo. Ele nos conduz ao teorema de Gödel, cujo sentido é múltiplo, desde que queiramos investigá-lo além de seus limites matemáticos. É um problema de lógica fundamental, que nos ensina que nenhum sistema tem a capacidade de dar a si próprio a prova de sua consistência, atribuir-se uma certeza suficiente a partir de suas próprias fontes. Conseqüência metalógica: nenhum ser humano pode se autoconhecer por completo. O mesmo acontece com a Humanidade. Eis uma abertura reveladora da inconclusibilidade do
conhecimento — e da lógica.
A partir daí, a ciência clássica se defrontou com a contradição e começou a temer o erro. Niels Bohr teve a coragem de afrontar a aporia da onda e do corpúsculo sem poder ultrapassá-la, o que significa reconhecer que se trata de dois termos contraditórios e complementares. Admite-se hoje que é
possível chegar, por meios racionais e empíricos, a essas contradições. De resto, Kant já havia mostrado que no horizonte da razão havia um certo número de impasses fundamentais.

Pode-se enfrentar esse problema não sonhando entrar numa nova lógica, que nos permita integrar as contradições, mas mostrando que é possível promover um incessante jogo de circularidade entre nossa lógica tradicional e as transgressões necessárias ao progresso de uma racionalidade aberta.
Esse propósito pode ser ilustrado tomando o aforismo de Heráclito: "Viver de morte, morrer de vida". Eis uma proposição extravagante. No entanto, sabemos hoje que os seres vivos – nosso organismo, por exemplo – ao funcionar degradam sua energia, isto é, as moléculas de suas células.
Estas morrem e são substituídas por outras. Dizendo de outra forma, nossa vida continua graças à morte celular, porque o organismo é dotado de um poder de regeneração contínua. Cada batimento do coração, cada movimento respiratório, é uma obra de regeneração. O oxigênio é um
detoxificante.

Do mesmo modo, uma sociedade vive da morte de seus indivíduos. Faz isso passando às novasgerações a cultura que começa a se decompor nos cérebros mais senis. É como viver da morte. Essa contradição lógica fundamental pode ser explicada, etapa por etapa, de modo segmentar, sem sair do caminho lógico (as células têm a capacidade de se reproduzir). Entretanto, para compreender esse fenômeno básico necessitamos do paradoxo (que vale também para os ecossistemas) chamado
circularidade trófica, que ilustra a recursividade da vida: o ciclo vital, que é também de morte. São duas faces da mesma realidade. Morrer de vida: esse é o nosso processo de rejuvenescimento contínuo. É "mortificante" remoçar, eis a trágica lição da vida.

Estas formulações nos permitem unir o que o pensamento clássico não conseguiu. Continua sendo verdade que o maior inimigo da vida é a morte, e que o maior desafio ao fenômeno da decomposição é o renascimento da vida. O pensamento deve ser capaz de confrontar os antagonismos, poder
enxergar as aporias, sem que para tanto precise renegar o valor da lógica, a dedução ou a indução.

O pensamento complexo

Desses três desafios – a relação entre a ordem, a desordem e a organização; a questão da separabilidade ou a distinção entre separabilidade e não-separação; e o problema da lógica – podem ser tiradas as três vertentes do pensamento complexo. Discutir sem dividir: a palavra complexus retira daí seu primeiro sentido, ou seja, "o que é tecido junto". Pensar a complexidade é respeitar a tessitura comum, o complexo que ela forma para além de suas partes.

A segunda linha fundamental é a imprevisibilidade. Um pensamento complexo deve ser capaz de não apenas religar, mas de adotar uma postura em relação à incerteza. As ciências físicas, que descobriram a incerteza, encontraram estratégias para lidar com ela, utilizando a estatística, por
exemplo. A eletrônica permite alcançar resultados de grande precisão, em termos de conhecimento desse mundo flutuante. O pensamento capaz de lidar com a incerteza existe no domínio das ciências, mas não nos âmbitos social, econômico, psicológico e histórico.

O terceiro ponto é a oposição da racionalização fechada à racionalidade aberta. A primeira pensa que é a razão que está a serviço da lógica, enquanto a segunda imagina o inverso. Racionalizar significa acreditar que, se um determinado sistema é coerente, é portanto perfeito e por isso não
precisa ser verificado. Vivemos sob o império de idéias racionalizadoras, que não conseguem se dar conta do que acontece e privilegiam os sistemas fechados, coerentes e consistentes. A ciência econômica contemporânea – formalizada e matemática – é um magnífico exemplo de racionalização. É inteiramente fechada, não consegue perceber as paixões, a vida, a carne dos seres humanos. Por isso, é incapaz de fazer previsões quando surgem eventos inesperados. Mais ainda que no século de Moliére, os Disfoirus triunfam.
O desafio é hoje generalizado. Falar da incerteza é falar do caos. Emprego esse termo em seu sentido original, e não no derivado das teorias sobre o tema. Trata-se, como no pensamento grego, da idéia de que o cosmos, ou universo ordenado, nasce do caos, isto é, que forças genésicas extremamente violentas, comportando potencialmente a ordem e a desordem indiferenciadas, podem se exprimir num determinado momento. Os gregos pensavam que a origem do organizado, ou racional, é aloucura. É o que sustenta Platão, quando diz que diké, a justiça, é filha de hubris, o delírio. O caos é um pouco daquilo que corresponde à palavra physis, isto é, o mundo no qual estamos e do qual as coisas nascem. Está continuamente presente sob o cosmos, ou – pouco importa – no interior dele.
O Universo é caos. Isso quer dizer que forças de desordem, ordem e organização brotam continuamente do seu seio, o que dá origem à constituição de novas estrelas, a colisões de galáxias e, em nossa Terra, ao conflito de impulsos de barbárie e associação.
De acordo com a teoria do caos, processos deterministas por natureza conduzem, com grande rapidez, a estados imprevisíveis e aparentemente desordenados. Por quê? Porque as interações sãoincontroláveis e o conhecimento total e absoluto dos estados iniciais não nos é permitido. É uma maneira de dizer que, mesmo na ocorrência de um determinismo inicial, há imprevisibilidade e desordem aparentes. O que compreendeu Henri Atlan, o termodinâmico de origem austríaca, quando disse que a vida existe à temperatura de sua própria destruição? Segundo o seu belo livro Entre le
Cristal et la Fumée [Entre o Cristal e a Fumaça], é preciso entender que não somos nem fumaça nem cristal. Não somos seres fluidos nem sólidos. Somos híbridos que vivem à temperatura de sua combustão e destruição.
No desafio da complexidade, certos filósofos podem nos ajudar: Heráclito, com o enfrentamento das contradições; Sócrates com a dialética, cujo jogo de oposições faz progredir o conhecimento;
Nicolás de Cusa, no plano místico; João da Cruz; Jacob Boehme; Pascal, em cuja obra não se reconheceu o papel central que desempenham as contradições; Hegel, evidentemente; Nietzsche, até certo ponto.

A emergência dos sistemas

Entretanto, para que adquiríssemos os meios intelectuais e conceituais necessários à entrada no universo da complexidade, foi preciso esperar pelos anos 50, quando surgiram três teorias novas. A primeira foi a cibernética de Norbert Wiener, que é ao mesmo tempo engenheiro e pensador. A ele
devemos a idéia de retroação e circularidade, que estava latente desde a obra de Marx, na qual a superestrutura retroage sobre a infra-estrutura. Essa idéia de ciclos retroativos, que quebram a causalidade linear, mostra que os fatos podem, eles próprios, tornar-se causadores, ao retroagir sobre
a causa, como Pascal já havia assinalado. Essa recursividade tem dois aspectos: um, regulador, que impede que os desvios destruam os sistemas; e outro potencialmente destruidor, chamado de feedback positivo, que os fazem explodir.

Nos anos 60, outro pensador, o nipo-americano Magoroh Maruyama, fez a seguinte proposição: não se pode ter criação, a não ser por meio dos feedbacks positivos. Em outros termos, quando um
sistema de desregula, há um desvio que se amplifica. Nesse caso, o sistema – sobretudo se é complexo (social ou humano) – em vez de se desgovernar pode transformar-se. A criação não é possível senão pela desregulação.
O segundo aporte conceitual é a teoria dos sistemas, que propõe que o todo é maior que a soma de suas partes, mas também que é menor que ela; assim, a totalidade pode oprimir as partes e impedir que estas dêem o melhor de si mesmas. Isso tem conseqüências político-sociais indiretas. Um grande império não é melhor porque é um todo: sua bancarrota pode ser salutar, ao liberar as potencialidades das partes dominadas.

A idéia capital aqui é a de emergência. As qualidades que aparecem podem ser induzidas, mas não podem, em contrapartida, ser deduzidas logicamente. As emergências estão em qualquer espécie de
flor. A evolução biológica levou, num determinado momento, a uma verdadeira explosão floral — mas persiste a questão de saber por que as flores têm necessidade de mostrar o seu sexo, de serem exibicionistas!

O terceiro aporte é a teoria da informação, de Shannon e Weaver. É um instrumento capaz de lidar com a incerteza, com o inesperado. Extrai-se do mundo do ruído algo de novo e muitas vezes surpreendente. A noção de informação, ao mesmo tempo física e semântica, nos introduz num
mundo onde o novo pode aparecer, ser reconhecido, assinalado... Captamos o novo nessa relação permanente de ordem e redundância, na integração do conhecido e na ordem do ruído.

Essas três teorias formam uma espécie de "rés-do-chão". No primeiro estágio, pode-se colocar a contribuição de Von Foerster e Von Neumann. Este, refletindo sobre a diferença entre as máquinas artificiais – as que produzimos a partir de elementos fabricados e confiáveis – e as máquinas
naturais, cujos elementos são pouco confiáveis (essas moléculas que se degradam por um nada!), perguntou-se: por que as primeiras, logo que começam a funcionar, iniciam seus processos de usura e degradação, enquanto que as segundas – os seres vivos – podem progredir, evoluir? A resposta é que os viventes têm o poder da auto-reparação, da auto-reforma.

A segunda idéia, de Von Foerster, é a "ordem a partir do ruído". Seu jogo experimental era o seguinte: tomava de uma caixa, dentro da qual colocava cubos com determinados lados imantados.
Em seguida provocava agitação, isto é, introduzia na caixa uma energia não-direcional e, portanto, a desordem. Apesar disso, a presença de um princípio de ordem – os ímãs – permitia que os cubos chegassem a uma arquitetura bem organizada. Eis o fenômeno da auto-organização.

O segundo estágio é o que se poderia chamar de auto-eco-organização. Um ser vivo precisa nutrir-se para regenerar sua energia. Para ser autônomo, tem necessidade do meio ambiente, de onde retira não energia bruta, mas já organizada. Do mesmo modo, temos gravada em nossa organização uma
ordem cósmica, a alternância do dia e da noite. Essa ordem (por uma espécie de mecanismo cíclico, que pode se tornar independente da luz e da obscuridade, como mostraram experiências em cavernas sem luz) nos permite alternar a vigília e o sono...

Tudo isso para dizer que a separação entre o conhecedor e o conhecido não pode ser alcançada.
Sabe-se, depois de Kant, que para conhecer o mundo projetamos nele nossas categorias, nossos a priori espaciais e temporais.

Por uma convivência solidária

Essa circunstância pode ser ainda confirmada pelo funcionamento do cérebro humano: isolado no interior de uma caixa fechada, ele todavia se comunica com o Universo pela mediação de terminais sensoriais. Os estímulos visuais, por exemplo, são transformados num código binário, que tecido cerebral retrabalha e transforma em percepção ou representação. O conhecimento não é senão uma tradução, uma reconstrução. Não conhecemos a essência das coisas exteriores. Sabemos das coisas objetivas, que podemos confirmar, mas não há conhecimento sem integração do conhecido. Essa
circunstância vale também para os fenômenos sociais e humanos. O sociólogo e o economista são parte da sociedade, e a totalidade desta – ou seja, a cultura, a linguagem – está também neles.

Num estágio superior, vejo a necessidade de uma reforma paradigmática dos conceitos dominantes e de suas relações lógicas, que controlam, inconsciente e incorrigivelmente, todo o nosso
conhecimento. O paradigma sob o qual vivemos é o da disjunção e da redução: e ele nos torna cegos, nesta era de globalidade e mundialização.
Não podemos produzir por decreto a reforma necessária, porque ela está inscrita no próprio curso da história; pensemos na passagem do paradigma ptolomaico ao copernicano. Tal reforma consiste em passar para um paradigma de religação, conjunção, implicação mútua e distinção. Ela pressupõeuma mudança no ensino, que por sua vez implica uma transformação do pensamento. É um círculo vicioso, do qual precisamos sair um dia... Um conhecimento pertinente é aquele que é capaz de
contextualizar, isto é, religar, globalizar. A ação adquire um novo sentido: fazer as apostas. Pascal – novamente ele – apostava em Deus. Nós apostamos em valores que não podem ser fundamentados.
Assim como o mundo, a ética se autoproduz.

Conhecer é também uma estratégia, que pode se modificar em relação ao programa inicial, que é flexível e leva em conta o que chamo de ecologia da ação. Sabe-se hoje que uma ação, lançada ao mundo, entra num turbilhão de interações e retroações, que podem se voltar contra a intenção inicial.

Por fim, uma última idéia: o sentimento de uma comunidade de destino profundo, que liga as idéias de solidariedade e fraternidade. O laço entre complexidade e solidariedade não é mecânico. Uma sociedade muito complexa proporciona muitas liberdades de jogo a seus indivíduos e grupos.
Permite-lhes ser criativos, algumas vezes delinqüentes. A complexidade tem, assim, seus riscos. Ao atingir o extremo da complexidade a sociedade se desintegra. Para impedi-lo, pode-se recorrer a medidas autoritárias; entretanto, supondo que desejemos o mínimo possível de coerção, o único
cimento que nos resta é a solidariedade vivida.

Nota – Este texto apareceu anteriormente na publicação de ensaios THOT, da Associação Palas
Athena, São Paulo (no. 67, 1998, pp. 12-19)

EDGAR MORIN é diretor emérito do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, e
presidente da Association pour la Pensée Complexe, também sediada em Paris.






quinta-feira, 28 de julho de 2011

Jung e a Gnose.



"Desde o princípio de sua carreira psicanalítica até a morte, Jung manteve um vivo interesse e uma profunda simpatia pelos gnósticos. Já em 12 de agosto de 1912, Jung escreveu uma carta a Freud a respeito dos gnósticos, na qual qualificou a concepção gnóstica de Sofia de reaproveitamento de uma antiga sabedoria que poderia aparecer uma vez mais na moderna psicanálise. Não lhe faltava literatura capaz de estimular seu interesse pelos gnósticos, porque os eruditos do século XIX na Alemanha (embora quase que em nenhum outro país) devotavam-se diligentemente aos estudos gnósticos. Em parte como reação contra a rigidez da Alemanha bismarckiana e a seus efeitos conformistas, tanto teológicos como intelectuais, inúmeros eruditos excelentes (Reitzenstein, Leisengang e Carl Schmidt, entre outros), além de poetas e escritores criativos (Herman Usher,Albrecht Dieterich), e, pelo menos, alguns membros da intelectualidade francesa (M. Jacques Matter, Anatole France) investigaram a tradição gnóstica. Todos os biógrafos de Jung mencionaram seu profundo interesse por assuntos gnósticos. Uma das declarações mais reveladoras a esse respeito é citada por uma de suas ex-colaboradoras, Bárbara Hannah, que lhe reproduz as palavras sobre os gnósticos: "Senti como se finalmente tivesse um círculo de amigos que me entendessem". A mesma biógrafa também ressalta que Jung desenvolveu um interesse por Schopenhauer justamente porque o grande filósofo alemão lembrava-lhe os gnósticos e a ênfase que colocavam no aspecto do sofrimento do mundo; além disso, ele aprovava de todo o coração o fato de Schopenhauer "não falar nem da providência onisciente e todo-misericordiosa de um Criador, nem da harmonia do cosmo, mas ter afirmado abertamente que uma falha fundamental subjazia ao triste curso da história humana e à crueldade da natureza; a cegueira da Vontade criadora do mundo..." Que essas são afirmações completamente gnósticas não é preciso dizer. Como seu interesse por Schopenhauer remonta à infância, podemos considerar Jung, sob muitos aspectos, como um gnóstico "natural', possuidor de uma postura gnóstica mesmo antes de familiarizar-se com alguns dos ensinamentos do gnosticismo.

Apesar de Jung ter tido acesso a certo volume de literatura poética e erudita bem cedo na vida, o que estimulou seu interesse pelo gnosticismo, ele não contou com quase nenhum material de natureza gnóstica procedente de fontes originais à sua disposição. Como muitos outros, para informar-se sobre os gnósticos, Jung teve de se basear nos relatos fragmentados e sobretudo deslealmente distorcidos dos padres da igreja antignóstica, em particular Irineu e Hipólito. As pesadas engrenagens da erudição acadêmica apenas começavam, com extrema lentidão e mesmo relutância, a dedicar-se aos três códices coptas Codex Agnew, Codex Bruce, Codex Askew, que na época mofavam em vários museus, esperando para ser traduzidos e publicados. Pode-se considerar algo miraculoso que Jung tenha sido capaz de obter tanta compreensão e extrair tanta informação valiosa, favorável ao gnosticismo, das polêmicas dos padres caçadores de hereges da Igreja. A contribuição de Jung Aos estudos gnósticos em geral e a uma esclarecida interpretação contemporânea do gnosticismo em particular é pouco menos que notável em alcance e importância. É lamentável que essa contribuição não seja ainda apreciada por um número crescente de especialistas em gnosticismo, dentro do campo de estudos bíblicos, embora isso não seja particularmente surpreendente, em vista do fato de que a maioria desses eruditos provem de escolas de teologia e de religião com tendências ortodoxas. Além disso, muitos deles carecem por completo de qualquer apreciação séria da psicologia, especialmente do tipo de psicologia que Jung proclamou. Afirma-se que a guerra é por demais importante para ser confiada a generais; da mesma forma, seria igualmente justo dizer que o gnosticismo representa uma tradição de muito valor para ser consignada a estudiosos da Bíblia e a sofistas de palavras coptas. A falta de atenção e respeito dispensados a Jung por alguns desses eruditos é ainda mais inacreditável, considerando-se que a influência de Jung consiste praticamente na única responsável pelo projeto vital de publicação do maior acervo de escritos gnósticos originais descobertos na história: a Biblioteca de Nag Hammadi.

Os gnósticos foram prolíficos escritores da tradição sacra. Seus inimigos observaram com desaprovação que os seguidores do instrutor gnóstico Valentino costumavam escrever um novo evangelho a cada dia, e que nenhum deles era muito estimado, a menos que desse uma nova contribuição à sua literatura. Entretanto, de toda essa profusão de textos, muito pouco sobreviveu, devido à incansável supressão e destruição da literatura gnóstica a que se dedicaram os queimadores de livros e caçadores de hereges da Igreja que, com o apoio do poder constituído, obtiveram predominância sobre os seus rivais. Durante muitos séculos, não se soube da existência de nenhuma literatura gnóstica original. Foi somente nos séculos XVIII e XIX que viajantes, como o destemido e romântico escocês James Bruce, começaram a trazer para a Europa, do Egito e localidades vizinhas, fragmentos de papiros antigos contendo textos. Embora talvez escritos originariamente em grego, esses haviam sido traduzidos pelos escribas gnósticos para o copta, a língua popular do Egito helênico. Sendo realmente raros os eruditos coptas e demais pessoas interessadas em gnosticismo, a tradução desses textos procedeu-se muito lentamente. Então, um quase milagre aconteceu. Em dezembro de 1945, pouco após o término da II Guerra Mundial, um camponês egípcio encontrou uma coleção inteira de manuscritos gnósticos enquanto cavava para extrair fertilizantes na vizinhança de algumas cavernas, na caldeia montanhosa de Jabal al-Terif, próximo ao Nilo, no Alto Egito. Aparentemente, esses tesouros fizeram parte, em certa época, da biblioteca do vastocomplexo fundado na região pelo pai do monasticismo cristão, o monge copta São Pacômio.

Como seus predecessores, a descoberta de Nag Hammadi custou muito a se concretizar. Os métodos lentos dos acadêmicos foram, entretanto, bastante acelerados pela influência de um homem que não era nem erudito copta nem especialista bíblico, mas simplesmente um arqueólogo da alma humana. Esse homem era, é claro, Carl Jung. Ele se interessou pela descoberta de Nag Hammadi desde o princípio; foi um antigo amigo e colaborador de Jung, o professor Gilles Quispel, que tornou a iniciativa de traduzir e publicar os livros de Hag Hammadi. E, 10 de maio de 1952, embora a crise política e a dissenção acadêmica paralisassem todos os trabalhos relativos aos manuscritos, Quispel adquiriu um dos códices em Bruxelas, e desta porção da grande biblioteca, realizou-se a maior parte das primeiras traduções, envergonhando assim a comunidade erudita, que se viu na contingência de apressar o trabalho longamente adiado. Esse documento, intitulado Jung Codex, foi apresentado ao Instituto Jung de Zurique por ocasião do octogésimo aniversário do Dr. Jung, tornando-se o primeiro item da descoberta de Nag Hammadi a ser abertamente examinado por eruditos e leigos fora do turbulento ambiente não-cooperativo do Egito dos anos 50. O próprio professor Quispel declarou ter sido Jung, uma peça-chave no despertar da atenção sobre os manuscritos e na publicação da valiosa coleção de Nag Hammadi. Existem boas razões para se crer que, sem a influência de Jung, essa coleção também poderia ter sido relegada à obscuridade pela aparentemente sempre ativa conspiração da negligência erudita. (Para maiores detalhes sobre a história da Biblioteca de Nag Hammadi e a participação de Jung, ver: H.C. Puech, G. Quispel, W.C. Van Unnik: The Jung Codex, Londres, M.R. Mowbray, 1955). Qual era a verdadeira visão de Jung a respeito do gnosticismo? Ao contrário da maioria dos eruditos até bem recentemente, ele jamais acreditou que se tratasse de uma heresia cristão dos séculos II e III. Também nunca deu importância às infindáveis disputas de especialistas a respeito das possíveis origens do gnosticismo: indiana, iraniana, grega e outras. Antes de qualquer outra autoridade no campo dos estudos sobre os gnósticos, Jung reconheceu-se por aquilo que eram: videntes que produziram criações originais e primordiais, a partir do mistério que ele chamou de inconsciente. Quando, em 1940, perguntaram-lhe se o gnosticismo era filosofia ou mitologia, ele respondeu com seriedade que os gnósticos lidavam com imagens reais e originais e não eram filósofos sincretistas, como muitos supunham. Jung reconheceu que imagens surgem ainda hoje nas experiências interiores das pessoas, ligadas à individualização da psique: nisso ele via evidência do fato de que os gnósticos expressavam imagens arquetípicas reais que, como se sabe, persistem e existem independentemente do tempo ou de circunstâncias históricas. Ele identificou no gnosticismo uma poderosa e absolutamente primordial e original expressão da mente humana, uma expressão dirigida para a mais profunda e importante tarefa da alma, ou seja, a obtenção de sua plenitude. Os gnósticos, como Jung os percebia, interessavam-se acima de tudo por uma coisa - a experiência da plenitude do Ser. Considerando que isso incorporava seu interesse pessoal e também o objetivo de sua psicologia, é incontestável que sua afinidade com os gnósticos e com sua sabedoria era realmente grande. Essa visão do gnosticismo não se confinou aos trabalhos psicológicos de Jung, mas logo entrou no mundo dos estudos gnósiticos por intermédio do supracitado colaborador, Gilles Quispel, que, em seu importante trabalho Gnosis als Weltreligion (1951), apresentou a tese de que o gnosticismo não expressa nem uma filosofia nem uma heresia, mas uma experiência religiosa específica, que então se manifesta como mito e (ou) ritual. É de fato lamentável que, após mais de vinte e cinco anos da publicação desse trabalho, tão poucos tenham apreciado suas significativas implicações.

Em vista dessas considerações, pode-se compreensivelmente indagar: Jung era um gnóstico? Pessoas mal informadas responderam sim a essa pergunta, querendo dizer com isso que Jung não era nem um cientista respeitável nem um bom homem, de acordo com o significado religioso ortodoxo do termo. Em virtude do uso pejorativo da expressão gnóstico, muitos dos seguidores de Jung, e ocasionalmente o próprio Jung, negaram que ele fosse um gnóstico. Um exemplo bem típico dessas evasivas foi a declaração de Gilles Quispel, segundo a qual "Jung não era um gnóstico no sentido comum do termo". Por outro lado, é muito duvidoso que jamais tenha havido um único gnóstico no sentido comum do termo. O gnosticismo não constitui um conjunto de doutrinas, mas a expressão mitológica de uma experiência interior. Em termos de psicologia junguiana, poderíamos dizer que os gnósticos deram expressão em linguagem poética e mitológica às suas experiências dentro do processo de individualização. Ao faze-lo, eles produziram uma profusão do mais significativo material, contendo profundas percepções da estrutura da psique, do conteúdo do inconsciente coletivo e da dinâmica do processo de individualização. Como o próprio Jung, os gnósticos não descreveram apenas os aspectos conscientes e pessoais inconscientes da psique humana, mas exploraram empiricamente o inconsciente coletivo e forneceram descrições formulações das várias imagens e forças arquetípicas. Como afirmou Jung, os gnósticos foram muito mais bem sucedidos do que os cristãos ortodoxos na descoberta de expressões simbólicas adequadas do Ser, e essas expressões assemelham-se às formuladas por Jung. Embora Jung não tenha se identificado abertamente com o gnosticismo como escola religiosa , da mesma forma que não se identificou com nenhuma seita religiosa, pouca dúvida pode existir de que ele fez, mais do que qualquer outra pessoa, lançar luz sobre o impulso central das imagens e da prática simbólica gnósticas. Ele viu no gnosticismo uma expressão particularmente valiosa da luta universal do homem para readquirir a plenitude. Embora não fosse prático nem modesto que ele o dissesse, não há dúvida de que essa expressão gnóstica do anseio pela plenitude só foi reproduzida uma vez na história do Ocidente, e isso se deu no próprio sistema da psicologia analítica de Jung.

Que tipo de gnóstico era Jung? Certamente, não um seguidor literal de nenhum dos antigos mestres da Gnose, o que teria sido um empreendimento impossível, diante da insuficiência de informações detalhadas a respeito desses e de seus ensinamentos. Por outro lado, como os gnósticos do passado, ele formulou pelo menos os rudimentos de um sistema de transformações ou individualização, que se baseava não na fé numa fonte exterior (seja Jesus ou Valentino), mas na experiência interior, natural da alma que sempre representou a fonte de toda verdadeira Gnose.

A definição léxica de gnóstico é conhecedor, e não seguidor de alguém que pode ser um conhecedor. Jung sem dúvida era um conhecedor, se é que já houve algum. Negar que ele era um gnóstico nesse sentido equivaleria à negação de todos os dados reconhecidos sobre sua vida e seu trabalho. A mais provável indicação do caráter especificamente da linha seguida por Jung, no entanto, não é outra senão o tratado intitulado Sete Sermões aos Mortos, o qual, segundo admitem proeminentes Junguianos, constitui a fonte e a origem de seu trabalho posterior. Quem, a não ser um gnóstico, escreveria ou poderia escrever uma obra como esses sermões? Quem optaria por revestir suas revelações arquetípicas pessoais, que formam o esqueleto do trabalho de sua vida a terminologia e o estilo mitológico da Gnose Alexandrina? Quem preferiria eleger Basílides, em vez de qualquer outro vulto, como autor dos Sermões? Quem usaria com versada compreensão e finesse, termos como Pleroma e Abraxas para simbolizar estados psicológicos altamente abstratos? Há apenas uma resposta para essas perguntas: somente um gnóstico faria essas coisas. Como Carl Jung realizou tudo isso e muito mais, podemos portanto considera-lo gnóstico, tanto no sentido geral de um verdadeiro conhecedor das mais profundas realidades do ser psíquico como no sentido mais estrito de moderno restaurador do gnosticismo dos primeiros séculos da era cristã.

Jung e a Gnose Pansófica

De acordo com Morton Smith, notável descobridor do Evangelho Secreto de Marco, o termo gnostikoi em geral se aplicava a pessoas de tendência pitagórica e ou platônica, embora naturalmente a expressão Gnose apareça nos escritos de muitos autores ligados a outras escolas, incluindo Padres da igreja ortodoxa cristã, como Orígenes e Clemente de Alexandria. A Biblioteca Gnóstica de Nag Hammadi continha cópias da República de Platão e também de certos tratados herméticos que os eruditos puristas da vindima contemporânea jamais sonhariam incluir na literatura gnóstica. Tudo isso fornece indícios para convicção de que, já em tempos primitivos, quando as escolas gnósticas ainda estavam vivas fisicamente, o gnosticismo caracterizava-se por um considerável ecumenismo e flexibilidade. Os membros da suposta comunidade gnóstica do Alto Egito provavelmente teriam definido a literatura gnóstica como qualquer escritura de valor espiritual, capaz de produzir Gnose no leitor. Acadêmicos versados em gnosticismo podem aspirar ao status de puristas, mas os próprios gnósticos nunca o foram, nem poderiam ser. Assim, nos séculos posteriores, após a destruição das comunidades gnósticas primitivas e de suas escrituras, o espírito gnóstico continuou a viver sob muitos nomes e disfarces, servindo ainda a seus propósitos originais e imorredouros. Enquanto existir uma luz na individualidade mais recôndita da natureza humana, enquanto existirem homens e mulheres que se sintam semelhantes a essa luz, sempre haverá gósticos no mundo. Podemos considerar sua contínua existência resultante em grande medida da sobrevivência dos arquétipos gnósticos no inconsciente coletivo e da própria natureza dos processos de crescimento e desenvolvimento da psique em si. Jung, indubitavelmente sabia disso quando se referiu ao processo de confronto com a sombra (o reconhecimento da parte inaceitável ou má de nós mesmos) como um "processo gnóstico". Os padres da Igreja cunharam a frase anima naturaliter christiana (a alma que é cristã por natureza); entretanto os gnósticos, com muito maior legitimidade, poderiam ter dito que o conteúdo da alma e sua senda de crescimento são por natureza gnósticos. O inegável caráter arquetípico do gnosticismo não constitui a única causa de sua sobrevivência. Além do caráter gnóstico do inconsciente, que tende espontaneamente a produzir sistemas gnósticos de realidade, existe também um desenvolvimento histórico e uma continuidade ligando os antigos adeptos do gnosticismo a seus herdeiros de períodos históricos posteriores.

Movimentos subterrâneos raras vezes se prestam como objetos para o historiador. Compelidos ao segredo pelo ambiente hostil, sua principal preocupação é a sobrevivência, e portanto eles deixam relativamente poucos vestígios perceptíveis no solo do tempo. Grande parte, embora não a totalidade, da história gnóstica posterior aos séculos III e IV constitui-se de especulação e intuição em lugar de fatos. Contudo, nessa tênue estrutura de segredos e subterfúgios, de evasões e ocasionais declarações ousadas, certos dados significativos se sobressaem com singular força e brilho. Como um desses dados encontra-se a vida e o trabalho do esplêndido profeta Mani (215-277 d.C.), cuja estrela se elevou justamente quando a dos gnósticos declinava. Mani foi um gnóstico, tanto pela natureza de seu caráter como em virtude da tradição. Aos doze anos de idade, recebeu a visita de um anjo que lhe anunciou haver sido escolhido para grandes tarefas. Aos vinte e quatro anos o anjo voltou à sua presença e exortou-o a aparecer em público e proclamar a sua doutrina. O termo persa que designa esse anjo significa gêmeo; tratava-se do irmão gêmeo espiritual ou Eu Superior ( o Ser) de Mani. O tratado gnóstico conhecido como Pistis Sophia relata um incidente semelhante na vida de Jesus, que em sua juventude foi visitado por um anjo que parecia irmão gêmeo e a quem Jesus uniu-se quando se abraçaram. Esses mitos expressam o encontro junguiano ente o ego e o Self (Ser), com a conseqüente união dos opostos. Descobertas recentes parecem indicar, no entanto, que o pai de Mani, Patiq, viajou à Síria e à Palestina e lá juntou-se a um grupo judeu ou mandeano de caráter gnóstico. Portanto, com toda a probabilidade, Mani recebeu instrução gnóstica de seu pai ou dos mestres de seu pai.

Mani foi cruelmente executado por um traiçoeiro monarca instigado pelo clero zoroastriano, mas sua religião continuou a florescer em muitos lugares por vários séculos, tornando-se a principal fonte de transmissão da tradição gnóstica. Ainda em s813, a ordem maniqueísta do Lótus Branco e da Nuvem Negra continuava politicamente ativa na China, e parece haver indicações da existência de remanescentes maniqueístas no Vietnã em 1911. Ao contrário dos primeiros mestres gnósticos, Mani era um hábil organizador, e os missionários de sua igreja foram infatigáveis viajantes e pregadores. Na Europa, por duas vezes, a Gnose maniqueísta ergueu a cabeça com poderosa audácia: uma das regiões balcânicas da Bulgária e da Bósnia, onde seus seguidores eram conhecidos como bogomilos, e outra no sul da França, região em que seus adeptos ficaram conhecidos como cátaros ou albigenses. Embora sempre imersa em sangue, sua influência penetrou o campo religioso e cultural de muitos países, ajudando a reforçar a corrente oculta das tradições gnósticas, que continuariam a sobreviver em segredo.

Enquanto os herdeiros espirituais de Mani expunham seus ensinamentos gnósticos abertamente, a despeito de esmagadoras desvantagens, várias tradições estritamente secretas continuaram a existir, em especial na Europa e no Oriente Médio. Foi com uma dessas tradições ocultas da Gnose que Carl Jung estabeleceu um vínculo muito significativo. A tradição a que nos referimos é a Alquimia. Em discurso durante a apresentação do célebre Jung Codex, da coleção de Nag Hammadi, ao Instituto C. G. Jung, Jung destacou dois representantes principais da tradição gnóstica: a Cabala judaica e o que ele chamou de "Alquimia Filosófica". Jung estava familiarizado com a Cabala e era leitor assíduo de uma de suas maiores obras, a tradução latina do Zohar realizada por Knorr von Rosenroth e conhecida como Kabbalah Denudata. A pricipal modalidade da Gnose que muito atraiu Jung, no entanto, não foi a Cabala, mas a Alquimia. Ele teceu extensos comentários em muitos volumes de seus melhores escritos sobre seu intricado simbolismo e suas notáveis metáforas transformadoras.

Muitos têm curiosidade de saber por que Jung teria escolhido a obscura e amplamente ridicularizada disciplina oculta da Alquimia como um dos assuntos favoritos de sua pesquisa. A resposta para o dilema, embora tenha sido dada de forma clara pelo próprio Jung, não conseguiu provocar a devida reação. Durante cerca de doze anos, desde a I Guerra Mundial até 1926, Jung devotou-se com grande zelo ao estudo da literatura sobre o gnosticismo disponível na época. A despeito do caráter fragmentário e distorcido desse material literário, ele se informou bem sobre o assunto e imbuiu-se completamente de seu espírito, como o comprova o conteúdo dos Sete Sermões aos Mortos. O que Jung não conseguiu encontrar, no início, foi algum tipo de ponte ou elo que pudesse relacionar os antigos gnósticos com os dos períodos mais recentes, incluindo os contemporâneos. Necessitava-se de algum vaso sagrado, como o Graal, onde o precioso elixir, uma vez utilizado por mestres como Valentino e Basílides, fosse preservado e no qual fosse transportado ao longo dos séculos para atrair os possíveis Parsifais gnósticos de nossa era. A intuição indicou a Jung que devia existir essa ponte, um elo de ligação na cadeia da sabedoria, mas ele não conseguia perceber racionalmente onde procura-lo. Então, como sempre, foi auxiliado por um sonho. Esse transportou-o ao século XVII, quando a Alquimia ainda prosperava na Europa. Um reconhecimento despertou nele. Aqui está, pensou, o elo que faltava na estirpe da gnose! Assim, começou sua grande pesquisa, a qual levou-o finalmente a proclamar que a alquimia, de fato, representava e elo histórico com o gnosticismo e que, portanto, existia uma continuidade definitiva entre o passado e o presente. Jung declarou que, fundamentada na filosofia natural da Idade Média, a Alquimia formava, de um lado, a ponte em relação ao passado, com o gnosticismo, e, do outro, ao futuro, com a moderna psicologia profunda. Assim surgiu um dos marcos significativos da pesquisa histórica esotérica. Descobriu-se que a Alquimia constituía justamente a ponte através da qual a Gnose do passado atravessou a tempo adentrando o mundo moderno como a psicologia Junguiana do inconsciente. As implicações relativas às conexões do pensamento de Jung com o gonosticismo, apesar de raras vezes mencionadas no passado, são entretanto evidentes para todos. Pode-se resumi-las da seguinte maneira: Jung poderia ser visto como um gnóstico moderno que absorveu a Gnose, tanto por meio de sua transformação interior como por seus estudos que confirmam a literatura gnóstica. Ele sabia que expunha em sua psicologia uma disciplina essencialmente gnóstica de transformação, sob a aparência contemporânea. Jung precisava descobrir uma ligação histórica entre seus próprios esforços e aqueles dos mestres gnósticos da antiguidade. Também precisava de uma exposição do método gnóstico de transformação que não fosse fragmentária mas contivesse um vocabulário adequado de símbolos psicologicamente válidos para serem utilizados no contexto do estudo da mente humana hoje. Na Alquimia, encontrou exatamente o que procurava. Assim, a resposta a seus sonhos veio anunciada por um sonho.
Na Alquimia, Jung contatou um dos mais importantes ramos do que se tem por vezes chamado de Tradição Pansófica ou a herança de sabedoria originária de fontes gnósticas, herméticas e neoplatônicas, através de numerosas manifestações posteriores até a época contemporânea. Como Jung reconheceu, essa tradição pansófica ou teosófica, assumiu muitas formas no decorrer dos tempos, mas foi também particularmente expressa no fim do século XIX e início do XX dentro do movimento da Teosofia, enunciado pela aristocrata e cosmopolita russa, madame H.P. Blavastsky. Em obras como The Undiscovered Self e Civilization in Transition, Jung identificou claramente a moderna Teosofia como uma importante manifestação contemporânea do gonosticismo, comparando-a a uma cadeia de montanhas submarina que se estende sob as ondas das principais correntes de Cultura, com apenas os picos tornando-se visíveis de vez em quando, através da atenção recebida por Madame Blavastsky, Annie Besant, Krishnamurti e outros.

Como Jung várias vezes enfatizou, o cristianismo ortodoxo (deve-se incluir também o judaísmo ortodoxo) comprovadamente deixou de atender às mais profundas e essenciais necessidades da alma da humanidade ocidental. A teologia cristã era por demais racionalista, reducionista e insensível às profundas potencialidades da alma humana. Enquanto a Igreja aliava-se, uma após outra, a instituições seculares irremediavelmente não espirituais, de Constantino a Mussolini, seu espírito se atrofiou sob a influência perniciosa da lógica aristotélica e de outras estruturas de pensamento que sufocaram o anseio de transformação psíquica pessoal dos crentes. Nesse clima de aridez espiritual, que persistiu por cerca de 1700 anos, o desejo de individualização voltou-se quase sempre para a espiritualidade alternativa dos ensinamentos Pansóficos ou Teosóficos; estes, embora não exclusivamente gnósticos no sentido clássico, continham muitos ingredientes do gnosticismo.

O século XVII, para o qual Jung viu-se transportado em seu sonho alquímico, representou um dos pontos mais importantes na história do aparecimento dessa tradição alternativa da espiritualidade. Foi nessa época que o movimento que Francês Yates chamou de Iluminismo Rosacruciano induziu a Alquimia helenística a colaborar com o gnosticismo judaico da Cabala e os métodos de magia teúrgica, originários tanto do gnosticismo como do neoplatonismo.O maior luminar dessa contraparte espiritual do Renascimento literário e artístico foi um homem por quem Jung teve uma extraordinária e irresistível afinidade interior, Phillipus Aureolus Theophrastus Paracelsus Bombastus, de Hohenheim, que, como ele, era suíço, médico e um homem determinado a juntar os opostos da ciência e da espiritualidade em uma unidade operante.

Apesar de ser um exuberante e gigantesco homem da Renascença, cheio de curiosidade científica e de aspirações espirituais - sem falar das tendências emocionais e físicas de proporções igualmente heróicas - Paracelso foi sob muitos aspectos um verdadeiro gnóstico. Lutador, arrogante, intensamente independente (seu mote era "Aquele que pode ser ele próprio, não deveria ser outro"), nutriu supremo desprezo pelo mundo do poder, do dogma e dos valores estabelecidos. Viajante solitário e nômade, percorreu quase todo o mundo conhecido de seu tempo, morrendo misteriosamente e sozinho em Salzburgo, Áustria, onde até sua tumba foi encontrada vazia, anos depois. De maneira muito semelhante a Jung, ele considerava a enfermidade um fenômeno espiritual relacionado com o significado universal da vida dentro de um cosmo mágico. Seu epigrama "A Magia é uma Grande Sabedoria Oculta - A Razão é uma Grande Loucura Pública" poderia ser facilmente adaptado para caracterizar a descoberta que Jung fez sobre a significativa não racionalidade do inconsciente, repleto da sua própria magia simbólica e revelando-se nas maravilhas da sincronicidade. Bem no início de sua carreira (1929), falando na mesma casa onde Paracelso nasceu, em Einsiedeln, Suíça, Jung traçou repetidas comparações entre a filosofia do grande médico ocultista e os ensinamentos do gnosticismo. Jung reconheceu no princípio cosmogênico proposto por Paracelso, e por ele chamado de Hylaster, uma forma de demiurgo gnóstico ou divindade subordinada à divindade suprema, algumas vezes considerado o criador do mal. Ele relacionou a visão alquímica das potencialidades arquetípicas encerradas na matéria com o conceito gnóstico das centelhas de luz espalhadas pelo universo obscurecido. Com singular clareza, ele percebeu como o oculto materialismo de Paracelso e dos alquimistas não passava de uma forma nova do visível e extremo idealismo dos gnósticos. Jung constatou que o mesmo processo de transformação que os gnósticos simbolizavam como a viagem da alma através das regiões eônicas aparecia no simbolismo de Paracelso como a transformação gradual da negra prima matéria no ouro brilhante da obra alquímica. Embora pólos opostos na aparência, gnósticos e alquimistas compartilhavam uma busca comum. Eles também se opunham a um inimigo comum, o Cristianismo ortodoxo, que sempre foi incapaz de apreciar tanto as potencialidades de transformação da matéria como a santidade, de fato a divindade, naturalmente inerente e autêntica da psique humana. Em vez da apreciação de uma ou ambas dessas proposições gnósticas e alquímicas, a Igreja escolheu definhar no limbo psicológico composto pela lógica aristotélica e pela obsessão semítica com relação a leis morais e mandamentos. Paracelso e os alquimistas eram caros a Jung, por representarem para ele uma poderosa manifestação da Tradição Pansófica, proveniente do antigo gnosticismo.

Paracelso, Pico da La Mirandola, Ficino e seus companheiros podem ter iniciado a fusão Pansófica de disciplinas mágico-filosóficas de transformação. No entanto, essa síntese teosófica ou pansófica alcançou a realização máxima no século XVII, com os autores desconhecidos da Fama Fraternitatis, da Confessio Fraternitatis e de Chymical Wedding of Christian Rosen Kreuz, bem como os escritores e atividades dos ocultistas reanscentistas ingleses: John Dee, Thomas Vaughan e Robert Fludd.

A supracitada historiadora Francês Yates, prova, em seus mais convincentes trabalhos eruditos (Giordano Bruno e a Tradição Hermética, assim como The Art of Memory, The Theatre of the World e O Iluminismo Rosa-Cruz) que a arte, a ciência, a literatura e o teatro da Renascença possuem um vínculo orgânico com as realizações pansóficas, de certa forma, delas fazendo parte. Foram a magia gnóstica e hermética, a Alquimia e o misticismo heterodoxo que serviram como fonte das águas vivas, da qual as maiores luzes da cultura ocidental, de Galileu a Shakespeare, extraíram sua inspiração e alimento espiritual (o grifo é nosso).

O século XVII leva-nos assim ao XVIII, quando o martinismo, a franco-maçonaria, os iluminados e os neotemplários carregaram a tocha da tradição espiritual alternativa até a Idade da Razão. O Clube Jacobino e outras associações anticlericais e antimonarquistas, na França e em toda parte, constituíam ramificações politizadas das ordens esotéricas, em parte inclinadas a vingar os séculos de perseguições feitas aos representantes de espiritualidade heterodoxa, pelos poderes do trono e do altar. Conta-se que, ao ser conduzido ao cadafalso, o rei Luís XVI exclamou: "Esta é a vingança de Jacques de Molay"! Mas, embora tronos desmoronassem e as luzes dos altares se extinguissem, os defensores da nova aurora do espírito vieram a constatar que o triunfo da sabedoria ainda estava distante. Novos tiranos substituíram os monarcas do passado e o dogma eclesiástico cedeu lugar ao materialismo, aniquilador da alma, de uma arrogante ciência jovem.

A era das trevas começou. Religiões semimortas continuaram a combater a ciência, enquanto as chaminés encardidas da Revolução Industrial reduziam os camponeses a proletários e elevavam os mercadores e agiotas à categoria de capitalistas. Restaram apenas o artista e o poeta para reavivar a chama vacilante da tradição espiritual alternativa. William Blake, Shelley, Goethe, Holderlin e, posteriormente, W.B. Yates e Gustav Meyrink, assim como os pintores Moreau e Mucha - a exemplo dos pré-rafaelitas e de outros artistas esotéricos - consciente e por vezes desesperadamente, defendiam a tradição Pansófica. Mesmo no final da vida, Jung confidenciou a Miguel Serrano: "Ninguém compreende, só um poeta poderia começar a entender", falando, assim, pela situação de toda a corrente de transmissão esotérica nos séculos XIX e XX.

A aurora sempre irrompe no momento mais escuro da noite. Do torpor em que se encontrava a cultura do século XIX, novas figuras surgiram e, como arautos, magicamente produziram uma nova-velha luz solar. Wagner, Nietzsche, Kierkegaard e inúmeras figuras de menor importância, cada qual à sua maneira, expressaram elementos da tradição Pansófica. Como um trovador cátaro emergindo da pira da Inquisição, Richard Wagner cantou as glórias do Graal exibiu os Deuses despertos do passado pagão. Nietzche, o neopagão passional, expressou um verdadeiro desprezo gnóstico pelas estruturas pusilânimes daquilo que ele via como um cristianismo degenerado e alienado, enquanto Kierkegaard,o melancólico dinamarquês, evocou a angústia existencial e a alienação, repetindo a proeza dos primeiros gnósticos. Todas essas tentativas, porém, não conseguiram chegar ao passo decisivo, dado há muito tempo por Valentino, Basílides, Marcião e outros gnósticos, que não conseguiram nem um salto de fé nem um mergulho no desespero, mas o ingresso nas regiões eônicas da psique humana. Ali, os deuses arquetípicos aguardam o ego neófito a ser iniciado nos mistérios. A psicologia profunda tornou-se, dessa forma, a conclusão lógica de um longo processo que trouxe a tradição pansófica das costas ensolaradas do Mediterrâneo à Europa e à América, assim como da antiguidade clássica, passando pela Idade Média e séculos subseqüentes, aos tempos paradoxais das duas Guerras Mundiais, do nazismo, do fascismo e do marxismo, além dos demais surpreendentes elementos que compõem o século XX.

Religião, ciência, filosofia, arte e literatura representavam abordagens apenas parciais do grande mistério da alma; cada qual, como a faceta de uma gema lapidada, era fragmentária em seu próprio isolamento. Somente duas forças, surgidas no final do século XIX e início do XX, direcionaram-se para o fogo central do diamante multifacetado da alma e tentaram, a seu modo, entender a dinâmica do brilho de sua luz.
Essas duas forças foram o ocultismo moderno, introduzido pela Teosofia de Madame Blavatsky, e a moderna psicologia profunda, iniciada por Freud e levada a novas dimensões criativas por Jung. A primeira seguiu o antigo padrão da tradição espiritual alternativa, buscando uma abordagem particular ou quase religiosa. A segunda aspirava a tornar-se uma ciência, embora se revelasse mais uma disciplina semicientífica, meio arte e meio ciência. Só o tempo dirá se essa moderna disciplina da alma conseguirá corresponder às suas elevadas expectativas e cumprir sua promessa pendente. Na pessoa e no trabalho de C.G. Jung, a moderna psicologia profunda chegou muito perto de revelar o grande segredo; ela esteve próxima de aperfeiçoar o trabalho gnóstico-alquímico.

Será a magnum opus conduzida a novo estágio, rumo à realização? Quem serão os alquimistas, os gnósticos do futuro?