quinta-feira, 23 de junho de 2011

Entendendo os conceitos de Arquétipo, Mito e Símbolo


Muitos termos empregados livremente pelo senso comum possuem uma origem acadêmica, ou seja, são conceitos desenvolvidos dentro de disciplinas formais a partir de uma perspectiva “científica”. Por essa mesma razão, esses conceitos possuem delimitações muito claras quanto ao seu emprego e significado. Alguns dos conceitos psicológicos mais utilizados vulgarmente são os de Arquétipo, Símbolo e Mito.Símbolo e Mito são conceitos empregados em várias disciplinas acadêmicas como Antropologia, Filosofia, História, Sociologia, etc.

Na Psicologia os conceitos de Símbolo e Mito recebem determinações e explicações diferentes em função da abordagem teórica. Mas, em geral, o uso (muitas vezes indevido e deturpado) que se faz desses conceitos no senso comum, deriva das interpretações dadas pela Psicologia. Em particular, essa apropriação pelo senso comum das interpretações psicológicas dos conceitos deSímbolo e Mito, quase sempre remetem à Psicologia Analítica criada pelo psiquiatra suiço Carl Gustav Jung (1875-1961). Isso se dá em especial, pelo fato dos conceitos de Símbolo e Mito estarem na maioria das vezes associados ao deArquétipo, esse sim criado pelo próprio Jung. Tais conceitos são tomados como recurso auxiliar de explicação da experiência subjetiva humana nas mais diversas formas, mas poucas vezes atribuem-lhes o sentido original em que foram concebidos por Jung.

Então para que possamos entender do que tratam esses conceitos numa perspectiva junguiana,  é bom partirmos do raciocínio que permitiu a elaboração dos mesmos.

Começando pelo Arquétipo. Imagine-se como um(a) integrante de um dos primeiros grupos de humanos sobre a Terra: 70% do que você come, do que te mantém vivo, inclusive a água vem da terra, a coleta de raízes e frutos vem especialmente das florestas. Quanto aos outros 30% da sua alimentação que é a caça, também vem indiretamente da terra. Todos os animais precisam de água, além do que, os animais carnívoros se alimentam em grande parte de animais herbívoros que se alimentam de vegetais (como nós dos bois e os leões dos cervos). Além do alimento os animais também podem te conferir abrigo e aquecimento através de suas peles. Os animais também podem te oferecer adornos e enfeites por meio de suas penas, chifres e ossos e com isso você pode se tornar mais atraente e garantir a conquista de parceiros e a reprodução/sobrevivência da espécie humana. Logo, podemos ver que o ciclo da vida está intimamente ligado a terra.

Agora, imagine que uma mulher do seu grupo pré-histórico deu a luz! Bom, para começar o nascimento da criança foi anunciado pela água (o estouro da bolsa), ao nascer a criança é alimentada no seio da própria mãe, cujo corpo também mantém a criança aquecida. Ora, você pensa: “a mulher é tal e qual a terra, ela dá a vida. A mulher provê alimento, água, aquecimento e proteção para seu filho, da mesma forma que a terra faz conosco”. A associação é imediata e faz todo sentido, não é mesmo?! Pois bem, aqui temos configurado o Arquétipo da Mãe!! Ou seja: a idéia/imagem/vivencia/experiência de que há uma fonte nutridora e protetora que nos garante a vida é representada por esse Arquétipo.

Tudo o que se relacionar a vida, seu surgimento e recursos para sua manutenção, se encontrará representado por imagens representativas desseArquétipo. Sendo assim: a Floresta, a Água, a Terra, a Mulher em idade reprodutiva, grávida e em aleitamento e tudo o mais que você possa usar para expressar a idéia de Terra-vida serão Símbolos do Arquétipo da Mãe. Nesse sentido os Arquétipos seriam a matéria-prima psíquica e afetiva através da qual nossos antepassados atribuíram significado à experiência humana de interação com o mundo, experiência essa cujas raízes remetem a condição biológica da própria espécie. O Arquétipo então, seria a matriz, a fonte, que coordena a formação dos elementos que estruturam a nossa psiquê, os Símbolos.

Dessa forma, o Símbolo não é uma criação literária ou uma invenção pessoal, mas uma propriedade subjetiva da condição humana e todo pensamento e toda ação consciente que temos, seria uma conseqüência do processo inconsciente de simbolização de um evento vivido. Por essa razão o Símbolo é o veículo de comunicação entre a psique individual e o inconsciente coletivo – entre o inconsciente e o consciente – aonde os Arquétipos ganham forma.

Bom, mas ai você e o seu grupo pré-histórico ainda não conhecem a escrita, não há como vocês registrarem essa grande descoberta que vocês fizeram sobre a ligação entre a Terra, a Mulher e a Vida. E embora essa experiência esteja simbolizada ao nível do inconsciente, vocês não têm consciência disso. Em especial, porquê é característica do Símbolo que sua vivência se expresse por meio de um pressentimento, um sentimento, um sentido, algo afetivo que nos revela um significado que antes era desconhecido. É o símbolo que nos orienta para conteúdos psíquicos desconhecidos, levando-nos assim ao encontro dos Arquétipos que habitam no inconsciente.

Então o que vocês fazem para assegurar que esse conhecimento do mundo e da vida seja transmitido aos seus descendentes? Vocês contam estórias!

Para quem não conhece a Biologia e os mecanismos genéticos de reprodução, a vida pode ser vista unicamente como um acontecimento mágico e divino. Logo, esse acontecimento mágico é com certeza presidido por uma Deusa e por um Deus – assim como o nosso nascimento é presidido pelo encontro entre um macho e uma fêmea. Com esse conhecimento adquirido, as estórias do seu grupo pré-histórico vão ganhando um colorido todo especial, elas se desenvolvem a partir da percepção da presença divina em suas vidas – ou seja, da presença de algo que transcende a capacidade humana de explicar os fenômenos vivenciados pelo grupo. Então, as histórias contadas por você e seu grupo são estórias da vida dos deuses, mais do que isso, são estórias que falam da presença dos deuses e do mundo sobrenatural em nossas vidas, essas estórias são os Mitos.

Os Mitos são relatos expressivos de tempos imemoriais, de acontecimentos, vivências e fenômenos cuja origem se perde na memória da humanidade.

Com sua narrativa simbólica os Mitos contam estórias de um tempo em que não havia História, um tempo em que a experiência humana não podia ser registrada pela escrita ou pela fotografia. O tempo histórico do Mito é o tempo da luta humana para fixar-se como espécie sobre a face da terra e por isso mesmo um tempo heróico e fabuloso em que as forças da natureza ora eram vistas como ameaças devastadoras, ora eram vistas como recursos essenciais à sobrevivência do ser humano. Essas forças indomáveis do mundo natural tinham para nossos ancestrais a invencibilidade do sobrenatural, ou seja, daquilo que se sobrepõe à própria natureza e que é maior e melhor do que ela e, por isso mesmo, a única coisa capaz de gerá-la e expressá-la: os deuses.

O impulso de nossos ancestrais para criar Mitos, é a ação na qual todas as relações entre o ser humano e o mundo ganham sentido e assim o que antes não tinha significado passa a ter.

Segundo Jung, os Arquétipos: “não são idéias herdadas, mas possibilidades herdadas”. Sendo assim, os Arquétipos não seriam determinados quanto ao seu conteúdo mas apenas quanto à sua forma. Logo, já que o Mito é mais que apenas uma recordação ancestral de situações naturais e culturais, ou uma elaboração fantasiosa sobre fatos reais, eles seriam uma expressão simbólica dos sentimentos e atitudes inconscientes de um povo. E a medida que a humanidade vai passando por novas experiências, adquire novos conhecimentos e novas habilidades, os Mitos se transformam e novos Símbolospassam a exprimir as imagens contidas no Arquétipo primordial. Com o advento da agricultura, por exemplo, os grupos humanos descobriram que era possível “manipular” a terra, tratá-la e cuidar de forma que ela nos respondesse com mais e mais frutos. Mitos como o de Deméter, uma das principais representações do Arquétipo da Mãe, são típicos de uma sociedade agrícola.

Outros Mitos representativos da Mãe, como Hécate por exemplo, falam de um outro aspecto da descoberta da possibilidade de “manipulação” da terra que é a Magia. Em sociedades primitivas como a dos Bosquímanos do Kalahari na África, que são sociedades essencialmente de coletores-caçadores, a Magia não tem a força que tem nas sociedades agrícolas. Ora, a agricultura traz em si a idéia de que é possível “negociar” com a Terra (Deusa-Mãe), pela obtenção de seus frutos, é possível agradá-la! E o que é a Magia, se não uma “negociação” com os deuses para obtermos os seus frutos.

Os antigos gregos invocavam Afrodite – oferecendo-lhe os elementos por ela presididos – a rosa e o perfume (a semelhança dos ritos a Iemanjá afro-brasileira) – para dela obter beleza e amor. Invocava-se Ares oferecendo-lhe carneiros em sacrifício, para dele obter energia, iniciativa, coragem, etc., atributos desse deus. Nas comunidades agrícolas do interior de países cristãos como o Brasil, as moças casadoiras aprisionam a imagem do Santo Antônio para que ele lhes provenha um marido e garanta assim a própria libertação. Na aridez do sertão, procissões de flagelados pela sêca seguem carregando pesadas imagens santas e se comprometendo com novenas e missas para obter chuva. Nos templos neo-pentecostais das cidades brasileiras, multidões de fiéis bezuntam-se em óleos e purificam-se com fogo e sal grosso na crença de invocarem a proteção do espírito santo, enquanto deixam como oferenda seus salários e últimos trocados. A jovem estudante universitária adentra uma loja de produtos esotéricos e compra um incenso que, na visão dela, trará a harmonia dos elementais do ar ao ser aceso em sua casa…

…Do ponto de vista psicológico, todas as atitudes descritas acima pautam-se no pensamento mágico, cuja origem histórica nos remete a descoberta da agricultura pela humanidade e sua consequente descoberta de poder cuidar/agradar a terra (os deuses), e com ela poder negociar para garantir a própria sobrevivência. Os frutos que queremos dos deuses pode ser uma boa colheita ou mais intuição, proteção ou cura, um marido ou dinheiro, e para isso nos pomos a “agradá-los” e com isso tentamos “negociar”.
É importante que todos entendamos bem uma coisa: os antigos caçadores possuíam suas formas de reverenciar divindades, mas quando se fala na associação entre Magia e sociedade agrícola, estamos falando da elaboração de rituais complexos, de estabelecer hierarquias de culto com figuras sacerdotais, etc., estamos falando da prática mágica como sistema de culto religioso ou similar. Isso é característico do período de surgimento das sociedades agrícolas e aparentemente está muito ligado à descoberta de que é possível “negociar” com a terra, que é a idéia básica do processo agrícola. As mudanças culturais e históricas mudam o perfil dos Mitos, de uma certa forma isso é um processo inconsciente que ocorre para que possamos continuar acessando o Arquétipo no nosso imaginário de forma a permitir que símbolos antes desconhecidos continuem a dar significado às experiências vividas e a ordenar o conteúdo de nossa psiquê.

Através do Mito trazemos a divindade para junto de nós, simbolizamos a força desafiadora da natureza representada pelos deuses em estórias nas quais a estabilidade do universo está atrelada à própria origem e manutenção da vida. Por meio dos Mitos percorremos o caminho simbólico que nos dá acesso ao conteúdo arquetípico em nossa psiquê e que expressa os anseios humanos de transcender os desafios da sobrevivência cotidiana que são da ordem da natureza/biologia. Adentrar o plano sobrenatural – esse espaço simbólico que suplanta a invencibilidade das necessidades impostas ao homem pelo mundo natural/biológico – é aproximar-se do divino, é partilhar com os deuses de sua capacidade criadora que não apenas desafia as forças da natureza como é sua própria fonte geradora.

Quando um ser humano realiza um grande feito, quando ele se iguala aos deuses, é porquê ele superou as adversidades de sua própria condição humana ao enfrentá-las bravamente, e quando isso acontece ele se torna uma Lenda! Se o Mito é a narrativa simbólica de como os deuses atuam no mundo e dão origem a toda vida a partir de sua própria gênese; a Lenda (e também os Contos de Fadas), narra os caminhos percorridos pelo humano para superar sua condição de origem animal e assemelhar-se ao divino.

Tanto o Mito quanto a Lenda oferecem recursos simbólicos de acesso a psiquê mais profunda (Inconsciente Coletivo) e ao mundo arquetípico. A Lenda porquê nos lembra de nossa condição animal (biológica/mortal/limitada), e do papel dos instintos nas nossas relações com a natureza. O Mito por não nos deixar esquecer de nossa capacidade criativa que dá significado ao mundo e celebra o que há de divino em nós. Mito e Lenda, tanto um quanto a outra nos colocam em contato com os conteúdos do Inconsciente Coletivo, o espaço imaginário em que os Símbolos ganham vida pela soma dos instintos biológicos e de seus correlatos psicológicos, os Arquétipos.


*Angelita Viana Corrêa Scárdua é Psicóloga Clínica; Mestre em Psicologia Social pela USP (SP); Especialista em Abordagem Junguiana; em Neurociências e Comportamento e Professora Universitária.

Arquétipo e Representações Arquetípicas

 O Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch 
Arquétipo é um dos principais conceitos junguianos. Entretanto, freqüentemente vemos grandes confusões feitas com esse conceito. Assim, vou tentar apresentar a forma como pessoalmente compreendo a idéia de arquétipo, discutindo um pouco da teoria para torná-lo mais claro.
Arquétipo : O termo
O termo arquétipo foi utilizado por Jung pela primeira vez em 1919, em Londres, num simpósio intitulado “Instinto e Inconsciente”. O termo arquétipo já era conhecido da filosofia e, suas origens, poderiam remontar até Platão. Essa relação histórica com o Platonismo gerou um preconceito em relação a concepção de Jung. Em sua etimologia, o termo arquétipo é formado pelo termoarkhé, oriundo do grego, que significaria primeiro, antigo, regente, dominante, original; e typos, também oriundo do grego, que significaria marca, impressão, molde ou modelo. Desde modo, o termo arquétipo exprimiria a idéia de um molde, marca ou modelo original.
Arquétipo na Psicologia Analítica
Apesar do termo só ter sido introduzido em 1919, a idéia de arquétipo já estava presente nas publicações de 1912, onde Jung relatava seus estudos acerca das “imagens primordiais”, imagens que se manifestam na psique e que poderíamos observar uma relação com a mitologia. Por volta, de 1917, Jung começa a se referir dominantes do inconsciente coletivo.
Num primeiro momento, Jung relaciona ou mesmo justifica a teoria dos arquétipos considerando a teoria da evolução. Deve-se notar quem em 1912, por ocasião de palestras no EUA, Jung visitou manicômios destinados aos negros, para pode estudar os sonhos e delírios desses pacientes, o que ele pode notar era que os conteúdos eram semelhantes aos de seus pacientes na Suiça e, alguns delírios e percebeu claro paralelo com a mitologia grega.
Para Jung,  a universalidade dessas representações psíquicas estavam relacionadas com a história do homem. Segundo ele,
Assim como o corpo humano representa todo um museu de órgãos com uma longa história evolutiva, devemos esperar que o espírito também esteja assim organizado, em vez de ser um produto sem história. Por “história” não entendo aqui o fato de nosso espírito se construir por meio de tradições inconscientes (por meio da linguagem etc.), mas entendo antes sua evolução biológica, pré-histórica e inconsciente no homem arcaico, cuja psique ainda era semelhante à dos animais. Esta psique primitiva constitui o fundamento de nosso espírito, assim como nossa estrutura corporal se baseia na anatomia geral dos animais mamíferos. (JUNG, 2000a, p. 229-230)
Isso implica em dizer que os arquétipos não estão relacionados a nada metafísico, mas, sim são expressões do processo evolutivo, quem imprimiram padrões de basais de organização do psiquismo.  Esses padrões basais podemos reconhecer nos animais como instintos. Os arquétipos, seriam
(…) instintos centralmente representados, ou seja, que se manifestam como imagens. Os arquétipos só tomam a forma de imagens onde a consciência está presente; noutros termos, o auto-retrato configurado dos instintos é um processo psíquico de ordem superior. Pressupõe um órgão capaz de perceber essas imagens primordiais. (NEUMANN, 1995, p.215).
A referencia a imagens, num primeiro momento, podemos pensar nas imagens dos sonhos, as imagens em alucinações de pacientes psicóticos. Entretanto, devemos compreender que essas imagens (sonhos e alucinações) são representações visuais que atingem a consciência. É fundamental que compreendamos para Jung,  IMAGENS são REPRESENTAÇÕES, não apenas visualizações. As imagens arquetípicas, que prefiro chamar de representações arquetípicas, pode ser cinestésicas, assim sentidas no corpo, a analise bioenergética nos propicia uma percepção clara disso, pois, p.ex., através um dado exercício, é possível acessar o mesmo conteúdo emocional em indivíduos de diferentes culturas ou diferentes lugares do mundo. Ou seja, através de um movimento compatível com a dinâmica própria do arquétipo é possível ativa-lo ou ativar sua representação na esfera pessoal, essa pode se manifestar como imagens (sonhos, visões), sensações cinestésicas ou emoções/lembranças.
De forma geral, quando o arquétipo isto é, um padrão de organização psíquica basal, é ativado ele vai mobilizar  o individuo por inteiro, modificando a forma do individuo perceber ou reagir à realidade, isso porque sua força ou energia tende a engolfar o ego.
Assim, compreendo que o arquétipo é um padrão basal de organização psíquica, assim, o psiquismo se organiza em torno desses padrões, fazendo com que todos os indivíduos em toda parte tenham uma organização psíquica semelhante. Deste modo, falar em arquétipo significa reconhecer que temos uma predisposição a determinados comportamentos, assim como a predisposição a aprendizagem. Deve-se notar que essas predisposições são comuns a toda humanidade. Esses padrões vão assumir a forma da cultura em que o individuo se encontra(mas, sua essência permanece a mesma em toda cultura). Como por exemplo, a maternagem, ela se manifesta em todas as culturas e se caracteriza essencialmente pelo cuidado e nutrição da prole, contudo, o tempo e a forma como a mãe vai cuidar e nutrir de seus filhos, depende da cultura onde está inserida.
Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdo, representando a mera possibilidade de um determinado tipo percepção e ação. Quando ocorre na vida algo que corresponde a um arquétipo, este é ativado e surge uma compulsão que se impõe a modo de uma reação instintiva contra toda razão e vontade, ou produz um conflito de dimensões eventualmente patológicas. Isto é, uma neurose. (JUNG, 2000b, p.58).
Representações arquetípicas
Segundo Jung, seria provável que a verdadeira natureza do arquétipo é incapaz de tornar-se consciente, quer dizer, é transcendente, razão pela qual eu a chamo de psicóide. Além disto, qualquer arquétipo torna-se consciente a partir do momento em que é representado, e por esta razão difere, de maneira que não é possível determinar, daquilo que deu origem a essa representação (JUNG, 2000c, p77). Como podemos ver, o arquétipo não pode se tornar consciente por ser psicóide (isto é, quase psíquico, o arquétipo esta na zona limítrofe entre o físico e psíquico, por isso transcendente). Conforme disse acima, as chamadas “imagens arquetípicas” são “representações” do arquétipo. Para evitar confusões, prefiro me referir às manifestações do arquétipo apenas como “Representações arquetípicas”. Compreendo como as principais formações arquetípicas:

1 – Complexos : Os complexos de tonalidade afetiva ou complexos ideoafetivos são agrupamentos de ideias, pensamentos, imagens em torno de um núcleo arquetípico. Os complexos são como atualizações dos arquétipos na vida pessoal. Como dissemos, os arquétipos são padrões de organização psíquica, assim, as experiências individuais que possuem afinidade com um padrão arquetípico são atraídas e formam um conglomerado, que organizam e orientam nossas memórias de lembranças vividas, assim como orientam a percepção das experiências. Através dos complexos podemos apreender as dinâmicas arquetípicas e como elas organizam e orientam nossa vida.

2 – Símbolos culturais: Chamo de símbolos culturais todos os elementos que se mantém como referencia da cultura. Como os contos de fadas, mitos, provérbios, imagens, monumentos que expressam a dinâmica arquetípica. Segundo Jung,”o arquétipo é sempre uma espécie de drama sintetizado” (EVENS, 1973, p. 55), por isso, muitas das narrativas mítico-religiosas nos afeta, assim como as obras de arte que expressam um cena ou situação que similar a padrão arquetípico. Os símbolos culturais são importantes pois, servem de referencia para a constelação dos arquétipos em nossa vivência pessoal.

3 – Símbolos pessoais:  Os símbolos pessoais são formações que eclodem do inconsciente, intimamente relacionado com o momento do qual um individuo vive. Esses símbolos podem ser situações, pessoas, locais, lembranças, musicas, enfim, qualquer coisa que tenha uma similaridade arquetípica ou que sobre ao qual o arquétipo inconsciente tenha se projetado. O símbolo pessoal tem o objetivo de  possibilitar a passagem de energia do inconsciente para a consciência, com a finalidade de organizar e/ou dar um direcionamento ao Ego.

EVANS,R.Entrevistas com Jung e as Reações de Ernest Jones.Rio de janeiro:eldorado,1973.
NEUMANN, E. História da Origem da Consciência, São Paulo: Cultrix Editora, 1995
JUNG, C.G. Vida Simbólica Vol. I, Vozes, 2ª Ed., Petrópolis, RJ, 2000a.
JUNG, C.G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Vozes, Petrópolis, RJ, 2000b.
JUNG, C.G.Natureza da Psique, Vozes, Petrópolis, RJ, 2000
Fabricio Fonseca Moraes é Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana (UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES).

domingo, 12 de junho de 2011

DEMIURGO - CONSTRUTOR(ES) DO(S) UNIVERSO(S)

A palavra Demiurgo significa “Construtor, Artífice” e é habitualmente referida, em termos cosmogônicos, relativamente ao surgimento e formação dos Universos. Foi usada por antigos e notáveis filósofos gregos, nomeadamente por Platão e, a partir daí, por diferentes escolas e autores, com maior ou menor propriedade. Visto que Platão expôs, na medida do possível, e sob os necessários véus, partes relevantes da Ciência Espiritual, é normal que, na exposição da Cosmogonia Oculta, se recorra por vezes a essa palavra.
Poder-se-á imediatamente pensar que “Demiurgo” designa, então, o Deus-Pai Criador de tudo quanto existe; porém, essa é uma formulação simplista e incorreta, que não pode, sem mais, ser subscrita pela Sabedoria Esotérica. Há imensas questões e vertentes a ponderar. Certamente, não poderíamos (ainda que o soubéssemos) expô-las todas. No entanto, não vamos iludir algumas das principais.
A dor e a imperfeição do mundo
Toda a Humanidade é digna de compaixão; contudo, individualmente considerados, somos ainda, muitas vezes, mesquinhos. Grande parte dos seres humanos assemelham-se assim a bonecos de corda. A imagem pode parecer algo dura mas tenta ilustrar uma atitude muito vulgarizada: as pessoas surgem neste mundo, mexem-se muito, fazem e dizem muitas coisas (um considerável número das quais, talvez, completamente inúteis); entretanto, nunca se questionaram por que e para que estão aqui; que é isso que nelas palpita como vida, lhes permite movimentar-se, pensar, ter sentimentos; que sentido real e profundo deve ter as suas existências. Quando o fazem, em grande parte dos casos rapidamente se entregam nos braços de alguma crença mais ou menos simplista ou, quando mais pertinazes, tornam-se fanáticos desta ou daquela Igreja (ou de qualquer outro sucedâneo). É infelizmente raro o genuíno investigador, que busca incessantemente a verdade, que não tem medo de enfrentar as questões e ver o mundo tal qual ele é, que exige respostas profundas, firmes e consistentes.
Não obstante, e até por entendermos que os leitores pelo tipo de temáticas em que mostram interesse, serão dados à reflexão, pensamos que não constitui nenhum exagero afirmar que, decerto, cada um de nós, ao menos uma vez na vida, experimentou a sensação de dor, de sofrimento, de vulnerabilidade ou de verdadeira tristeza. Isto sucede particularmente em momentos mais críticos, quando somos assaltados por uma doença, por um problema pessoal, pela morte (desencarne) de algum ente querido; também, quando observamos os horrores do mundo que nos cerca, especialmente no século que findou (e que também já se indiciam no recém-iniciado), em que a humanidade vem realizando grandes conquistas científicas e tecnológicas mas em que, com isso, construiu meios de destruição autenticamente assombrosos, e em que, aqui e ali, se cometeram iniqüidades que nos fazem quase desfalecer de horror ao delas tomarmos conhecimento; quando constatamos o oceano de dor e de loucura em que a humanidade em geral está imersa; quando, enfim, “apenas” sentimos aquela angústia, aquela insatisfação, aquele vazio fundamental que tantas vezes nos acompanha no dia a dia…
Nessas ocasiões, em alguma fase da nossa vida, seguramente nos teremos interrogado se não existe um Deus no “Céu” ou, se ele existe, por que permite que tais coisas possam acontecer no mundo.
O problema do mal
Mais ainda, aliás: quando vemos que não apenas a nós, humanos, nos toca a dor e a miséria, mas que o sofrimento pode ser tão cruento e brutal entre os animais, na sua luta pela sobrevivência e não só; quando vemos que até no reino vegetal há destruição; quando observamos que, na Natureza, há tentativas falhadas, insucessos ou mesmo (aparentes?) aberrações; quando constatamos que todo e qualquer ser que conheçamos é limitado e, portanto, imperfeito; quando, enfim, nos confrontamos com o problema do mal 1 - da existência evidente do mal no Universo -, verificamos como têm plena razão de ser as poéticas palavras do Buda Gautama: “Não te iludas, Ananda, toda a existência está plena de dor. Assim, chora a criança desde que nasce.”. E acrescentava Ele, face a tudo o que tentamos aludir: “Se Deus permite tais coisas, não pode ser bom; ou então, não tem o poder de evitá-las, e não pode ser Deus” 2.
De fato, se existe - se existisse - um Deus simultaneamente Absoluto, Criador, Todo-Poderoso e infinitamente Bom, como é que não quis ou não pôde fazer um mundo muito mais perfeito (aliás, infinitamente perfeito) e feliz (aliás, infinitamente feliz, bem-aventurado) do que este? 3.
Respostas incoerentes
A teologia das Igrejas Cristãs ufana-se - literalmente 4! - de ter uma resposta para esse problema. Sintetizando, a sua posição é esta: Deus é uma Pessoa - que é também três pessoas 5 - distinta do mundo, que criou do nada (concepção teísta), da mesma forma como cria as almas humanas (porque os animais, por exemplo, não teriam alma) cada vez que é concebido um corpo a que se vão associar. Deus criou o homem para ser feliz neste mundo, embora sempre numa limitada condição. Demoniacamente tentados a serem idênticos a Deus, para tanto comendo da Árvore do Conhecimento do bem e do mal, remotos antepassados nossos teriam cometido o pecado original, motivo pelo qual temos de sofrer - e muito! - neste mundo (assim interpreta o primeiro livro da Bíblia). Alguns milhões de anos depois, Deus enviou o seu Filho (que é Ele mesmo?!) para redimir (os que nele  crerem) do pecado que assim entrou no mundo e para os “conduzir à vida eterna”.
Dificilmente alguma vez se concebeu uma ideia tão incoerente, disparatada e ofensiva do mínimo sentido de justiça e de lógica! Se não, vejamos:
1) Existindo um Deus pessoal, infinitamente justo, criador e governante moral do Universo, onde intervém sempre que e como lhe parece conveniente 6 - que é o que sustentam tais teologias -, de que modo podemos entender e aceitar que milhares e milhares de gerações de seres humanos, muitos e muitos milhares de milhões de homens e mulheres continuem a sofrer as conseqüências de um fato para o qual não contribuíram, visto não existirem no momento em que esse fato foi - por outros - praticado (lembremos que as Igrejas Cristãs não aceitam a ideia da preexistência das Almas, da Reencarnação e, basicamente, do Karma)? Alguém acharia justo que um juiz nos aplicasse uma pena de prisão e uma multa (com juros e correção monetária, já agora.) por um delito cometido por um antepassado nosso que viveu há - mero exemplo - 100 000 anos atrás? Se tal acontecesse, qualquer cidadão no seu perfeito juízo sentiria a mais profunda revolta, indignação e sentimento de estar a ser alvo de uma injustiça colossal. Decerto, consideraria o juiz (ou, então, o legislador) iníquo, estúpido, monstruoso. Com grande probabilidade, haveriam manifestações de protesto, desacatos, violência. Como, então, admitir que o Legislador e Juiz divino, infinitamente justo e sábio, pudesse ter tal iniqüidade, insensatez e monstruosidade? E como se poderia, ainda assim, dirigir-se-lhe louvores (como os que, supostamente se fazem ou deveriam fazer a um tal Deus)?
Muitas vezes nos interrogamos como é que tais “explicações” podem ser concebidas e aceites, e só encontramos duas razões: o fanatismo retorcido e mal informado de alguns (os inventores de tal história) e a indiferença real do cidadão comum perante qualquer espiritualidade profunda, que de fato não leva a sério e que por isso não questiona - como o faria se estivessem em causa, por exemplo, valores monetários que o afetassem. Aí, e porque a questão lhe importaria, logo vislumbrava a imensidão da injustiça…
2) Se Deus é onipotente e infinitamente bom e faz todas as criaturas como quer, por que concebeu um ser limitado como o ser humano, mesmo no seu estado original de graça? E por que cria seres, como os animais, condenados também ao sofrimento - e, segundo tal teologia, à extinção -, não obstante terem sensibilidade à dor, emoções, sentimentos e até inteligência?
3) A isto, acresce uma infinidade de questões, de que só suscitaremos algumas, e, ainda assim, limitando-nos a deixar as perguntas sem mais comentários: deveria o ser humano permanecer infantilmente sem discernimento próprio, sem ciência (do bem e do mal)? O original do livro do Gênesis 7 fala em um Deus ou em os Elohim (uma pluralidade, uma hierarquia)? E por que, no mesmo livro, ora se fala nos Elohim ora em Jeová (e, ainda, no meio, em Elohim-Jeová)? E a primeira palavra bíblica, ainda no Genesis, palavra essa que é Berasit ou Berasheth significa no princípio (no sentido de, no início, no começo) ou significa Sabedoria (na qual foram criados os Céus e a Terra, etc.)? E como poderia ser Deus infinito e absoluto, se fez surgir mundos e criaturas do nada, (o que quereria dizer) de algo que não Ele próprio? E, por qual explicável e aceitável razão - visto que a Humanidade tem já uma Idade tão longa - Deus não teria desencadeado imediatamente o Seu plano de salvação, e só há apenas dois milênios (depois de incontáveis outros terem decorrido), o Seu Filho veio à Terra (lembremos que os menos de 4000 anos de Judaísmo e os 2000 anos de Cristianismo são uma ínfima fração da História da Humanidade)? Enfim, por que existem textos cosmogônicos e antropogenéticos muito mais antigos do que o Genesis e de que este é um simples resumo mais ou menos confuso?
O segundo Deus
O fato é que existe dor, limitação e falhas no Universo. Por alguma boa razão, os gnósticos cristãos de há cerca de dois milênios atrás - infelizmente considerados como hereges pelo Cristianismo deturpado que depois triunfou - consideravam Jeová como demiurgo de um mundo inferior, imperfeito, recusando a sua identificação com o Pai Celestial referido por Jesus e, menos ainda, com o Absoluto. Pretendiam, esses gnósticos - como Simão, Marcion, Valentino, Basílides e, de algum modo, o próprio S. Paulo -, cortar a ligação com o Jeová ciumento e vingativo que aparece em tantas páginas do Antigo Testamento. (Alguns gnósticos referiam-se a Ilda-Baoth como o criador do nosso globo físico, i.e., a Terra, como se poder ver no Codex Nazareus - o Evangelho dos Nazarenos e Ebionitas, e identificavam-no com Jeová. Ilda-Baoth é o “filho das Trevas”, num péssimo sentido. Para mais desenvolvimentos, cfr. “Ísis sem Véu” e “Glossário Teosófico”, de Helena Blavatsky). Por herético que este conceito hoje possa parecer, é difícil negar que ele encontra acolhimento no Evangelho segundo S. João. Lembremos partes do seu 1o Capítulo: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus… Ele estava no princípio junto de Deus… Ninguém jamais viu a Deus”. Ora, este Deus Supremo, que “ninguém jamais viu”, não pode ser o Jeová visto e descrito no Velho Testamento.
“Pronunciou Jesus, alguma vez, o nome de Jeová? Alguma vez pôs ele em confronto o seu Pai com esse Juiz severo e cruel; o seu Deus de misericórdia, amor e justiça, com o gênio judeu da retaliação? Jamais! Desde o memorável dia em que pregou o seu Sermão da Montanha, um imensurável vazio se abriu entre o seu Deus e aquela outra divindade que fulminava os seus mandamentos de uma outra montanha - o Sinai” 8 9.
Em qualquer caso, sempre os filósofos mais ilustrados se recusaram a identificar o Demiurgo com a Divindade Suprema, tendo ficado célebre a denominação que lhe foi dada por Filon : o segundo Deus.
O problema do mal acima mencionado tem perturbado alguns dos mais notáveis pensadores - veja-se, por exemplo, a preocupação de Leibniz 10 em tentar demonstrar que Deus tudo fez da maneira mais desejável, não podendo ter feito melhor.
Ainda o referido problema acabou por conduzir mesmo alguns honestos buscadores da Verdade a uma posição de ateísmo (ou, pelo menos, de agnosticismo).
A Ciência Oculta reconhece a incompatibilidade entre o fato de existir um Universo sublime e extraordinariamente ordenado, mas imperfeito, e a ideia de que tenha sido criado por um Deus Absoluto. Sustenta, aliás, que o Absoluto não poderia conceber nem criar (pelo menos, diretamente) o relativo e condicionado e, menos ainda, algo de externo a si; a Criação a partir do nada, suporia acrescentar algo ao Absoluto, o que é insustentável. Não obstante, o Ocultismo não é agnóstico (é por isso que é Ciência) e tão pouco é ateísta - exceto no sentido de rejeitar as concepções antropomórficas do Divino.
Várias acepções de divino
O Esoterismo associa a ideia de Divindade a três níveis fundamentais, que indicamos em seguida, de forma sucinta:
I). Um Princípio Universal, Impessoal, Ilimitado, Inominado e Inefável, absoluto Ser e não-Ser (bem como Consciência absoluta, e absoluta Inconsciência de qualquer coisa limitada), porque o seu único atributo é Ele mesmo. É Causa incausada, infinita e eterna; a Realidade Una e Absoluta, anterior e transcendente a tudo o que é manifestado ou condicionado.
Estamos perante o Parabrahman (ou, ainda, o Brahman Supremo, o Brahman Indiviso ou o Brahmam Nirguna, i.e., sem atributos) dos vedantinos, o Ain Soph dos cabalistas, o Deus Supremo Ignoto dos antigos gregos, o Deus Imanifestado ou Transcendente de uma teosofia cristã. Em última instância, porém, o uso da palavra “Deus” (mais a mais, atendendo ao sentido que vulgarmente lhe é dado) é equívoca. Aquilo a que se alude aqui não é a Deus ou a um Deus mas sim ao Espaço Infinito e Ilimitado, de onde tudo desponta, o Grande “Contendor”, o Arik-Anpin (o nome dado, neste sentido, ao Universo pelos cabalistas) - aquilo que Sempre é, foi e será, ainda que todos os mundos existentes desapareçam 11 12.
II) A 2a proposição da Doutrina Secreta 11 refere-se aos “Universos inumeráveis manifestando-se e desaparecendo… como o fluxo e o refluxo periódico das marés”.
Temos, deste modo, os Logos Criadores que, emanando ou radiando da Realidade Una e Imanifesta, se tornam a Divindade Manifestada e Imanente de um Universo - desde o Ser Supremo do Cosmos total aos Logos Solares ou, ainda, aos Logos Planetários. Cada um destes Seres pode ser considerado o Deus, o Brahman Inferior ou o Brahman Saguna (i.e., com qualidades) ou Ishvara do Seu próprio Universo, do qual é o mais elevado Espírito. Cada um destes Seres é o Demiurgo na esfera do Seu próprio Cosmos.
Entretanto, a referência a o Logos ou Demiurgo é, também ela, uma simplificação. O Logos é o mais elevado Hierarca de um Sistema ou Cosmos 13, i.e., o vértice superior de uma Hierarquia, de uma Legião, de um vasto conjunto de Criadores.; o Demiurgo expressa uma coletividade abstrata de Construtores.
A “Doutrina Secreta”, diz Helena P. Blavatsky, “admite um Logos, ou um Criador coletivo do Universo; um Demiurgo, no mesmo sentido em que se fala de um Arquiteto como Criador de um edifício; muito embora o Arquiteto nunca houvesse tocado em uma pedra sequer, mas simplesmente elaborado o plano, deixando todo o trabalho manual ao cuidado dos operários. No nosso caso foi, o plano, traçado pela Ideação do Universo, e a obra de construção entregue às Legiões de Forças e Potestades inteligentes. Mas aquele Demiurgo não é uma Divindade pessoal, isto é, um Deus extra-cósmico imperfeito, e sim a coletividade dos Dhyân-Chohans e das demais forças”.
Esta era igualmente a concepção de Platão. Ao referir-se ao Demiurgo, não pensava ele em um ou o Deus (ainda que, por vezes, certas traduções e interpretações, incapazes de se apartar dos preconceitos culturais e religiosos de hoje, pareçam fazer supor que sim). Com efeito, “Há que sublinhar o caráter politeísta do conceito de divindade que Platão nos apresenta no Timeu: a divindade é participada por vários deuses, cada um dos quais tem uma função e domínio próprios, sendo o demiurgo tão só o seu chefe hierárquico”; “Não há aqui qualquer sinal de monoteísmo: na crença da divindade está a crença nos deuses: a divindade é participada igualmente por um número indefinido de entes divinos, dos quais os mais elevados têm nos astros os seus corpos visíveis (Leis, 899-a-b)” 14.
A distinção entre o Divino Imanifestado e o surgimento do Demiurgo no plano de transição do manifestado/Imanifestado 15, justificam a sua já referida designação como “Segundo Deus”, que “é a Sabedoria do Deus Supremo” 16.
O Demiurgo forma o Cosmos do Caos. É o vórtice que actua na Substância Pré-Cósmica (na Raiz da Substância, ou Mulaprakriti, como a denominam os vedantinos) e que a activa, despertando-a para a existência Cósmica. O Eterno Pensamento Divino Absoluto, no Imanifestado, volve-se em Ideação Cósmica, com o Plano concreto para um Universo. A Mente Cósmica vem então à existência - passa da potência ao acto -, porque despertam os Ah-Hi 17, os Dhyan-Chohans 18, os deuses, as Potências Criadoras, os Filhos Radiantes da Aurora Manvantárica, as Estrelas que exsurgem das Trevas Primordiais e que passam a ser a substância e o continente dessa Mente Cósmica 19 ou Alma Universal 20 ou Sofia ou Ennoia-Ofis 21 ou Binah 22 …
Damos novamente a palavra a Helena Blavatsky, em dois excertos da sua obra principal: “O Caos, segundo Platão e os pitagóricos, tornou-se a Alma do Mundo. O Primogênito 23 da Divindade Suprema nasceu do Caos e da Luz Primordial, o Sol Central. Esse Primogênito não era, contudo, senão o agregado da Legião dos Construtores, que as teogonias antigas chamavam de Antepassados, nascidos do Abismo ou Caos e do primeiro Ponto”; “As diferentes cosmogonias mostram que a Alma Universal era considerada por todas as nações arcaicas como a Mente do Demiurgo criador; e que era chamada a Mãe, Sofia ou a Sabedoria feminina, pelos gnósticos; Sephira pelos Judeus e Sarasvati ou Vâch pelos hindus - sendo também o Espírito Santo um princípio feminino.”
O Universo é construído de acordo com os modelos dos Eide ou Ideias a que se referia Platão, e das quais o Demiurgo - a coletividade de Inteligências Espirituais que o integram - se serve para ordenar a Substância e transformar o Caos em Cosmos. Assim, o Demiurgo é o agente das Leis Divinas que regem o Universo.
III) Cada um dos Dhyâni Chohans, Inteligências Divinas, Potências Criadoras - ou deuses, por outras palavras - que, como dissemos, integram coletivamente o Demiurgo, o Logos, o Verbo Criador do Pensamento Divino, colaborando na construção, sustentação e direção de todo o Universo objetivo, de cada uma das suas formas, de cada um dos seus átomos. Assim, todas as Entidades, no seu próprio plano de raiz divina - como deuses -, integram uma das grandes Hierarquias Criadoras, em que as Mónadas Humanas, os Homens Divinos se incluem. O Universo existe (ou é) trans-temporalmente no Pensamento Divino mas vai-se executando num longo devir, através do concurso de todas as unidades de vida divinas (as realidades íntimas de todas as existências) que vão progredindo, em graus cada vez mais elevados, através da ativação da sua inteligência criadora latente. E todos somos co-responsáveis em tornar o Universo mais perfeito.
Os Dhyâni-Chohans ou Hierarquias Criadoras são mencionados nas tradições mais ocidentais (e, sem muito rigor, chamadas “monoteístas”) como Filhos de Deus, Homem Primordiais, Elohim, Anjos (diferentes dos lamentáveis e abusivos tratamentos que lhes são dados em literatura recentemente muito vulgarizada), Arcanjos, Tronos, Virtudes, Potestades, Dominações, Principados, Querubins, Serafins, Potências, Degraus, Anuphaim, Sete Espíritos diante do Trono, Anciãos, etc.
O Demiurgo e a Substância
O Ocultismo afirma a eternidade da Matéria, ou antes, da Substância, ou melhor ainda, do Espaço que é a sua matriz e essência supersensível. “A matéria é tão indestrutível e eterna como o próprio espírito imortal, mas (…) não como formas organizadas”(11). Reproduzimos aqui perguntas endereçadas a dois grandes Sábios e as respostas que estes deram: “Qual é a única coisa eterna no universo, independente de outras coisas? O Espaço. Que coisas são co-existentes com o espaço? (I) A duração. (II) A matéria. (III) O movimento, porque este é a vida imperecível (consciente ou inconsciente, conforme o caso) da matéria, mesmo durante o Pralaya 24″ 25. Deve salientar-se, pois, que, para o Ocultismo, não existe tal coisa como Matéria morta. A Vida Una e Onipresente “… não só penetra mas é a essência de cada átomo da Matéria; e, portanto, ela não apenas tem correspondência com a Matéria mas possui também todas as suas propriedades…” 25. Como também já referimos inúmeras vezes, na concepção Esotérica, a Matéria não é apenas a Substância física que os nossos sentidos apreendem e que as ciências experimentais estudam, visto que existem níveis de substancialidade imensamente mais subtis, numa hierarquia septenária de Planos. Existe, por exemplo, substância ou matéria do Plano Mental… e de outros ainda mais elevados, habitualmente ditos Espirituais (em todos os Planos existem os dois pólos, Espírito e Matéria, interrelacionados, embora em diferentes condições e peso relativo). O que, afinal, a Ciência Oculta afirma é que nada é destituído de substância; que tudo tem, necessariamente, um substratum ontológico; e que o Ser, no nível primevo do Cosmos, é a Essência Una tanto do pólo Espírito, como do pólo Matéria.
Assim, o Demiurgo forma o Universo a partir de uma matéria prima já existente, porque eterna - a chamada criação ex nihil (a partir do nada) não faz sentido, porque nada pode ser nada, porque o nada não pode existir, exceto se dermos à palavra nada o sentido de “sem atributos”. Nos níveis inferiores da existência universal a matéria é mais densa, e as Ideias, de acordo com as quais os mundos são formados e evoluem, manifestam-se menos cristalinamente e também são menos elevadas e perfeitas as Potências Criadoras operantes. Como já referira Platão no “Timeu” (a sua principal obra cosmogónica), o Demiurgo não é onipotente: produz o Cosmos tão bom “quanto possível” (30-b) e tem de conformar-se com os efeitos contrários da “necessidade” (47e-48a) - da necessidade da existência condicionada e da necessidade Kármica.
A importância da Cosmogênese Ocultista
Embora, haja quem possa entender árido e inútil abordar as questões mais subtis e profundas da Cosmogênese, a sua compreensão tem implicações incontornáveis nos paradigmas culturais, científicos, religiosos vigentes e que condicionam o mundo.
Por exemplo: a clara noção de uma Ser-dade (Be-Ness, na expressão de H. Blavatsky), como Princípio Absoluto, Incriado e Incriador (de qualquer coisa relativa) e, distintamente, do Logos ou Demiurgo, como “agregado coletivo de todas as inteligências espirituais criadoras” - mas não absolutas nem perfeitas, por isso que se manifestam no espaço e no tempo relativos , evoluindo para patamares cada vez mais amplos e elevados 26, permite encarar o já referido - e dramático - “problema do mal”; torna evidente a realidade da justiça no Universo, já que ele depende do querer coletivo de todos os Filhos do Divino; responde satisfatória e plenamente à pergunta dos cientistas: “Se o Universo é obra de um Deus perfeito e Onipotente, como é que a Natureza parece revelar tentativa e erro, ou seja, tentativas falhadas?” (V., exemplificativamente, “Cosmos”, de C. Sagan); põe termo às perguntas “Deus existe?”, “Crê em Deus ou não?” e “Se Deus criou tudo, quem é que criou Deus?”, porque a resposta seria evidente e as perguntas descabidas e sem sentido: O Ser (o Espaço no sentido mais radical e profundo) é eterno e necessário.
José Manuel Anacleto
Presidente do Centro Lusitano de Unificação Cultural
1 Seja o mal físico, metafísico ou moral.
2 O Senhor Buda Siddharta Gautama referia-se aqui, naturalmente, a uma Divindade pessoal ou distinta do Universo, concepção que rejeitava. Porém, tinha TAT - O Absoluto Incognoscível em si mesmo - como pressuposto incontornável. O Budismo é às vezes considerado ateísta (somente) por recusar a existência de um Deus mais ou menos antropomórfico; e, nesse sentido, tal recusa é bem compreensível e louvável.
3 Parte do que aqui escrevemos havia por nós sido expresso na série de conferências que deu origem ao livro “Para um Mundo Melhor” (Centro Lusitano de Unificação Cultural, Lisboa, 1997).
4 A título meramente exemplificativo, cfr. “História da Filosofia” de Humberto Padovani e Luís Castagnola, obra com Nihil Obstat, Imprimi Potest e Imprimatur.
5 As três “Pessoas” da Santíssima Trindade. Confunde-nos muitíssimo a frase muito repetida, nas Igrejas Cristãs, que Deus é uma Pessoa. Uma Pessoa!!!…
6 Se intervém, se precisa de intervir, é (seria) porque a Ordem que dispôs não é perfeita…
7 O primeiro da Bíblia.
8 In “Ísis sem Véu”, de Helena Blavatsky (Ed. Pensamento, S. Paulo, 1990).
9 Nem a autora destas palavras nem nós deixamos, entretanto, de ter profundo respeito pelo conhecimento oculto - cabalístico - existente no seio do Judaísmo.
10 Cfr. “Discurso de Metafísica”. Leibniz (1646-1716) foi indiscutivelmente uma das maiores inteligências da moderna civilização ocidental. Como faz notar Helena Blavatsky, conciliando o seu sistema com o de Spinoza (e abstraindo dos eufemismos a que a ditadura ideológica da época os obrigava), têm-se muitas das noções fundamentais do Ocultismo.
11 Cfr. “A Doutrina Secreta”, de Helena P. Blavatsky (Ed. Pensamento, S. Paulo, 1973).
12 Tratámos também desta temática, mais amplamente do que neste artigo, no nosso livro “Transcendência e Imanência de Deus” (Centro Lusitano de Unificação Cultural, Lisboa, 2001).
13 No pequeno Cosmos que é o homem, o (seu) Logos é o 7o Princípio (Atman; o Espírito, a Vontade Espiritual); Cfr. “Consciência e Imortalidade”, de Subba Row (Ed. Kier, Buenos Aires, 1994).
14 “História da Filosofia, Vol. I” de Nicola Abbagnano (Ed. Presença, Lisboa, 1976)
15 . Nível ou momento por vezes identificado com o 2o Logos. Cfr. “The Divine Plan”, de Geoffrey Barborka (Theosophical Publishing House, Adyar, 1964) e “Transactions of the Blavatsky Lodge” (The Theosophy Company, Los Angeles, 1987).
16 Filon, “Quoest, et Solut”.
17 Ah-Hi - Dragões da Sabedoria ; Dhyan-Cohans.
18 Dhyan-Chohans - “Senhores da Luz” ou “Senhores da Meditação Profunda”. As Inteligências Divinas encarregues da construção e superintendência do Cosmos.
19 Mahat, em sânscrito.
20 Ou Anima Mundi.
21 Entre alguns Gnósticos, nomeadamente Basílides e os Ofitas.
22 Binah - Uma das Três Supremas da Árvore da Vida. Entendimento, Inteligência, Leis regentes do Universo. Chamada o Grande Mar e a Mãe Suprema ou Grande Mãe e equivalente a Sofia.
23 Quando São Paulo falava de Cristo como o “primogênito” referia-se ao Logos, ao Cristo Cósmico. Há uma analogia precisa entre o Macro e o Microcosmo. O Homem Espiritual vem a ser o Logos dos seus veículos. Lembremos outra frase de Paulo: “Cristo em nós, esperança de glória”.
24 Pralaya - um Período de noite ou repouso cósmico, total ou relativo. O contrário de Manvantara (período de actividade cósmica).
25 “Cartas dos Mahatmas para A. P. Sinnett” (Ed. Teosófica, Brasília, 2001)