segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Ifá e seus segredos...

Babálawó é o nome dado aos sacerdotes exclusivos do Orixá Orúnmilá-Ifá do Culto de Ifá, das culturas Jeje e Nagô. E que não entram em transe, sua função principal é a iniciação de outros babalawos, a preservação do segredo e transmissão do conhecimento do Culto de Ifá para os iniciados. Para os yorubas o sacerdote é o babalawo e entre os Fons e Ewes recebe a designação de bokonon, e o sistema de adivinhação é o mesmo. O babalawo (pai do segredo) recebe as indicações para as respostas através dos signos (odù) de Ifá. O Orixá Orumilá é também chamado de Ifá, ou Orunmila-Ifa e também é denominado frequentemente Agbonniregun ("Aquele que é mais eficaz do que qualquer remédio"). Em caso de dúvida Ifá é consultado pelas pessoas que precisam de uma decisão, que queiram saber sobre casamentos, viagens, negócios importantes, doenças, ou por motivo religioso. Orunmilá é o orixá e divindade da profecia. Ifá é o nome do Oráculo utilizado por Orunmilá. O Culto de Ifá pertence a religião Yorùbá.

Após duas iniciações ("Mãos"), e sob a obediência a rígidos códigos morais, o Babálawó recebe o direito de utilizar o Opele-Ifá (ou Rosário de Ifá) e os ikins (sementes de dendezeiro - igui ope, em yorubá). O Merindilogun (Jogo de búzios) é franqueado também às Iyápetebis (Mulheres iniciadas a Ifá) e aos Awófakans (Aqueles que receberam a "primeira mão"). Alguns Babálawós recebem o título de Oluwó. 

Hierarquia dos Babalawôs
- 01 = Bambala (o grande pai );
- 02 = Awojogum (o adivinho que come os amuletos);
- 03 = Alafoshé (aquele que não fala em vão, que só diz a verdade, infalível, senhor do axé );
- 04 = Adufé (aquele que penetrou nos segredos de Ifá);
- 05 = Arabá (aquele que ultrapassou os mistérios de Ifá);
- 06 = Oluwô (pai ou senhor dos segredos);
- 07 = Odofim (aquele que age na ausência do Oluwô);
- 08 = Agigbonam (chefe assistente de um babalawô);
- 09 = Ashare Pawo (mensageiro que chama as pessoas para as cerimônias de Ifá); - 10 = Apetebi (mulher do babalawô);
- 11 = Aworô (sacerdote que jogava para ver se havia a necessidade de sacrifício humano). 

Com a vinda dos escravos para o Brasil, entre eles vieram alguns Babálawós, mas com o tempo foram morrendo e não deixaram seguidores e a história de como o culto se perpetuou no país ainda não foi estudada em profundidade. No entanto, temos conhecimento de muitos nomes: Martiniano Eliseu do Bonfim (1859-1943), também conhecido como Ojé L’adê, foi o grande precursor do retorno às raízes africanas e da busca de elementos capazes de fortificar as práticas religiosas dos negros ex-escravos. Considerado o último Babálawó do Brasil.

Com a dispersão ocasionada pelo tráfico de escravos na África, diversos cultos praticamente desaparecem em seus locais de origem. Em 1886, o Ketu foi completamente destruído pelas guerras contra Abomei e o culto ao Orixá Oxóssi, tão importante na Bahia, tornou-se aí praticamente esquecido. Profundo estudioso e conhecedor das culturas e religiões tradicionais africanas e religiões afro-brasileiras, Pierre Verger é autor de inúmeras obras de referência sobre o assunto, foi um fotógrafo e etnólogo autodidata franco-brasileiro. Assumiu o nome religioso Fatumbi e que dedicou a maior parte de sua vida ao estudo da diáspora africana - o comércio de escravo, as religiões afro-derivadas do novo mundo, e os fluxos culturais e econômicos resultando de e para a África. Até a idade de 30 anos, depois de perder a família, Pierre Verger levou a carreira de fotógrafo jornalístico. A Fotografia em preto e branco era sua especialidade. Usava uma máquina Rolleiflex que hoje se encontra na Fundação Pierre Verger. Pierre Edouard Leopold Verger (Paris, 4 de novembro de 1902 — Salvador, 11 de fevereiro de 1996), fotógrafo francês que veio para o Brasil em 1946 foi também iniciado em Ifá na África como Awófãn e Ketu (Daomé), em 1953, tornando-se Fatumbi, "renascido em Ifá".
Ifá, é o nome de um Oráculo africano. É um sistema de adivinhação que se originou na África Ocidental entre os Yorubas, na Nigéria. É também designado por Fa entre os Fon e Afa entre os Ewe. Não é propriamente uma divindade (Orixá), é o porta-voz de Orunmilá e dos outros Orixás. O sistema pertence as religiões tradicionais africanas mas também é praticado entre os adeptos da Lukumí de Cuba através da Regla de Ocha, Candomblé no Brasil através do Culto de Ifá, e similares transplantadas para o Novo Mundo.

O bokonon da corte de Abomei é um dos dignitários do rei reconhecido na categoria de príncipe e está entre os poucos autorizados a vestir djelaba em público e a permanecer com a cabeça coberta diante do rei e da rainha-mãe. O culto do vodun Fa é originário de Ile Ifè, e chegou ao antigo Daomé pelas mãos de sacerdotes imigrados do território yoruba já a partir do século XVII, mas sua instalação oficial como uma das divindades reconhecidas pelo rei de Abomei teria se dado ou através do babalawo Adéléèyé, de Ile Ifè que chegou a Abomei no reinado de Agadjá (1708-1732) , junto com outros (Gongon, Abikobi, Ato e Gbélò), ou pela princesa Nà Hwanjele, mãe do rei Tegbessu (1732-1775), que era de origem yoruba. Os sacerdotes de Fá são chamados em fon de bokonon, o correspondente a babalawo dos yoruba.

O Babalawo (pai que possui o segredo), é o sacerdote do Culto de Ifá. Ele é o responsável pelos rituais, iniciações, todos no culto dependem de sua orientação e nada pode escapar de seu controle. Por garantia, ele dispõe de três métodos diferentes de consultar o Oráculo e, por intermédio deles, interpretar os desejos e determinações dos Orixás. Òpelè-Ifá, Jogo de Ikins e (jogo de búzio por odu) Merindilogun. Opon-Ifá, tábua sagrada feita de madeira e esculpida em diversos formatos, redonda, retangular, quadrada, oval,[3] utilizada para marcar os sígnos dos Odús (obtidos com o jogo de Ikins) sobre um pó chamado Ierosum. Método divinatório do Culto de Ifá utilizado pelos babalawos. Irokê-Ifá [4] ou Irofá de Orula instrumento utilizado pelo babalawo durante o jogo de Ikin com o qual bate na tábua Opon-Ifá.

O jogo de Opele-Ifá é o mais praticado por ser a forma mais rápida, pois a pessoa não necessita perguntar em voz alta, o que permite o resguardo de sua privacidade, também de uso exclusivo dos Babalawos, com um único lançamento do rosário divinatório aparecem 2 figuras que possuem um lado côncavo e outro convexo, que combinadas, formam o Odú. O Òpelè-Ifá ou Rosário de Ifá é um colar aberto composto de um fio trançado de palha-da-costa ou fio de algodão, que tem pendentes oito metades de fava de opele, é um instrumento divinatório dos tradicionais sacerdotes de Ifá. Existem outros modelos mais modernos de Opele-Ifá, feitos com correntes de metal intercaladas com vários tipos de sementes, moedas ou pedras semi-preciosas.

A determinação do Odú é a quantidade de Ikin que sobrou na mão esquerda, o resultado seja qual for, terá que ser riscado sobre o ierosun que está espalhado no Opon-Ifa, para um risco usa o dedo médio da mão direita e para dois riscos usa dois dedos o anular e o médio da mão direita. Deverá repetir a operação quantas vezes forem necessárias até obter duas colunas paralelas riscadas da direita para a esquerda com quatro sinais, se não sobrar nenhum ikin na mão esquerda, a jogada é nula e deve ser repetida. O Jogo de Ikin só é utilizado em cerimônias relevantes, só pode ser consultado pelo babalawo. O jogo compõe-se de 21 nozes de dendezeiro Ikin, são manipuladas pelo babalawo com a finalidade de se apurar o Odú a ser interpretado e transmitido ao consulente. Dos 21 Ikins, 16 são colocados na palma da mão esquerda, com a mão direita rapidamente o babalawo tenta retirá-los de uma vez.

O sistema inteiro traz uma semelhança superficial com os sistemas ocidentais de geomancia. Suspeita-se que a geomancia ocidental é um empréstimo de um sistema criado pelos Árabes e trazida para o norte da África, onde foi aprendida pelos europeus durante as Cruzadas. Muito embora possua um número diferente de símbolos, o sistema carrega também alguma semelhança com sistema chinês do I Ching. Quatro caídas ou búzios fazem um dos dezesseis padrões básicos (um odu, na língua Yoruba); dois de cada um destes se combinam para criar um conjunto total de 256 odus. Cada um destes odus é associado com um repertório tradicional de versos (Itan), freqüentemente relacionados à Mitologia Yoruba, que explica seu significado divinatório. O sistema é consagrado aos orixás Orunmila-Ifa, orixá da profecia e a Exu que, como o mensageiro dos Orixás, confere autoridade ao oráculo. O oráculo consiste em um grupo de côcos de dendezeiro ou Búzios, ou réplicas destes, que são lançados para criar dados binários, dependendo se eles caem com a face para cima ou para baixo. Os côcos são manipulados entre as mãos do adivinho , e no final são contados, para determinar aleatoriamente se uma certa quantidade deles foi retida. As conchas ou as réplicas são freqüentemente atadas em uma corrente divinatória, quatro de cada lado.

Existem 256 odù, correspondendo cada um a uma série lendas (Itan). O babalawo detecta esse odù manipulando caroços de dendê (Ikin) ou jogando o rosário de Ifá chamado (Opele-Ifa). Cada odù é formado por um conjunto constituído por duas colunas verticais e paralelas de quatro índices cada. Cada um desses índices compoem-se de um traço vertical ou de dois traços verticais paralelos que o babalawo traça no pó (iyerosun) espalhado sobre um tabuleiro de madeira esculpida (Opon-Ifá) à medida em que vai extraindo os resultados pela manipulação dos côcos de dendezeiro ou ikin-ifá.

O Culto de Ifá tem um rígido e complexo sistema de conduta moral relativo a seus adeptos, expresso no Odu Ikafun, onde surgem os dezesseis mandamentos de Ifá. O culto de Ifá é um sistema divinatório, empregado na África e nos países para onde foi disseminado para decisões de cunho religioso ou social. Utiliza três técnicas diferentes (Opelê, Ikins e Merindilogun), que têm em comum os Odú-Ifá, os signos. O Culto de Ifá é oriundo da África, das culturas jeje e nagô, e está ligado ao Orixá Orunmilá-Ifá da Religião Yorùbá. Com a ida destas culturas para Brasil e Caribe, nos períodos do tráfico negreiro, alguns sacerdotes (chamados babalawo (yoruba) e Bokono (ewe/fon).) foram levados para estes países, estando ligados às religiões Candomblé (Brasil) e Santeria através da Regla de Ocha (Cuba). As mulheres também podem ser iniciadas no culto, quando passam a ser chamadas apetebis (esposas de Orunmilá), mas os sacerdotes - babalawôs - sempre são homens heterossexuais, sendo vedado às apetebis jogar Opelê ou Ikins. Apenas o Merindilogun é permitido a elas.

Um comentário de Pierre Verger, citado por Mestre Didi, no livro Axé Opô Afonjá, dá conta da surpresa do rei de Osogbo ao presenciar um ritual para Oxum no Opó Afonjá. Ele "se mostrou impressionado pelo profundo conhecimento que ainda se tem na Bahia dos detalhes do ritual do culto àquela divindade", conta. O próprio título de Iyá Nassô de Mãe Senhora" é um posto destinado em Oyo, à sacerdotisa encarregada do culto a Xangô, no interior do Palácio do Àláàfin de Oyó", completa Mestre Didi, que era filho carnal de Mãe Senhora. Outro Sacerdote, dedicado ao Merindilogun e muito respeitado foi o professor Agenor Miranda Rocha, angolano de nascimento. Iniciado aos 5 anos de idade por Mãe Aninha, Iyálorixá fundadora dos Terreiros Ilê Axé Opô Afonjá de Salvador e do Rio de Janeiro. Pai Angenor vivia no Rio de Janeiro, trabalhando como professor. Foi autor de muitos livros importantes para a compreensão do Oráculo de Ifá no país. Agenor Miranda Rocha, o Pai Agenor, (Luanda, Angola, 8 de setembro de 1907 — Rio de Janeiro, 17 de julho de 2004) foi um babalorixá do Candomblé. Era professor catedrático aposentado do Colégio Pedro II, estudioso e adivinho do candomblé, o brasileiro que mais conheceu a herança e a Cultura afro-brasileira.

Hoje já existem muitos Babálawós iniciados em Cuba e no Brasil, outros tiveram que viajar para a África para se iniciarem e com isto originando um interesse renovado pelo Culto de Ifá no Brasil. Recentemente se tem notícia de Babálawós Africanos e Cubanos que vieram para o Brasil com a finalidade de abertura de casas Templo do Culto de Ifá. Adilson de Oxalá, Adilsom Antônio Martins Awó Omó Odu Ogbebara, brasileiro, foi iniciado como consta acima Awófakan pelo Babálawó Cubano, Rafael Zamora Diaz Ogunda Kete, que criou o grupo msn-[1] e Adilsom de Oxalá/ Adilsom Antônio Martins, atualmente Awó Ni Orúnmilá Ifáleke Omó Odu Ogbe-Bara, fundou o Grupo MSN Obi Ordem Brasileira de Ifá.

Na Santeria um Babálawó ou "pai do segredo" é o equivalente a um Sacerdote. Ele é capaz de fazer rituais e interpretar oráculos. Além disso um Babálawó é também um líder espiritual e aconselhador das pessoas que ele iniciou na religião. Originalmente, o Babálawó era o ancião de sua tribo na África. Em Cuba, durante o período colonial, o seu papel mudou.


Texto extraído do http://purytere.blogspot.com.br/2013/02/ifa-e-seus-segredos-beleza-profundidade_8.html

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Que mito você está vivendo? - Carl Jung


Da apropriação e reiteração de discursos iorubas: uma leitura sígnica

Os mitos dos orixás apontam para uma longa memória - mesmo que construída dialeticamente, e reportam seus adeptos para tempos longínquos em que os deuses habitavam a terra. Na dinâmica dos terreiros de candomblé, os cultuadores dos orixás, o povo do santo, entende esses textos em seu aspecto religioso, o que lhes confere instrumento que transcende o material, o concreto, o científico, tornando os mitos, nesta perspectiva, instrumento que comunica deuses e homem, terra (àiyé) e céu espiritual (órun).

Os textos mitológicos aos quais fazemos referência são os chamados ìtàn àtowódówó , que nos contam sobre os mitos cosmogônicos, a epopéia dos deuses, sua relação com o mundo e com a nossa humanidade. De uma riqueza ímpar, esses textos aprofundam o entendimento de quem somos, do que fazemos, ao discutir as questões da existência humana e suas eternas dúvidas. São ao mesmo tempo influência e influenciados pelos rituais, que os reiteram, cada vez que um iniciado lança água à terra, umedecendo-a, cada vez que uma oferenda é dedicada aos orixás, solicitando-lhes o axé; ou quando os babalaôs, “guardiões do segredo”, se debruçam sobre o complexo jogo oracular de Ifá (Orumilá) para fazer suas adivinhações.

Para o povo do santo, os mitos são aceitos como “absolutamente verdadeiros” , pois deles se apropriam não como fatos, mas como metáforas, não em seu valor referencial, científico, mas em seu teor metafísico, promovendo um relacionamento com as energias o mais próximo, o mais visceral possível, que, neste sentido, con-fundem mito e ritual. Por isso,

Quando o oráculo do Ifá é lançado, o que consiste em jogar dezesseis conchas de búzio no chão, como se fossem dados, se a pessoa receber o sinal chamado de Ossá-Ogumda , é essa história que será contada pelo babalaô. A pessoa afligida poderia assim receber o diagnóstico de que sofre de um problema de impotência sexual ou incapacidade, provável mas não necessariamente sexual, e as ervas medicinais prescritas são chamadas de “remédios de luta”, consistindo principalmente de uma planta conhecida como “folha de búfalo”, apreciada por seus “chifres grandes”. Porém, o propósito fundamental desse procedimento é desenvolver um relacionamento com a Deusa [Oyá-Iansã].

Todavia, o debate em torno dos mitos tem sido legado a um plano de descaso: são tratados como “estorinhas” que têm valor pouco significativo em nossa cultura: ocidental, eurocêntrica, cristã, que privilegia outras formas de conhecer o mundo: telescópio, computador, satélite, microscópio, e o intelecto do homem moderno. Aliás, é visível a política de apagamento dos mitos africanos em comparação com a utilização canônica que as instituições - escolas, universidades - tem legado aos mitos gregos, romanos, egípcios.

Não devemos esquecer que desde os séculos XV e XVI, no imaginário coletivo já estava sedimentada uma mitologia européia de deificação e de demonismos: “os deuses tinham pele branca, os diabos, pele negra, e era dever dos deuses subjugar os diabos.” Mais ainda, discutir mitologia africana é remontar a história de um povo massacrado, vilipendiado, que sofreu diversas pilhagens ao longo de sua história. De modo objetivo: (i) o tráfico negreiro e a escravidão dos africanos nas Américas; (ii) a colonização dos territórios africanos; (iii) o recrutamento de pessoas para o desenvolvimento militar e científico dos países do Ocidente, que teve seu início nas décadas finais do século XX.

Neste contexto, é a influência dos negros iorubás (nagôs), principalmente pós-escravidão, que vai difundir no Brasil seu modo muito particular de ver o mundo, através de seus mitos e rituais de adoração dos deuses. O professor Reginaldo Prandi diversas vezes declarou a força dos iorubás, ressaltando as atividades de casas de santo tradicionais na Bahia: a Casa Branca do Engenho Velho, o candomblé de Alaqueto, o Axé Opô Afonjá e o Gantois.

Além disso, os últimos anos assistiram a uma preocupação sistemática em resgatar os textos mitológicos, com a vinda de babalaôs nigerianos trazidos ao Brasil por instituições, como o Centro de Estudos Africanos da Universidade do Estado de São Paulo, onde ministram cursos sobre mitologia, cultura, língua e ritos iniciáticos. , além do chamado processo de reafricanização, em que os sacerdotes peregrinam à África em busca de “uma literatura sagrada contendo os poemas oraculares de Ifá”.

Pierre Verger se apóia na pesquisa de Gisèle Cossard para discutir arquétipos, segundo o que, os iniciados, geralmente, possuem traços comuns a seu orixá, tanto no biótipo, quanto em características psicológicas. O corpo do filho de santo, bem como suas ações em sociedade parecem ser espelho do orixá, tal qual seus mitos apresentam. Neste sentido, se Xangô é vigoroso, forte e elegante, Oxum possui feminilidade extrema e elegância, Iansã apresenta-se com força, energia e sensualidade, Oxossi com vivacidade e independência, Ogum com extrema força, rapidez e não muito bom humor, isso será reproduzido no arquétipo.

A pesquisadora Betty Mindlin citando Mircea Eliade (1907-86) diz que o mito é “um fenômeno religioso”, como tentativa de o homem retornar ao ato original da criação.
Acreditam os cultuadores de orixás que, cada vez que os mitos são acionados por meio de seus rituais, produz-se a ligação entre o sagrado e o profano, fazendo com que o homem escape do tempo profano, adquirindo a possibilidade de existir em um outro espaço, o Tempo Primordial, “tempo forte, prodigioso, sagrado em que algo de novo, significativo e forte, ocorreu pela primeira vez. ”

E como teriam surgido os mitos? Ford opta pela teoria da “difusão e da origem simultânea”; ou seja, os mitos têm uma origem simultânea em diversas culturas porque são elementos essenciais do homem e estão presentes em toda parte. Além disso, é bastante complexo precisar suas raízes, haja vista que, a mitologia africana surgiu oralmente, como todas as mitologias; e seu conhecimento é transmitido oralmente, o que lhe confere, segundo Verger, caráter de portadora de axé:

As palavras, para que possam agir, precisam ser pronunciadas. O conhecimento transmitido oralmente tem o valor de uma iniciação pelo verbo atuante, uma iniciação que não está no nível mental da compreensão, porém na dinâmica do comportamento.
Outras características dos mitos é que não são datados, não se confundem com um discurso histórico, não produzem um fio narrativo, e não se preocupam com linearidade ou “coerência”. 
Eles se apresentam como uma necessidade de explicação da vida, dos fatos, das ações de um povo. Deste modo, o povo do santo se utiliza de um grande repertório de mitos que versam sobre um conjunto de fatos acontecidos no passado, com o intuito de iluminar a vida no tempo presente.

Os mitos dos orixás: a voz que (in)surge dos terreiros e/ou sobre como é saboroso o saber dos mitos em Verger.

Pierre Fatumbi Verger (1902-1996), fotógrafo, etnólogo e babalaô do culto aos orixás, teve como objeto de interesse e universo de trabalho a cultura afro-brasileira, especialmente o candomblé da Bahia. Dedicado a Orumilá, o deus da adivinhação, iniciou-se no culto a Ifá, o oráculo iorubano, o que lhe valeu o nome Fatumbi, ou seja, “renascido de Ifá”.
Em seu Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo, apresenta uma série de mitos coletados na África e no Brasil sobre os deuses iorubás. Esses textos encontram respaldo nos terreiros e são recontados, com alterações em um ou outro ponto, com a manipulação e ressignificação de certas passagens, mas, sobremodo, se fazem sentir nos rituais que são produzidos nos terreiros de candomblé por todo o Brasil.
Fatumbi chama a atenção para as diferenças que os textos apresentam quando contados e recontados ao longo do tempo:

se algumas destas variações são o resultado de esquecimentos ou do acréscimo de elementos novos, não podemos afirmar, entretanto, que os aspectos de um mito, fixados há um século, sejam mais próximos de sua concepção original que os levantados atualmente.
Em suma, trabalharemos neste artigo com três mitos referentes a Exu, conforme apresentados por Verger. Tal escolha se justifica, haja vista que este orixá, o primogênito do Universo, é o responsável por toda a dinâmica dos rituais, sem o qual, nada acontece. Efetivamente, tudo nos rituais depende de Exu; de seu alto poder mágico e cosmogônico.
Assim, apresentamos os mitos e os modos como são apropriados pelos terreiros, para que conversem entre si, dialeticamente, proporcionando-nos ricos significados.
Cremos que, mesmo que não conheçam os mitos em detalhes, mesmo que inconscientemente, os terreiros expressam o posto nos mitos e remontam sua gênese. Ruy Póvoas, professor de literatura e zelador no culto aos orixás, com casa de axé em Ilhéus, me dá condições de defesa:

Num terreiro de candomblé, jamais se atribuirá a uma pessoa cabeça de Oxum a tarefa de remover o corpo morto de um animal em decomposição ou qualquer atividade que implique lidar com cheiros nauseabundos ou que promovam rejeição. Oxum é moça rica, rainha do brilho, do perfume e assim são também os seus filhos. Desrespeitar o humano é também desrespeitar o orixá, pois essas coisas não se separam.

Oxum é mulher graciosa, símbolo do feminino e da beleza, rainha excelsa, delicada. Para ela seria agressão lidar com elementos em putrefação. De mesma sorte, jamais se pedirá a um filho de Oxalá que manipule o dendê ou o sal. Esses elementos fomentam a ira do orixá, porque são símbolos que vão de encontro ao axé particular de Oxalá, deus do branco, da paz, da alvura, orixá relacionado à criação, fomentando nele e em seu filho atitudes incomensuráveis. Ford (1999:211) destaca que Obatalá, outro nome para Oxalá, é o “Rei das Vestes Brancas, em parte porque o branco simboliza o líquido seminal, o poder criador masculino”.
Em contrário, Ogum, Xangô, Oyá e Exu são energias que se apropriam em demasia do axé do “sangue vermelho”, inclusive, dele se alimentando em grandes quantidades, como o epô, azeite de dendê, o osùn, pó vermelho, mel; bem como do axé do “sangue preto”: carvão, ferro, o sumo escuro de certos animais; o ilú, índigo, extraído de diferentes tipos de árvores.

Não à toa, termos nos mitos de Exu a manipulação do axé do vermelho e do branco, o qual, conta como ele semeou discórdia entre dois amigos que estavam trabalhando em campos vizinhos. Ele colocou um boné vermelho de um lado e branco de outro e passou ao longo de um caminho que separava os dois campos. Ao fim de alguns instantes, um dos amigos fez alusão a um homem de boné vermelho; o outro retrucou que o boné era branco e o primeiro voltou a insistir mantendo a sua informação; o segundo permaneceu firme na retificação. Como ambos eram de boa fé, apegavam-se a seus pontos de vista submetendo-os com ardor e, logo depois, com cólera. Acabaram lutando corpo a corpo e mataram-se um ao outro.

Exu é indicado em diversos mitos como o senhor dos caminhos, aquele a quem se deve oferecer salvas muito antes do que a qualquer outra energia para que nada de ruim aconteça, para que os amigos não se tornem inimigos e a colheita, da qual, Exu, conosco é participante ativo, pois está em todo e qualquer ritual, renda frutos benéficos.
O texto chama a atenção para o fato de que os amigos eram tão amigos e seu laço tão próximo que seus terrenos eram “vizinhos”. Ou seja, Exu é aquele que pode desfazer o que já está estruturado, dado como certo, inviolável. Exu é o que destrói o inexorável. O termo “passou ao longo de um caminho” é empregado, como índice de ser Exu o que transita tranquilamente entre os espaços, qualquer espaço. Lembremos que é ele quem fomenta a comunicação entre o àiyé e o órun: o duplo mítico, assim como, é duplo - formação de par - o sistema que traz harmonia. Viviam em harmonia os dois amigos, mas, com o acréscimo do terceiro - Exu -, esta harmonia se desfaz. Lembremos que o número três é por excelência a força de Exu, o morador do oritá, encruzilhada de três pontas, e o ímpar é, por sua vez, aquele que descontextualiza, traz o caos, desarmoniza. É por meio de sua presença e do seu boné de duas cores, signo do vermelho e do branco que a discordância se instala, tornando-se uma afronta, que leva a discussão, à cólera, à luta corporal e à morte um do outro. Não há vitorioso que não seja Exu. Percebamos também que nenhuma razão há para que Exu apronte esta dissidência. Exu é aquele que faz o que quer, como quer, com quem quiser. Faz o bem e faz o mal. Exu é aquele “que joga nos dois times sem constrangimento: Asòtuún se òsì láì ni ítijú” . Exu pertence tanto à direita - orixás -, quanto à esquerda - ébora -, daí seu boné branco e vermelho. 

Exu transita nos dois hemisférios da cabaça da criação, veiculando seu poder entre o grupo dos orixás - os òrìsà-funfun, Obatalá, Òsalufón, Òsaògiyán, Òrisà-oko, Olúwo-fin, Olúorogbo, Orisà Eteko, que se apresentam sob a forma do poder genitor masculino e do “sangue branco” -, e os éboras - os omo-òrìsà, Ogum, Xangô, Ossain, Iansã, etc, constituintes do grupo dos duzentos irúnmalè da esquerda, a metade inferior da cabaça da criação, cujo poder genitor é feminino. 

Exu é orixá de extremo poder, de alta magia e complexa manipulação, que veicula o axé, intercomunicando o sistema espiritual, sem o qual, qualquer manifestação ficaria impedida:
A função de Exu consiste em solucionar, resolver todos os ‘trabalhos’, encontrar os caminhos apropriados, abri-los ou fechá-los e, principalmente fornecer sua ajuda e poder a fim de mobilizar e desenvolver tanto a existência de cada indivíduo como as tarefas específicas atribuídas e delegadas a cada uma das entidades sobrenaturais.

Não à toa, é comum nos rituais, saudar Exu antes de qualquer atividade, “conversando com ele, colocando-lhe oferendas, afinal ele é o Síwájú, “o primeiro a ser cultuado”. A ele, no mínimo, uma quartinha - pote pequeno de barro - com água deve ser colocada e esta água não deve secar nunca. E a terra deve ser saudada, umedecida, lançando-lhe três punhados d’água, antes de qualquer ebó, a fim de acalmar as forças de Exu.

Em outro texto, menor, mas não menos indicativo do poder de Exu, outras características deste orixá podem ser abordadas:

Uma mulher se encontra no mercado vendendo seus produtos. Exu põe fogo na sua casa, ela corre para lá abandonando seu negócio. A mulher chega tarde, a casa está queimada, e, durante esse tempo, um ladrão levou suas mercadorias.
Aqui, ele é retratado em seu poder visceral de alta magia, de controle do fogo. Nada do que a mulher tenta fazer dá certo. Ela corre para casa e chega tarde. Percebamos que o vocábulo “tarde”, nos lança para uma idéia de passagem de tempo, faz crer que Exu controla o tempo, e o faz passar a seu bel prazer. Contra a ira de Exu, não há o que fazer. Enquanto a mulher tenta salvar sua casa, ele faz com que roubem suas mercadorias: a mulher está sem trabalho e sem casa. 

Outro aspecto que salta é a colocação no texto do vocábulo “mercado”. Sabe-se que ela tem uma importância semântica fundamental para os iorubás, pois indica um lugar símbolo do jogo financeiro, do mecanismo de troca, de compra e venda. O mercado é a morada da riqueza. Não é espanto, ter se reproduzido nos rituais de axé por conta dos mitos, um ebó no qual a pessoa depois de assentado seu Exu, “passeia com ele pelo mercado” solicitando sua benção. 

Outro destaque é o fato de Exu se apresentar como manipulador dos caminhos, Ojisé, e do fogo, Inà, uma vez que é Ogum, quem, por excelência “percorre os caminhos, é o seu dono”; Xangô, por outro lado, é o “deus que conhece as manhas do fogo”. Se podemos dizer que Exu consegue manipular tanto os “caminhos”, quanto o “fogo”, elementos índices de outros orixás, podemos afirmar que ele não “anda” sozinho, sua energia se apresenta em comunhão com as outras energias; ele tem contato muito íntimo com os outros orixás. Neste sentido, agredi-lo é agredir aos outros ébora, pois, simboliza, sintetiza os poderes dos outros éboras.

Em outro texto sobre Exu, temos que ele foi procurar uma rainha abandonada já há algum tempo por seu marido e lhe disse: “Traga-me alguns fios da barba do rei e corte-os com esta faca. Eu lhe farei um amuleto que lhe trará de volta o seu marido”. Em seguida, Exu foi à casa do filho da rainha, que era o príncipe herdeiro. Este vivia numa residência situada fora dos limites do palácio do rei. O costume assim o determinava, a fim de prevenir toda tentativa de assassinato de um soberano por um príncipe impaciente por subir ao trono. “O rei vai partir para a guerra”, disse-lhe ele, “e pede o seu comparecimento esta noite ao palácio, acompanhado de seus guerreiros.” Finalmente, Exu foi ao rei e disse-lhe: “A rainha, magoada pela sua frieza deseja matá-lo para se vingar. Cuidado, esta noite”. E a noite veio. O rei deitou-se, fingiu dormir e viu, logo depois, a rainha aproximar uma faca de sua garganta. O que ela queria era cortar um fio da barba do rei, mas ele julgou que ela desejava assassiná-lo. O rei desarmou-a e ambos lutaram, fazendo grande algazarra. O príncipe, que chegava ao palácio com seus guerreiros, escutou gritos nos aposentos do rei e correu para lá. Vendo o rei com uma faca na mão, o príncipe pensou que ele queria matar sua mãe. Por seu lado, o rei ao ver o seu filho penetrar nos seus aposentos, no meio da noite, armado, e seguido por seus guerreiros, acreditou que eles desejavam assassiná-lo. Gritou por socorro. A sua guarda acudiu e houve então, grande luta, seguida de massacre generalizado. (VERGER, 2002: 77).

Neste texto, Exu brinca com todos os personagens, formando entre os três - fiquemos atentos à importância deste número para Exu! - um elo, que não une, mas que separa. A idéia de elo, efetivamente nos leva à imagem da ligação. Em Exu, tudo pode ser diferente, uma vez que é o paradoxo por excelência. Não esqueçamos que nos orixás moram o poder de “fazer” e “desfazer”, a relação de causa e efeito, o ataque e a defesa. O mesmo orixá que pune é o que absolve, o mesmo que ataca com problemas de saúde é quem conhece a cura. Um mesmo elemento, dendê, por exemplo, pode ser utilizado tanto para reforçar vibrações negativas, quanto para acalmar. 

Sàlámì (1991:25) apresenta este orixá como o “òta òrìsà”, “o inimigo dos orixás”; e, nos ensina em sua oração, “Esù máse mi, omo elòmíran ni o se”, “Exu, não manipule a mim. Manipule outra pessoa. Em seu poder mágico, Exu é o manipulador do ebó, o manipulador do sistema oracular - não há adivinhação sem Exu -, é ele o manipulador dos indivíduos e os impele à ação. No mito que Verger nos apresenta, Exu fornece a faca e diz que irá se utilizar de sua magia fazendo um amuleto para a rainha, cuja força lhe trará de volta seu marido. Ampliando a visão temos a faca como um objeto que Exu divide com Ogum, deus do ferro, dos metais - temos posta a ligação entre os dois orixás novamente -, lembremos do nome de Exu Ol’obé; Senhor do Obé, da faca; por isso mesmo, toda vez que se produz uma oferenda e nela se utilize uma faca, tanto Exu, quanto Ogum devem ser louvados, pois participam deste evento, independentemente de para qual orixá o ritual é produzido. Exu de fato poderia ter viabilizado a união e produzido o amuleto com alguns fios da barba do rei, uma vez que é detentor de alta magia, mas a utiliza para fazer exatamente o contrário. Exu é Elegbara: o manipulador de toda e qualquer energia. Sem ele, os amores não se fazem. Sem ele Xangô não lança seus raios. Sem ele, os preparados de Ossain tornam-se inócuos. Sem ele o tempo não corre, ou corre para trás, em descontrole. Esta é a sua condição dinâmica de agbará, ao mesmo tempo controlador e dono da representação do sistema mágico. (SANTOS, 1986:134). E sua magia já começa a ter efeito antes mesmo de iniciá-la, no momento mesmo em que engana, ilude, trapaceia os seus personagens - soberanos. Pura ironia: Exu não escolhe a quem atacar, seu poder é exercido sobre a mulher do mercado e sobre o rei. Exu é aquele que desconstrói o que o homem construiu: “O costume assim o determinava, a fim de prevenir toda tentativa de assassinato de um soberano por um príncipe impaciente por subir ao trono”. Não adiantou o fato de o príncipe não morar no palácio. Exu vai de encontro ao que não foi por ele estabelecido, e coloca o príncipe, com seus guerreiros, num cenário que não era o seu, causando confusão: o príncipe ouve gritos e pensa que seu pai quer matar sua mãe. O rei chama a guarda, e uma carnificina se estabelece. São personagens, neste texto, manipulados pela vontade de Exu, aquele que consegue piorar ainda mais o que já está ruim. A rainha queria seu marido de volta, índice de melhoria sentimental com o retorno para o esposo, a vida em família. Exu lhe tira tudo: a vida dela, de seu filho e do rei. Isso é resultado do intenso poder que Exu tem de lidar com vida e morte.

Assim se dá a dinâmica dos mitos e rituais. É possível, portanto, afirmar que os mitos dos iorubás permanecem vivos nos cultos dos candomblés afro-brasileiros. Basta observar o modo como o povo do santo se apropria desses discursos mitológicos, reiterando-os por meio de seus rituais. Numa visão dialética, há a apropriação e reiteração destes discursos, numa batalha de representação, numa luta por se fazer representar, ao invés de ser apenas representado: expressão de política de identidade . De modo que, ao se apropriar dos mitos, o povo do santo, em seus rituais transita por meio de um discurso que “fala dele”, ao mesmo tempo em que “fala de si”. Neste aspecto, são os mitos que, por meio das tramas discursivas, fornecem à religião padrões de comportamento a seus fiéis, aos seus rituais, que podem “assim ser usados com modelo a ser seguido, ou como validação social para um modo de conduta já presente”.

Por Alexandre de Oliveira Fernandes e Manoel Santos Mota

Referência Bibliográfica

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RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma africana no Brasil: os iorubás. São Paulo: Oduduwa, 1996.

SÀLÁMÌ, Síkírù. Cânticos dos orixás na África. São Paulo: Oduduwa, 1991.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Pàdê, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986.

SILVA, Tomaz Tadeu da Silva. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

VERGER, Pierre. Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo. Salvador: Corrupio, 2002.


domingo, 18 de setembro de 2016

A ritualização dos mitos...





Religião E Migração: Os Cultos Afro Brasileiros A Viagem Do Corpo Dançante O Significado Das Danças Sagradas No Candomblé
Por:Rosamaria Susanna Barbára

Resumo:
O paper relata a importância do corpo e da dança no ritual do candomblé, dança que é experienciada num tempo e num espaço particular, aquele do mito. Através do corpo dançante o fiel alcança o transe e relata a memória e a história daquela comunidade, em quanto o corpo simbólico é o centro da união com o divino e o espelho das energias cósmicas. Sendo a dança uma arte, que vive em direta junção com a música, discutem-se também a estética africana e o aspecto fundamental dela: a dinâmica do movimento.

A VIAGEM DO CORPO DANÇANTE

"Je danse l'autre donque jé sui"
Leopold Sendar Senghor
Esse paper é o resultado de uma pesquisa de campo de três anos, realizada em Salvador, Bahia, finalizada ao Mestrado em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal da Bahia e dos workshops em Expression Primitive, efetuados em Milão em 1996-1997.
Ao longo da pesquisa de campo tornou-se evidente a importância do corpo no caso na dança que não pode ser separada da música, no ritual. Essa preponderância da dança e da música relatada também na mitologia revela a sua função de criadora da ordem e da estabilidade a nível macrocósmico e a nível microcósmico nas culturas africanas, afro brasileiras e também no candomblé. Retomando Eliade (1969:33), cada ameaça à saúde e à vida do indivíduo que pertence às culturas tradicionais é enfrentada com uma: "...repetição do ato cosmogônico e não consiste tanto numa repetição dos processos vitais, mas numa verdadeira e própria recriação dos mesmos processos através da repetição ritual daquele acontecimento primordial, arquetípico, que em illo tempore gerou a mesma vida. Existe um tempo mítico e primordial no qual tudo já aconteceu, um tempo puro que se identifica com o instante da criação.
Tambia O candomblé é uma religião fundamentada sobre a crenças em divindade chamadas orixás e sobre a procura do encontro com o sagrado via o fenômeno da possessão. O transe no candomblé, como diz Prandi (1991): "...pelos menos em suas primeiras etapas iniciaticas, é experiência religiosa intensa e profunda, pessoal e intransferível. Como a dor e as paixões não-religiosas experimentadas, não pode ser mensurado nem descrito, a não ser metafórica e indiretamente". Durante o fenômeno do transe o corpo da filha ou filho-de-santo torna -se o próprio orixá superando a dicotomia corpo/espirito, forma/conteúdo. Tambiah (1981:121) procurando superar esta dualidade forma/conteúdo, argumenta: a integração entre relato cultural e análise formal é revelada nesta mutualidade: se os principais rituais de uma sociedade estão fortemente associados com sua cosmologia, então podemos legitimamente perguntar o que a sociedade busca transmitir aos seus aderentes em suas principais performances, o que nos leva a perguntar por que certas formas de comunicação são escolhidas e usadas em preferência a outras, como sendo mais apropriadas e adequadas para essa transmissão.
O corpo é assim, como diz Turner (1967:31) um símbolo dominante tendo a propriedade dá polarização do sentido. Num polo encontra-se um agregado de significados, que referem-se aos componentes da ordem social e moral da sociedade, a princípio da organização social, esse chama-se de "polo ideológico". No outro polo, o sensorial, o conteúdo é relacionado com a forma externa do símbolo; nesse se concentram significados que suscitam desejos e sentimentos. No contexto do ritual há uma contaminação de sentido: as ideias e valores morais expressos no polo ideológico se veem penetrados do conteúdo emotivo presente no polo sensorial. Os processos naturais e fisiológicos, expressos no polo emotivo, por sua vez, são elevados por referência aos valores. Na dança ritual, esse processo é facilmente compreendido: os movimentos do corpo transmitem representações e valores impregnados de emoção e não como mera cognição fria.
Outro aspecto que evidencia-se no ritual, é o cuidado com a estética seja na preparação da festa, seja nos trajes litúrgicos, estética padronizada em modelos fixos e transmitidos no tempo. A arte ritual funciona como representação do invisível, sendo o seu objetivo aquilo de chamar as forças imateriais. Como relata Huyghe (1967): "A arte é essencialmente um meio material de atingir, de mostrar e mesmo de introduzir no mundo dos sentidos as forças espirituais".
O candomblé por ser uma religião de raiz africana tem a ver com a afirmação de Jahn no que diz respeito a característica holística e simbólica da cultura africana onde cada elemento refere-se a um outro. Assim para compreender a dança torna-se necessário conhecer o contexto, a cosmologia, a crença religiosa, a estética e a visão de mundo da comunidade.
A dança como viagem simbólica tem duas funções: um lado invisível, a mudança interior quando a filha ou filho-de-santo incorpora o orixá e um lado visível onde o possuído dançando conta e testemunha a memória da comunidade, restabelecendo o "antigo equilíbrio”.

A ESTÉTICA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA

A arte africana é ligada especialmente a religião, aspecto que permaneceu também entre os afro-brasileiros, junto com a forte união com o mundo místico. Assim não existe o conceito da " art pour l'art" (claramente existe um valor estético), mas qualquer tipo de arte é algo de instrumental para os poetas ou músicos ou dançarinos-sacerdotes, sendo todo o processo de criação inspirado a realização da comunicação com o mundo sobrenatural e a criação daquilo que estão representando. A sacerdotisa-dançarina, por exemplo no transe de Oxum ao dançar cria a fonte d'água doce, cria a onda da agua, transmitindo a imagem, a vibração da natureza.
Estudiosos da arte africana, como a historiadora e dançarina Keriamu Welsh Asante (1985:72) e Thompson (1974:30) reconhecem na dinâmica do movimento o aspecto mais importante e profundo da estética dessas culturas, seja na dança, seja na arte visível e gráfica. Na arte plástica, observar-se figuras de homens ou de mulheres no ato de dobrar-se de joelhos, talvez para sentar-se ou levantar-se, mas sempre em perfeito equilíbrio.
A centralidade da dinâmica na cultura africana contrasta com a ênfase na postura fixa, característica da cultura ocidental, de facto a dinâmica do movimento faz parte do conceito de beleza africana, que é de grande complexidade, tendo que expressar vários aspectos simbólicos.
Segundo ela são sete as dimensões estéticas subjacentes à arte e sobretudo à dança e a música: a polirritmia, o policentrismo, a curvilinearidade, a dimensionalidade, a memória épica, a repetição e o holismo que expressam o universo místico total, seja o lado visível, o cotidiano, seja o invisível, o universo dos espíritos.
As danças africanas, como qualquer outro aspecto das culturas e das civilizações africanas, não podem ser consideradas em si, mas como elemento de uma unidade. É importante sublinhar esse aspecto holístico da cultura, porque ele está em nítido contraste com a cultura ocidental. Uma dança realizada para uma simples diversão, pode também remeter a outra coisa, numa corrente simbólica infinita. Portanto os movimentos, a parte do corpo utilizada, as roupas vestidas, a música possuem um sentido próprio, mas, juntos, simbolizam algo outro.
A característica mais impregnante na dança africana é a da polirritmia. Movimento e ritmo não podem ser separado. O ritmo tem um padrão fixo, na polirritmia tem a junção de vários ritmos. Cada parte do corpo movimenta-se seguindo um ritmo e uma forma diferente de movimento. Por isso o corpo pode ser comparado a uma orquestra, que, tocando vários instrumentos, harmoniza-os numa única sinfonia.
O policentrismo indica que o movimento não é a sua deslocação no espaço, mas a ocupação de uma estrutura-tempo. Como explica Waterman: " O africano apreende a ser consciente de cada instrumento empregado na orquestra e isso tem uma grande influência sobre a dança. Cada músculo do corpo atua seguindo os diferentes ritmos da música. Um dos termos no idioma Twi quando falam da música é "dança multi-metrica". Para Thompson a dança africana é determinada por várias interelações, construída através de vários movimentos sobrepostos. Para o estudioso o principal fim desta característica é a representação do cosmo no corpo, a com mais estrutura-tempo. Todas as possibilidades do universo existem só no corpo humano. Os dançarinos interpretam movimentos que veem de várias direções, mas na mesma "estrutura-tempo".
Outro aspecto com um claro significado mágico-religioso é a forma curvilínea. As danças africanas, como em geral as danças populares em muitos lugares do mundo desenvolvem um movimento circular, anti-horário e, nas coreografias, se destaca a forma curvilínea, porque, como contam as lendas, ao círculo é atribuído um poder sobrenatural, uma vez que a ausência de limite implica que não pode quebrar-se e que permanece ao infinito, numa estabilidade e espacialidade fora do tempo.
A dança africana é uma textura de várias camadas de sentidos, a dimensionalidade é entendida como a possibilidade de exprimi-las: o olhar, o ouvir, o sentir, o vibrar, que seriam o lado visível dos movimentos, expressos em outra dimensão, a espiritual. No momento da dança do transe não é mais a filha ou o filho-de-santo, mas a própria vibração do orixá, que movimentam-se.
Outro aspecto, muito salientado ao longo da pesquisa de campo, é aquele da imitação e da harmonia; o primeiro é percebido como reflexo e eco da natureza, mas em um sentido sensual e não material, enquanto a harmonia é vivenciada pelo artista como a sua colocação no cosmo sem causar distúrbios ou destruir o seu equilíbrio.
A memória é o aspeto ontológico da estética africana. É a memória da tradição, da ancestralidade e da lembrança da antiga harmonia da natureza, da época na qual não existiam diferenças, nem separação e que tem que ser lembrada e fortalecida num ciclo eterno. A relevância da obra artística é dada pela transmissão da harmonia, que liga algo dentro e algo fora, o corpo e o espírito, a natureza e o homem. Mas sem a inspiração divina o escultor, o dançarino, o musico não poderiam criar o "momento artístico-religioso".
A repetição, entendida como uma reciclagem do momento criativo, o movimento produz o efeito de intensificação que leva ao encontro com a divindade, facilmente observado nos rituais. O mesmo ato ou gesto é praticado num número infinito de vezes, para dar à ação um caráter de atemporalidade, de continuação e de criação continua.
Outra característica é a ligação com a terra, vivenciada como elemento materno, é ela que nos originou, em vários mitos africanos e no candomblé e a onde voltaremos. Nas danças africanas o contato continuo do pé nu com a terra é fundamental para absorver as energias que se propagam.

TEMPO E ESPAÇO NO CANDOMBLÉ

Evans-Pritchard (1976) distingue as duas categorias de tempo relativas aos Nuer (uma das tribos da África Oriental): o tempo ecológico e o tempo estrutural; sendo o primeiro o tempo das estações, dos ciclos anuais; enquanto o segundo revela não um continuum , mas uma constante entre dois pólos: a primeira e a última pessoa na linhagem familiar. Edward Hall (1984:96), observa que: "os Nuer, se dão conta, de certo modo, que o tempo passa, mas que é necessário para o funcionamento de suas estruturas culturais tratá-lo como um elemento imóvel - eles consideram que somente as gerações passam.
Tomando um outro exemplo, ainda na interpretação de Hall, (1984:96): para os Tiv (um povo da Nigéria) o tempo é como um conjunto de espaços fechados, cada um contendo um atividade diferente. Esses espaços fechados, assim como os canais dos Nuer, parecem ser relativamente fixos: não se pode deslocá-los ou reorganizá-los, nem mudar ou interromper uma atividade em curso no interior desses espaços, como se pode fá-lo na cultura ocidental.
No candomblé, também o tempo-pensamento para de fluir, porque cada ação, cada cantiga, cada dança tem que ser vivenciada no tempo reversível próprio do mito. Segundo a antropóloga Bernardo: "...Surpreende perceber na festa, através da música e da dança, a existência de um outro tempo - do tempo reversível. Pela audição dos sons e pela percepção dos movimentos dos corpos no espaço atesta-se a existência desta outra temporalidade que reintegra o tempo linear - da produção e da eficiência - ao tempo que não envelhece - característicos dos deuses".
Esse é um tempo circular que começa e acaba no mesmo ponto, ciclicamente e ritmicamente seguindo os ritmos da natureza. O tempo, nesse sentido é movimento, é a materialização do movimento, como diz Duplan (1987): "para marcar o tempo, temos que agir, batendo sobre um tambor com a mão ou sobre o chão com os pés. Criando o tempo, criamos o movimento."
O espaço sagrado é o campo do culto, o lugar no qual o caos transforma-se em cosmo, tornando possível a vida humana, por isso é polissêmico. Segundo Neumann(1981:34), "... O lugar da revelação primária transforma-se em lugar de culto, caverna sagrada, modelo de qualquer templo, e o mesmo caminho percorrido transforma-se numa estrada misteriosa conscientemente repetível, estrada que conduz à sabedoria com o caminho iniciático .
Toda a roça do candomblé é considerada um lugar sagrado. No momento em que o fiel deixa a rua e entra na roça, ele entra num lugar mágico-sagrado. O mundo de fora é perigoso e cheio de dificuldades. Dentro existem várias provas a superar, mas as filhas de santo encontram aliados na luta pela a sobrevivência e também no caminho místico-religioso. Já na entrada, os fiéis colocam ou assentam espíritos, através de rituais apropriados para defendê-los das energias negativas.
Tanto a rua, quanto o próprio terreiro poderiam simbolizar uma peregrinação, um caminho iniciático, lugar de passagem para alcançar o barracão, o lugar sagrado por excelência, onde, nas cerimônias públicas, as divindades se manifestam.
Existem dois espaços, um interior, o próprio corpo da filha-de-santo, receptáculo do sagrado, sagrado ele mesmo e um externo o barracão. Esses dois lugares são o teatro da transformação ritual. Neles o fiel deixa o mundo cotidiano e alcança o encontro tão assustador, mas tão desejado, com o divino. É só no espaço sagrado que ele pode voltar à totalidade e comunicar-se com a divindade.
A dança desenha não só o percurso do corpo no espaço para chegar ao divino, mas também percorre a planta arquitetônica do lugar sagrado, desenhando o caminho para alcançar o espaço mágico-sagrado.
O fiel dança, segundo (Wheatley,1983), ao redor do centro sagrado, um ponto da terra ligado ao céu por um invisível raio energético, o axis mundi . Este é um simbolismo em quase todas as religiões do mundo. Nesse ponto e na entrada estão enterrados os fundamentos da casa. Cada terreiro tem seu próprio fundamento. O centro de um lugar é fundamental nas religiões africanas porque é o lugar, onde, através da "coluna sagrada", o céu se liga com a terra, segundo relata Davidson (1972). É talvez por isso que, nesse lugar, está colocado o fundamento da casa.
A criação, em toda a sua extensão, se efetuou a partir de um centro. Por isso, tudo aquilo que é fundado, está no centro do mundo. Do centro passam dois eixos, um vertical, o outro horizontal, tempo e espaço. Desse centro, originam-se círculos sempre maiores, que vão ao infinito, à semelhança de uma pedra jogada na água. Mas o caminho é árduo, semeado de perigos, porque é, efetivamente, um rito de passagem do profano ao sagrado; do efêmero e do ilusório à realidade e à eternidade; da morte à vida; do homem à divindade.
O espaço sagrado, o barracão, durante a dança, é preenchido com os corpos em movimento. As direções são os caminhos do corpo no espaço. Simbolicamente expressam as várias possibilidades no espaço do divino e do homem se movimentar. A divindade pode utilizar uma estrada curvilínea, ou um caminho que prevê várias mudanças de direções. Come sugere Hall um movimento curvilíneo que segue um caminho direto-circular, como aquilo de Oxum ou Iemanjá mostra o pertencer a uma etnia de agricultores, parados num lugar de onde irradiavam-se. Enquanto os caminhos de Oiá e de Ogum relatam o pertencer a uma etnia nômade, que mudava a direção seguindo a trajetória dos animais. O corpo em movimento assume um significado simbólico, segundo os níveis de verticalidade, alto-médio-baixo. O nível alto relaciona a pessoa com o elemento ar; o nível baixo relaciona o corpo com a energia da terra, que, segundo Oliveira (1994): tem que dar o apoio necessário para sustentar-se; o nível médio inter-relaciona os outros dois. O corpo movimenta-se também na horizontal, ampliando os movimentos semelhantes a uma bola hipotética, como nas danças de Iemanjá, ou desenhando com os braços, uma forma redonda, como na dança de afastamento de Oiá-Iansã. Assim as danças podem desenvolver-se tanto ampliando os movimentos, quanto dançando na vertical, subindo e descendo ao longo de uma linha imaginária, como na dança das ondas de Iemanjá. Frequentemente os orixás jovens pulam, dançando, e interrompem os movimentos com paradas repentinas e nervosas, como Oiá-Iansã ou Ogum, demostrando mais energia, enquanto os orixás mais velhos dançam com mais calma e com movimentos mais contínuos, como Oxalá ou Nanã Buruku.
Os orixás guerreiros dançam com uma postura mais ereta, com pulos nos momentos mais dramáticos e alcançando com o corpo mais espaço seja na linha vertical que na horizontal, enquanto as divindades mais velhas dançam curvadas na direção do chão. É o caso de Omolu ou de Nanã Buruku, cuja gestualidade expressa sua ligação com os ancestrais e com o retorno à terra, aiyé, ao orum, o não conhecivel.

O CORPO E A SUA SIMBOLOGIA NO CANDOMBLÉ

O homem está em contato continuo e harmônico com a natureza, que fala com os mortais através das suas vibrações, captadas do corpo, por isso o corpo não é negado, mas vive o seu compromisso com o mundo. Os seus ritmos são acompanhados de uma experiência sensual contínua. Eis por que o corpo é decorado para mostrar a sua importância e resguardá-lo dos ataques mágicos externos, protegendo as aberturas com decorações ou jóias, como os brincos cheios de pendentes, para indicar aos outros quem a pessoa é e como os outros devem-se comportar-se na sua frente.
O corpo sagrado é o templo por excelência, é simbolicamente o "trono" e, por isso, o das divindades (típica é a representação de Iside sentada) é sempre representado (Newman, 1981:101) como: um trono em si, é característico que o ventre feminino não seja só a parte dos genitais, mas também as largas coxas da mulher sentada, sobre as quais fica o menino nascido daquele ventre. Portanto as cadeiras são uma área sagrada do corpo humano, onde a bacia e as nádegas representam a fertilidade.
Centro da irradiação simbólica portanto é o corpo, expressão das energias da natureza e em unidade com o mundo natural que o abrange. Daí a sua função de busca das energias cósmica e de expressão delas, vivenciando-as.
Sendo o corpo humano uma cópia das formas e das energias do cosmo, os próprios elementos (fogo, ar, água e terra) juntam-se segundo arquétipos diferentes. As palavras do biólogo Pelosini (1994:94) aplicam-se bem à concepção africana do corpo humano : ...o universo (macrocosmo) e o homen (microcosmo) são criaturas similares, que obedecem às mesmas leis como um tipo de fantástico e perfeito relógio cósmico que escande harmoniosamente os ritmos.
Tendo como base o contexto cultural holistico do candomblé, o corpo encontra-se diretamente relacionado a uma divindade e, por extensão, a um dos elementos naturais primordiais e aos demais elementos a ele associados, como relatam Barros e Teixeira (1992:43). É percebido como manifestação da ação sobrenatural. A partir da predominância de um dado elemento na composição do corpo, é determinado o principal orixá da pessoa.
As divindades femininas, as iabás, Nanã Buruku, Iemanjá, Oxum, Euá e Obá estão associadas ao elemento água; Oxalá (masculino) e Oiá-Iansã (feminina) ao elemento ar; Ogum, Oxóssi, Omolu, Iroko e Ossâim (masculino) ao elemento terra e por isso ao mato; Exu e Xangô (masculinos) e também Oiá-Iansã (feminino) ao fogo. Os orixás Oxumaré e Logunedé são considerados metá-metá" e estão associados tanto à água como à terra.
No corpo está inscrita a história da familiar, dos ancestrais Esa, numa sofisticada composição de formas, matérias e energias opostas, que devem equilibrar-se e complementar-se. Como relataram-me na pesquisa, simbolicamente a parte frontal do corpo é relacionada ao futuro; a parte posterior, sobretudo a nuca, ao passado. As pernas estão relacionadas aos ancestrais, porque são a base do corpo humano, quer dizer, aquilo ao qual refere-se sempre e que é o sustento, quer dizer a hereditariedade, os antepassados. Também as mãos são consideradas como um dos pontos onde é possível receber energia, de fato quando um orixá passa perto dos fieis botam-se as mãos abertas frente à divindade.
O corpo, ara foi modelado com uma porção de lama, porque a terra é a mãe de tudo e o lugar ao qual todos voltaremos, sendo um outro dos lugares simbolizantes o orum, o não conhecido.
As partes consideradas mais sagradas são: a cabeça, sede do ori é consagrada a Iemanjá. Ela é a senhora das energias negativas e positivas. É ela que consegue equilibrá-las nas cabeças. Por isso, como me foi explicado pela Ialorixá Mãe Beata de Logunedé, Iemanjá dança botando as mãos na frente e atrás da cabeça, a simbolizar a possibilidade das misturas das energias. Iemanjá como mãe de todos os orixás, tem a função de orientar e cuidar de todo mundo, não só dos filhos dela. Os seios simbolos da nutrição e fonte de vida para o genro humano. O ventre, sede dos órgãos sexuais, é protegido por Oxum, porque ela é a dona do fluxo menstrual, enquanto o útero, como órgão reprodutivo, é protegido por Iemanjá. Dono dos pés é Ogum, símbolo do movimento, também do desenvolvimento, porque indica a capacidade de procurar novos caminhos. O pé direito é relacionado com o ancestral masculino e o pé esquerdo com o ancestral feminino, sendo, como explicado acima, a base do corpo e a herança ancestral que reside na terra. A voz do orixá é o ke ou ila , um grito que às vezes a possuída dá durante a possessão. O ila é o símbolo da individualidade, é a energia pura daquela pessoa, é o som criador e individual que, concentrando-se no interior, testemunha a personalidade mais profunda. Mais que o olhar, é a voz que indica a individualidade.
As aberturas do corpo são também sagradas porque, através delas, através da alimentação penetram no corpo os alimentos e as energias. O orixá que cuida das aberturas do corpo assim como das entradas do terreiro é Exu, o guardião que, se bem homenageado, traz boas energias, enquanto que, se deixado solto na rua, procura confusões e dificuldades.
Os olhos são importantes porque falam, são os espelhos da alma, ao longo da pesquisa percebi o diferente olhar das Maes-de-santo em circunstancia particulares, como por exemplo na divinação. E também merece ressaltar o fato que ao longo do transe, os olhos fechados parecem indicar que os sentidos estão voltados para o interior do corpo, para uma outra dimensão. A coluna humana simboliza a coluna sagrada, com ela relaciona-se o mundo dos espíritos com os dos mortais, assim é através da coluna que liga-se a cabeça e os pés, o ori com o sua base que é a possibilidade de se mover no espaço e no mundo, como a dizer que sem um equilíbrio energético na cabeça o fiel não pode escolher o seu caminho.
Através do corpo em movimento percebem-se os problemas espirituais, porque, quanto mais um fiel conseguir ficar em harmonia consigo mesmo e com o seu orixá, com mais fluidez ele conseguirá soltar-se na dança, expressando a própria natureza profunda.

A DANÇA CÓSMICA

Shiva criou o universo dançando, assim como nos mitos gregos Eurinone, Deusa de Todas as Coisas, emergiu nua do Caos, mas não vendo substancia em redor onde firmar os pés, apartou do céu o mar, dançando solitária por sobre as suas ondas. (Graves, 1990:31). Nas lendas dos Iorubás, os orixás também gostavam muito de dançar durante as festas ou para atrair alguém.
Entendem-se assim que não só no pensamento africano, mas também no oriental e grego o universo é percebido em continuo movimento, formado por ondas vibratórias organizadas no "verbo" da Divindade Suprema que expressa-se na respiração com os dois movimentos básicos da natureza viva: expansão e contração. Movimentos fundamentais da vida do cosmo, das plantas, dos animais e do homem. Belinga diz (1993:11): "Nas nossas tradições o "verbo" possuí três elementos que o determinam e que permitem a sua colocação seja entre as formas artísticas, seja na comunicação interpessoal. Três são as formas nas quais o "verbo" manifesta-se: a palavra, que caracteriza a expressão interior e exterior do pensamento; a música que expressa a beleza; e pôr fim a dança, que é em função seja dos ritmos dos instrumentos seja do ritmo interior do "verbo".
Segundo os africanos a vida faz parte de um processo rítmico e dinâmico de criação e destruição, de morte e renascimento, onde as danças dos orixás expressam esse eterno e alternado ritmo, que desenvolve-se em ciclos infinitos expressados pelo homens.
Através da dança, o corpo sai da sua individualidade física e insere-se num movimento mais amplo que interessa à coletividade, à divindade e ao cosmo. O fiel, através do rito alcança o infinito. Move-se com atos ou gestos corporais, que permitem realizar aquela identidade substancial que liga o som individual aos ritmos do universo.
Assim as danças das divindades tornam-se como um espelho que reflete o ritmo humano, do nascimento, da morte e dos ciclos cósmicos da criação e da destruição. As culturas não ocidentais sabem que a natureza vibra numa onda invisível-rítmica perceptível só através do corpo e da arte.
Por isso Morin coloca que: "a sensibilidade estética é, sem dúvida, uma aptidão para entrar em ressonância, em "harmonia", em sincronia com sons, aromas, formas, imagens, cores produzidos em profusão não só pelo universo, mas também, já então pelo sapiens ".
Por isso a religião usa as formas estéticas como comunicação não verbal, porque consegue exprimir sensualmente mensagens profundas que seriam impossíveis expressar com palavras. Daí a importância da arte ritual como linguagem de transmissão para a alma humana. Langer explica este fato (1953:40) quando diz: a arte é a criação de formas que simbolizam os sentimentos humanos.
O homem é levado pela música expressa na dança para o caminho indicativo da metamorfose, necessária para encontrar o sagrado, experiência dificilmente exprimível com palavras, posto que ela é interna, preciosa e resumível apenas com as imagens simbólicas dos sonhos.
Existe uma estrutura fixa e organizada e uma linguagem específica, seja para a música, seja para a dança. A aprendizagem das danças e da terminologia é lenta e envolve uma longa vivência nos terreiros e uma longa observação. Nas palavras de Langer (1980:178): o movimento corporal é bem real, mas o que torna o gesto emotivo é a sua origem espontânea, no que Laban chama de movimento-pensamento-sentimento.
Percebe-se, assim, a importância não dos gestos mecânicos, mas da força do sentimento, do pensar apaixonado que a dança expressa, que seria a essência daquele orixá particular. Mas o homem só pode encontrar o sagrado através de uma iniciação progressiva: a força da divindade sem uma adequada preparação seria de fato forte demais para o comum mortal, como disseram meus informantes. Por isso o ritual desenrola preparando o fiel para encontro com o divino.
O homem dançando, ritualiza a confiança numa vitória sobre o heracliteo "eterno fluir" e a celebra para revivê-la e para continuar, ele mesmo, a viver eternamente, consagrando-se, assim, um dia como antepassado na memória dos familiares.
A angústia de não sobreviver à caducidade da vida e à passagem do tempo é antiga como o mundo e todos os povos tentaram exorcizá-la. O homem, através da dança ritual, acredita sair do tempo e entrar em contato com a essência primordial, na qual não existe o fluxo do tempo. Lévi-Strauss (1971:590-659) e Durand (1972:35) salientam a necessidade do homem de parar o tempo no ritual e de celebrá-lo dançando, de não deixá-lo decorrer em sua passagem, acalmando, desse modo, a angústia existencial.
No ritual, os fiéis do candomblé vivem de novo o momento atemporal do mito da criação, dançando ao contrario voltam a origem e, ao antigo equilíbrio, agindo assim, exorcizam a morte, o tédio e o sofrimento.

A MÚSICA NO CANDOMBLÉ

Segundo Mukuna (1996), a música africana tem a função de fazer socializar a comunidade, de passar o conhecimento sobre o grupo étnico desde uma geração á outra e de abrir um canal de comunicação entre o mundo físico e o espiritual. O som é o resultado de uma interação dinâmica, som que sendo condutor de axé, poder de realização, aparece em todo seu conteúdo simbólico nos instrumentos musicais. Por isso os atabaques são instrumentos sagrados e recebem todos os anos rituais apropriados, assim como são tocados só por sacerdotes-musicos, os alabés. .
Segundo o músico Carneiro(1994), a música africana está caracterizada por uma ciclicidade da frase musical. Quer dizer que o padrão rítmico repete-se ao infinito. Não é como na música ocidental, em que se cria uma história temporal. Aqui não: a frase musical é repetida sem um começo ou um final. A repetição da frase anula a expectativa do acontecimento de algo de novo, de imprevisto, mas recria todas as vez a frase musical. Existe a tentativa de parar o tempo e o seu fluxo na busca de um centro único, fixo e eterno. A música é dividida em unidade de tempo que organizam-se num "modelo-padrão", repetido numa nova re-ciclagem. No ritual cada atabaque tem seu "modelo-padrão" que liga-se àquele dos outros tambores num "ensamble thematic cycle" (Meki Nzewi) que levam os vários instrumentos num mesmo momento de início ou de fim. A música simbolicamente expressa o andamento circular do tempo e do espaço do mito.
O atabaque maior, rum , que é a base rítmica e é o único que permita-se variações, toma conta da cabeça, porque e o "som-identidade" e a nível simbólico, manda sobre o resto do corpo. Seria o fundamento religioso, a parte mais sagrada. A nível corporal, manda sobre os pés, que são a base do corpo e em direta ligação com a cabeça através do canal energético representado pela coluna humana. Os braços contam a mitologia e estão dirigidos pelo ritmo do rumpi . Enquanto a última percussão, o  , dirige o movimento dos ombros, que é continuo e o mais solto possível, talvez para ajudar a passagem da energia através da coluna.
Tanto a música, quanto a dança que a acompanha expressam o caráter do orixá e os acontecimentos da sua vida. As histórias míticas, as qualidades, as virtudes e as falhas dos orixás são passadas aos fiéis através das letras das cantigas. A concentração e a busca interior permitem expressar a própria música e a própria gestualidade, que é única e pessoal e que corresponde à "qualidade" de cada orixá.
Assim, por exemplo a música de Oiá é caracterizada por grande rapidez, agressividade, determinação e grande variabilidade, porque o rum nunca repete os mesmos esquemas rítmicos, percebe-se assim a personalidade da deusa que expressa o elemento ar em movimento. O uso da sincope no brano de Oiá tira a possibilidade de encontrar uma isocronia no ritmo e dá ao ritmo musical a impossibilidade de botar os pés no chão. Enquanto a música de Iemanjá é caracterizada por movimentos lentos e amplos, que expressam o movimento das ondas do mar. Por sendo em ritmo binário a sensação é aquela de um movimento circular, expressado na dança.
Como a música é tão importante, assim é a função dos sacerdotes-musicos, os alabés que aprendem o repertório durante muito tempo. São eles que podem chamar a comunidade e sobretudo os orixás a descer na festa, são eles que ajudam os fiéis a 'cair no santo' acelerando os ritmos e que encerram a festa com um toque especial.
Como mostra Luhning (1990:197), a música, na sua maior parte, está direta e inseparavelmente ligada com a dança das filhas-de-santo ou dos orixás manifestados nelas.

AS DANÇAS NO CANDOMBLÉ

Nos rituais de candomblé, a função da dança é múltipla: por um lado, é expressão do sagrado e cria o próprio orixá, por outro, é o meio e o conteúdo entre a divindade e os fiéis, entre o aiyé , a terra e o orum ,. Como já foi observado acima, a dança sagrada expressa a própria energia da natureza, materializada no corpo da filha-de- santo em transe.
Na festa pública do candomblé são reconhecíveis dois tipos de dança:
a) um primeiro tipo, no começo da festa, o xirê (literalmente brincar), onde se canta para todos os orixás um mínimo de três cantigas, acompanhadas pelas danças. Cada orixá possui cantigas e gestualidades particulares, pertencentes só a ele. Essas danças são previsíveis, porque são executadas ainda em estado consciente e seguem um padrão fixo, a depender do orixá dono da festa.
Todas as filhas e os filhos-de-santo participam dessas danças, formando, no início, um grande círculo sagrado, que é um símbolo encontrado em várias religiões. Essa primeira parte da festa pode ser considerada uma cosmovisão: todas as energias da natureza são chamadas a descer para restabelecer o antigo equilíbrio entre as energias da natureza e os homens. Em geral, os fiéis dançam um atrás do outro, em sentido anti-horário, exceto nas rodas de Xangô, de Oxóssi, de Obá ou de Oxalá", onde as filhas olham para o centro do barracão, concentrando-se nessa direção. Nesse lugar, está colocado o fundamento da casa, a raiz material da casa.
Quando se dança o xirê, segundo Oliveira(1995): os movimentos são de dimensão pequena e chamam-se dançar pequenino, porque são movimentos de dimensão pequena e servem para concentrar as energias, mas também para as pessoas se centrarem e para prepararem-se a receber o orixá;
b) um segundo tipo, são danças realizadas durante o transe; é o próprio orixá que dança nesse momento, seguindo o ritmo sagrado dos tambores. Nessa segunda parte, o andamento da festa é imprevisível porque, apesar de existir um esquema fixo, não se sabem exatamente quais serão as coreografias, porque isso depende das cantigas entoadas pelos fiéis presentes, da memória para lembrar as antigas cantigas e também da presença das Iá-tebexê ou das Baba-tebexê quer dizer, das filhas ou filhos que têm a tarefa de entoar as cantigas e de continuá-las, quando os outros não se lembram mais delas. Além disso, o desenvolvimento da festa depende de outros elementos complicadíssimos, como a relação entre o orixá dono da festa e o da mãe-de-santo, ou de outras relações entre os orixás.
Assim, por exemplo, numa cerimônia para Oyá-Iansã, assistem-se às danças típicas dela: da guerra, como mãe ou rainha dos Eguns, e a coreografias ligadas a outros orixás, como Ogum, Xangô, Oxóssi, seus maridos. Nessa segunda parte da festa, a energia é chamada a manifestar-se em todas as suas formas possíveis e também junto com as outras forças da natureza. Quando Oyá-Iansã dança com Xangô, sua dança é a manifestação do movimento do ar, que gera o fogo.
O orixá mostra ao público a sua história mitológica, redistribuindo a energia vital, axé e trazendo o mundo sagrado de volta ao cotidiano. Quando os orixás apresentam-se nesse momento, entram no barracão em fila, seguindo a hierarquia dos mais velhos no santo, quer dizer que as filhas mais velhas vêm na frente, seguidas daquelas com menos tempo de iniciação.
As danças dos orixás são muito diferente. Por exemplo nas coreografias de Oiá, os passos são pequenos e rápidos, como se os pés não pudessem posar-se no chão, ela representa o elemento ar em movimento, enquanto os braços movimenta-se com força afastando qualquer da sua frente. O corpo pode ser dobrado para o chão, com uma carga muito ameaçadora, mais frequentemente é direcionado para o alto.
As danças de Iemanjá são constituídas por movimentos amplos, os pés posam no chão, a demostrar o equilíbrio, enquanto os braços movimenta-se com grande fluidez. O corpo está levemente dobrado para o chão em uma forma redonda a lembrar a forma materna da deusa e a sua disponibilidade em acolher e em conduzir, o corpo todo expressa o movimento das ondas, a ritmicidade continua, mas também o mistério a água que está em baixo sobe por cima levando as coisas que encontra por baixo.
Existem algumas danças que são parecidas, como as chamadas primeira de dar rum , primeira coreografia dos orixás, que funciona como uma apresentação através da qual os orixás, se apresentam ao público. Nas danças executadas em transe o corpo e o rosto juntam-se numa única plasticidade como se o corpo tornasse uma estadua e adquirisse uma nova qualidade de movimento.
Cada orixá dançando transmite a própria vibração interna: Ogum, nervoso anda no espaço todo abrindo o caminho com as mãos que já viraram espadas. Oxossi, o caçador dança com o aguere, tranquilo, esperando os animais e movimentando-se com muita atenção no mato, ele tem na mãos arco e flechas. Xangô, com o ritmo avanija, toma posse do barracão, mostra ser o vaidoso rei de Oio, mexendo o corpo todo e ampliando a largura das costas. Omolu dança dobrado para o chão, o seu ritmoopanijé, tremendo pela sua doença. Oiá nervosa, voa com o ilú, enchendo todo o barracão, Iemanjá mais calma expressa a grandeza do mar e o seu lado maternal, enquanto a Oxum com o ijexá, captura os olhares dos fiéis, mostrando todo o seu lado coquete. Nanã também dança dobrada, tendo na mão uma bengala com a qual bate o milho, ela é a mais velha e a mais ligada ao mundo dos ancestrais, Oxalá, o pai de todos dança com dignidade, com a sua ferramenta na mão.
No final, existe uma coreografia de despedida, em geral igual para todos os orixás. Estes saúdam o público, a mãe de santo e os atabaques, restabelecendo a ordem inicial. Então as forças da natureza, chamadas a concentrar-se no espaço sagrado, são espalhadas novamente e repartidas no seu lócus originário.

OS DESENHOS DAS DANÇAS

As danças são estruturadas em coreografias executadas no xirê , ou durante a incorporação. As danças são muitos e diferentes e só uma longa convivência permite reconhece-las. Como pude observar, os movimentos são os mesmos que repetem as características dos orixás. A mudança da coreografia acontece porque mudam as cantigas. A forma coreografica de algumas repetem-se, por isso tentarei encontrar o sentido simbólico delas.
Primeira entre todas, é a forma do círculo, a antiga roda sagrada, que pode ser encontrada em várias culturas; de fato, em todas as danças extáticas, os dançarinos rodam em torno de um centro, ao tempo em que rodam também sobre si mesmos num duplo movimento de rotação e translação.
A forma do círculo tem uma grande importância na África, Neumann (1981:214), simbolizando a Grande Mãe, que em si contém os elementos masculinos e femininos. Por isso as coreografias referentes as divindades da Água: Oxum e Iemanjá possuem um movimento circular.
É interessante observar que as danças extáticas rodam em sentido anti-horário, mas é difícil dar uma interpretação desse fato, porque, nas entrevistas as filhas só diziam que é bom para o espirito. Este movimento ao contrário, é feito no mundo inteiro, talvez porque abre a brecha entre sagrado e profano, simbolizando a volta a origem.
As danças começam em um grande e lento círculo que vai diminuindo ao longo do ritual com giros sobre si, feitos durante as incorporações, a simbolizar uma direção para si mesmo.
Como o círculo, a espiral é um símbolo antiquíssimo, encontrado em todas as culturas, e também na natureza, incluindo a molécula do DNA, a espiral aparece nas rotações que as filhas-de-santo fazem sobre si mesmas, quando incorporam ao longo da performance. Esse mesmo movimento é repetido em várias danças. Assim fazendo uma analogia com a proibição do incesto para Levi-Strauss, pode-se dizer que a espiral possui um caráter universal que é o próprio DNA da espécie-sapiens e um caráter particular que possui significados diversos dependendo da cultura.
A espiral é símbolo da comunicação (Santos:1977; Pelosini:1994). Assim, quando o orixá possui o corpo da filha-de-santo , realiza-se uma comunicação entre o homem e a divindade. Enquanto o corpo material vira sobre si mesmo, a energia do orixá penetra, virando do outro lado e entra no corpo, formando uma dupla espiral, como me foi explicado por uma mãe de santo, Mãe Teresinha da Liberdade. Não é por acaso que Exu, a divindade da comunicação, roda sobre si mesmo desse modo, quando se transforma num ciclone e acaba com tudo que está em sua volta, porque ele é a própria comunicação, simbolizada pela espiral, que expressa o movimento circular que, saindo do ponto da origem, movimenta-se ao infinito. Ela expressa a evolução a partir de um centro; simboliza a vida, porque indica o movimento numa unidade de ordem ou, ao inverso, a permanência do ser na mobilidade. Durand (1972) sugere que, simboliza a permanência do ser, através das flutuações da mudança da vida.
Segundo Pelosini (1994:181): a função simbólica das rotações helicoidais seria a de aproximar, por etapas, o homem ao infinito e juntar a terra ao céu. Essas inter-relações, entre o corpo humano (microcosmo) e o universo (macrocosmo), entre o infinitamente pequeno (microcosmo) e o espaço interstelar infinitamente grande (macrocosmo), já eram, em muitos casos, conhecidas ou percebidas por civilizações do passado, que as tinham codificadas em mitos e símbolos de espiral.
A espiral poderia simbolizar a procura do próprio espírito ao longo do difícil caminho espiritual. Partindo de um ponto firme, alcança, com voltas ao mundo do sagrado. A mesma forma encontra-se na dupla hélice do DNA, que é responsável não só pela programação da atividade celular, mas também pela hereditariedade das características genéticas e da própria evolução das especies: é a verdadeira quintessência da vida, é o eterno que sempre se transmite. Essa molécula é o mensageiro da hereditariedade biológica e das características hereditárias, assim como Exu é o mensageiro entre os homens e as divindades. Não é por acaso que, no candomblé, a espiral encontra-se no okoto , associado a Exu, orixá que expressa a dinâmica da vida, o movimento interno na criação e na expansão do mundo. Segundo Santos (1977:133), o okóto é uma espécie de caracol e aparece nos motivos das esculturas e como emblema entre os que fazem parte do culto de Exu. Ele consiste numa concha cônica cuja base é aberta, utilizada como um pião. O okóto representa a história ossificada do desenvolvimento do caracol e reflete a regra, segundo a qual, se deu o processo de crescimento espiritual; um crescimento constante e proporcional, uma continuidade evolutiva de ritmo regular. O okóto simboliza um processo de crescimento. É o pião que, apoiado na ponta do cone um só pé, um único ponto de apoio rola, espiraladamente, abre-se a cada revolução mais e mais, até converter-se numa circunferência aberta para o infinito.
Assim como o DNA é o significante e o significado da vida - todas as funções vitais da célula dependem dele, sobretudo a reprodução, ou seja, o perpetuar-se da vida. Exu é o princípio dinâmico da evolução e o mensageiro entre o homem e a divindade, sem ele, nada pode ser comprido.

CONCLUSÕES

Os versos de Senghor esclarecem a importância da dança, a dança é a possibilidade de conhecer o outro, dançando exprimem-se o lado mais profundo do ser e também liga-se na essência do outro. Um outro que pode ser preso dentro de nós dançando-o ou pode ser olhado como um espelho. Eis o conceito do "duplo", a sacerdotisa-dançarina está criando o outro e também neste processo de criação-incorporação o vivência intensamente em si mesma e adquire a sua pulsação-ritmo interno.
A arte africana está ligada profundamente á religião. O belo não é só prazer estético, mas é percebido como uma participação a um sistema dinâmico de comunicação entre o mundo visível e o invisível. A arte não existe como conceito para se, mas adquire sentido só na determinação da visão dinâmica do mundo africano. Uma das muitas palavras ioruba para dizer "arte" é ogbon, "sabedoria", para indicar que o artista é um sábio que escuta as mensagens da natureza. Os artistas-sacerdotes tem a tarefa de perceber e transmitir as comunicações das divindades com a criação simbólica no ritual.
A dança tem um sentido particular porque é a expressão da divindade e da identidade mais verdadeira da filha ou do filho-de-santo. Cada um possui a própria "identidade-sonora", o próprio duplo no Orun, que o fiel encontra no momento da possessão e que aprende a reconhecer e a conhecer através da dança e da música. Em várias culturas é pelo corpo que o homem começa o caminho do conhecimento e o papel por ele desempenhado no cosmo e na sociedade. Sendo no corpo que o homem vivência a própria experiência da vida e junta as várias informações simbólicas sobre o mundo, é no corpo divino, que vivenciando as energias sagradas, ele pode se comunicar com o sagrado, pode juntar o lado sensível com aquele material, porque não dados cognitivos, mas as cores, as formas, os sentimentos internos dão forma á matéria. Os ritmos dos atabaques levam o fiel numa viagem simbólica que o-transforma, porque toma posse do tempo que flui e do espaço que não tem mais lugar definido, o fiel volta ao tempo da origem. A percussão dos atabaques, como sustenta Duplan é a materialização do tempo e tomar consciência do tempo é conhecer a nossa linhagem, é saber de ser um aneu de uma corrente infinita que originou-se com nosso ancestral-mitico. O corpo age no mundo sagrado através dos movimentos da dança e interagindo com o espaço simbólico e com o tempo da origem. Espaço que refere-se a uma tipografia sagrada onde cada objeto, cada planta remetem a outros planos da existência. Assim como a coluna sagrada representa a ligação entre o mundo sobrenatural, o orum e o mundo da terra, o aiyé, os fundamentos remetem ao tempo da origem, na mesma forma a coluna humana liga a cabeça, o ori, orum, com os pés, nossos fundamento pessoal, nossa ancestralidade, voltando durante a possessão ao tempo do mito quando ainda não existia a interrupção entre o mundo dos homens e aquele dos deuses. Depois do momento do "chamado do orixá", o orixá se apossa da materialidade do corpo e transforma o fiel em divindade, o fiel torna-se o seu duplo divino. As danças afirmam assim a presenca da divindade entre os homens. A dança e a música expressam a identidade sonora e corporal da divindade numa única imagem de conteúdo e forma. Essa unidade adquirida só naquele momento a-temporal e a-espacial, pelo corpo atravessado pelas energias divinas, energias que encontram-se tanto no macrocosmo como no microcosmo. Unidade construída e expressada só através um simbolismo corporal, porque os conteúdos são tão profundos que não poderiam ser comunicados através das palavras, o corpo tem que vivenciar a "origem" e não conhece-la como meros conceitos frios. Os sinais não-verbais remetem a imagens e sentimentos e por isso eles possuem um grande poder. Como afirma Firth (1970): " os gestos tem um significado, uma faculdade, um efeito restaurador, um tipo de forca creativa que só as palavras não podem dar".
Retomando Prandi (1991): "As religiões do transe também operam de modo a integrar as dimensões íntimas e públicas do eu social, podendo se valer, como no candomblé, do uso de papeis referidos religiosamente, eus sagrados, que aparecem como se fossem independentes do eu social da pessoa".
As danças dos orixás tem todas as características das danças africanas, reconhecidas através da importância do grupo, que fortifica a ligação entre os fiéis e tem a função de um espelho que reflete a própria imagem-identidade; a relação com o elemento terra, a mãe terra que sustenta seus filhos e e manda energias por eles sendo também o lugar dos ancestrais; a importância do ritmo, que tem a função de chamar a divindade e de organizar a desordem a nível macrocósmico e a nível microcósmico; a simplicidade dos movimentos que permitem as suas repetições cíclicas que ajudam a incorporação dos do deus e a sua fixação no corpo do fiel .

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