VIVER
DIONISO
- UMA
EXPERIÊNCIA ARQUETÍPICA -
Mônica Helena
Weirich de Santana
Psicóloga Clínica,
Arteterapeuta, Especialista em Dependência Química, Especialista em Psicologia
Junguiana pelo IBMR, Analista Trainee do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro.
RESUMO
O presente texto
apresenta uma visão do deus grego Dioniso como uma força arquetípica presente
na psique humana desde a antiguidade até a atualidade. Esta força, quando
vivenciada pelas pessoas na época presente, assim como era na Grécia antiga,
pode trazer benefícios psicológicos através da compensação entre a atitude da
consciência e os conteúdos do inconsciente.
INTRODUÇÃO
Dioniso é realmente um deus misterioso, complexo,
múltiplo e paradoxal. Quanto mais se estuda sobre ele, mais há a descobrir e
estudar, num paralelo com seus mistérios sobre a morte e renascimento, sobre a
vida que sempre se renova. Ele é o estranho estrangeiro, que simplesmente surge
e impõe sua força arrebatadora, que Kerényi (2002) denomina zoé, a vida
infinita, de todos os seres viventes, energia coletiva que não admite a
experiência de aniquilação. Esta é a essência dos rituais da religião
dionisíaca, que expressavam a alternância das estações e ciclos da natureza,
assim como a trama estrutural do deus morto e ressuscitado, que simboliza,
segundo Chevalier e Gheerbrant, "o esforço de espiritualização da criatura
viva, desde a planta até o êxtase: Deus da árvore, do bode, do fervor e da
união mística, ele sintetiza, em seu mito, toda a história de uma
evolução". (1994:341).
Dioniso possui vários nomes e inúmeros epítetos, como
menção aos locais de seu culto, a seus atributos e às variações de seu mito.
São mais conhecidos os nomes Dioniso e Baco. Segundo Junito Brandão (1995), o
teônimo Diónysos não apresenta etimologia definida, sendo possivelmente
composto por Dio, céu em trácio e Nysa, filho, significando então "filho
do céu". Baco, ou Bákkhos, aparece na literatura grega a partir do século
V a.C. com Heródoto e Sófocles, em Édipo Rei, significando "ser tomado de
um delírio sagrado", de onde deriva a palavra Bacante.
Outros nomes que freqüentemente aparecem na literatura
são Iaco, Brômio e Zagreu. Iaco, em grego Íakkhos, "grande grito", é
considerado um introdutor dos mistérios dionisíacos no cortejo dos Iniciados,
que antecedia a multidão de peregrinos a Elêusis. Brômio, etimologicamente
ligado a brómos, estremecimento, frêmito, ruido, traz a denominação de "ruidoso,
fremente, palpitante" que se associava ao transe dos ritos dionisíacos.
Zagreu é o nome cretense de Dioniso, significando "o grande caçador",
em sua mitologia mais arcaica, que os Órficos consideram o primeiro Dioniso.
Zagreu é comparado em Creta a Zeus ctoniano ou subterrâneo ou ainda a Hades, o
senhor dos mundos inferiores, por sua ligação com a morte e o reino dos mortos
Entre os epítetos de Dioniso estão o jovem deus, o deus
nascido duas vezes, o deus triturador de homens, o louco, o Delirante, o
Fremente, o Murmurante, Bakkheîos (o que pratica loucura), Lýsios (libertador),
Meilíkhios (suave e doce como o mel), Bougenés (filho da vaca ou boi honrado),
Kissós (florente de hera), Oínopos (cor de vinho), Eleútheros (filho de Zeus),
Diòs phós (luz de Zeus), Kretogenés (nascido em Creta), Melanáigis (o da negra
pele de cabra), Omádio (comedor de carne crua), Pyrísporos (nascido do fogo),
Évio e ainda Ditirambo, identificando-o com seus cantos rituais. De acordo com
alguns rituais, recebia também a denominação de Diónysos Orthós, o
"Dioniso Ereto", cuja representação era um falo e Diónysos Pélekys,
"Bipene", a machadinha de dois gumes utilizada nos rituais de
sacrifício. Homero o chama de mainómenos Diónysos, o delirante Dioniso, mesmo
adjetivo que Platão utiliza para o vinho, pois a embriaguez dionisíaca parecia
comparável à bebedeira.
Estes diversos nomes e atributos tornam mais evidente a
natureza paradoxal de Dioniso, com seus aspectos luminosos e sombrios
simultâneos. Segundo Kerényi (2002), em Leis, Platão menciona duas dádivas da
estação da vindima, da segunda metade de julho ao começo de setembro: os frutos
e algo mais sublime, o júbilo dionisíaco. A pura luz do fim do verão é considerada
pelos gregos dionisíaca ou o próprio Dioniso.
Otto, em citação de Kerényi (2002), sustenta que o
divino ser de Dioniso, sua natureza básica, é a loucura, mas uma loucura
inerente ao próprio mundo, não um estado degenerativo, mas algo que acompanha a
perfeita saúde, isto é, a própria vida em oposição e contato permanente com a
possibilidade da morte. São as profundezas primitivas onde moram as forças da
vida, cujo contato pode tanto destruir quanto beneficiar. É a fusão de
consciente e inconsciente num único transbordamento, estado em que é possível
contemplar a visão de Dioniso.
DIONISO, IMAGEM ARQUETÍPICA DA TRANSCENDÊNCIA
Vem, Dioniso Herói
Ao templo à
beira-mar
Vem com as Graças
ao puro templo
Vem raivando, com
os pés de touro
Cântico das
Dezesseis Mulheres de Élis (Plutarco)
Junito Brandão narra da seguinte maneira o mito de
Dioniso: "Dos amores de Zeus e Perséfone nasceu o primeiro Dioniso,
chamado mais comumente de Zagreu. Preferido do pai dos deuses e dos homens,
estava destinado a sucedê-lo no governo do mundo, mas o destino decidiu o
contrário. Para proteger o filho dos ciúmes de sua esposa Hera, Zeus confiou-o
aos cuidados de Apolo e dos Curetes, que o esconderam nas florestas do Parnaso.
Hera, mesmo assim, descobriu o paradeiro do jovem deus e encarregou os Titãs de
raptá-lo e matá-lo. Com o rosto polvilhado de gesso, a fim de não se darem a
conhecer, os Titãs atraíram o pequenino Zagreu com brinquedos místicos:
ossinhos, pião, carrapeta, "crepundia" e espelho. De posse do filho
de Zeus, os enviados de Hera fizeram-no em pedaços; cozinharam-lhe as carnes
num caldeirão e as devoraram. Zeus fulminou os Titãs e de suas cinzas nasceram
os homens, o que explica no ser humano os dois lados: o bem e o mal. A nossa
parte titânica é a matriz do mal, mas, como os Titãs haviam devorado Dioniso, a
este se deve o que há de bom em cada um de nós. [...] Atená, outros dizem que
Deméter, salvou-lhe o coração que ainda palpitava. Engolindo-o, a princesa
tebana Sêmele tornou-se grávida do segundo Dioniso. O mito possui muitas
variantes, principalmente aquela segundo a qual fora Zeus quem engolira o coração
do filho, antes de fecundar Sêmele. [...] Tendo, pois, engolido o coração de Zagreu
ou fecundada por Zeus, Sêmele ficou grávida do segundo Dioniso. Hera, no entanto,
estava vigilante. Ao ter conhecimento das relações amorosas de Sêmele com o
esposo, resolveu eliminá-la. Transformando-se na ama da princesa tebana, aconselhou-a
a pedir ao amante que se lhe apresentasse em todo o seu esplendor. O deus
advertiu Sêmele de que semelhante pedido lhe seria funesto, uma vez que um mortal,
revestido da matéria, não tem estrutura para suportar a epifania de um deus imortal.
Mas, como havia jurado pelas águas do rio Estige jamais contrariar-lhe os desejos,
Zeus apresentou-se-lhe com seus raios e trovões. O palácio da princesa se incendiou
e esta morreu carbonizada. O feto, o futuro Dioniso, foi salvo por gesto dramático
do pai dos deuses e dos homens: Zeus recolheu apressadamente do ventre da
amante o fruto inacabado de seus amores e colocou-o em sua coxa, até que se completasse
a gestação normal. Tão logo nasceu o filho de Zeus, Hermes o recolheu e levou-o
às escondidas para a corte de Átamas, rei beócio de Queronéia, casado com a
irmã de Sêmele, Ino, a quem o menino foi entregue. Irritada com a acolhida ao
filho adulterino do esposo, Hera enlouqueceu o casal. Ino lançou seu filho caçula,
Melicertes, num caldeirão de água fervendo, enquanto Átamas, com um venábulo,
matava o mais velho, Learco, tendo-o confundido com um veado. Ino, em seguida,
atirou-se ao mar com o cadáver de Melicertes e Átamas foi banido da Beócia.
Temendo novo estratagema de Hera, Zeus transformou o filho em bode e mandou que
Hermes o levasse, dessa feita, para o monte Nisa, onde foi confiado aos cuidados
das Ninfas e dos Sátiros, que lá habitavam numa gruta profunda".
(1995:117-20).
Há variações em torno do mito do duplo nascimento de
Dioniso, sendo que seu segundo nascimento, a partir da união de Zeus e Sêmele,
com o término da gestação na coxa de Zeus é o mais célebre. Também para o
mitologema do nascimento a partir da coxa há uma variação importante, citada
por Eurípedes em As Bacantes:
"Quando Zeus extinguiu o fogo de seu raio e
transportou para o Olimpo o deus-menino, Hera tentou precipitá-lo das alturas
celestiais; Zeus, como grande deus que é, opôs à intenção da deusa um artifício
condizente com sua condição divina: tirou do éter sobreposto à terra-mãe uma
porção suficiente e fez com ela um simulacro igual à imagem de Dioniso e o
entregou a Hera como seu refém, suavizando assim o ciúme da esposa. Mais tarde
pensou-se que o deus recém nascido tinha sido enxertado na coxa de Zeus por
causa de um mal-entendido com palavras". (s/d: 220).
O autor continua o verso explicando que a circunstância
do deus ter sido refém de Hera, embora somente em aparência, é a origem da
versão mais divulgada do mito. Isto se deveu ao jogo de palavras que, em grego,
são semelhantes, ou seja, hômeros (refém) e mêros (coxa). O simbolismo contido
nos principais mitologemas é muito rico, dando origem aos ritos religiosos do
dionisismo, a religião ou seita que veio revolucionar espiritualmente a
história religiosa da Grécia. Kerényi (2002), coloca que, na genealogia dos
deuses, Dioniso assumiu seu lugar depois de Cronos e Zeus, num paralelo com os
estágios da alimentação dos deuses, pois com Cronos
e Zeus foi criado o hidromel e, com Dioniso, a dádiva do vinho. Como um deus da
vegetação, Dioniso mantém estreita relação com o sofrimento, a morte, a
ressurreição e a iniciação, sendo dinâmico e soteriológico, isto é, trata da
salvação humana. Além disso, como uma
criança abandonada após o nascimento, Dioniso representa a criança primordial,
em sua absoluta e invulnerável solidão cósmica e em sua unicidade. O
aparecimento de tal criança coincide com um momento de criação de um mundo
novo, de uma nova época histórica.
M. Eliade, em seu Tratado de História das Religiões,
comenta que:
"Tanto as
grandes correntes da religiosidade popular como as sociedades secretas dos
mistérios egeo-orientais se cristalizaram em volta das chamadas divindades da vegetação,
que são primordialmente divindades dramáticas, responsáveis pelo destino do
homem, conhecendo, como ele, as paixões, o sofrimento e a morte.
Jamais a divindade se aproximou tanto dos homens. [...]
As divindades soteriológicas partilham os sofrimentos desta humanidade, morrem
e ressuscitam para resgatá-la. Esta mesma 'sede de concreto' que sempre
empurrou para segundo plano as divindades celestes - longínquas, impassíveis,
indiferentes ao drama cotidiano - manifesta-se na importância concedida ao
filho do deus celeste (Dioniso, Osíris, Alein, etc.). Na maior parte das vezes
o filho reclama sua paternidade celeste; todavia, não é essa descendência que
justifica o papel capital que ele desempenha na história das religiões, mas a
sua 'humanidade', o fato de se ter integrado definitivamente na condição
humana, ainda que consiga ultrapassá-la pela ressurreição periódica".
(1993:89-90).
Na primeira parte do mito há o sincretismo com o
orfismo, seita que valorizava os ritos de morte e renascimento de
Dioniso-Zagreu, proveniente de mitos mais antigos, que remontam ao período
minóico e anterior. Kerényi (2002) menciona que foi encontrada uma plaqueta em Pilos,
localidade situada na esfera da cultura minóica, com o nome do deus,
di-wo-nu-so-jo (Dionysoio) na escrita Linear B, anterior ao grego. Nesta mesma
localidade também foi encontrado um documento sobre o deus Eleuthér, filho de
Zeus, a quem eram sacrificados os touros, identificado com Dioniso. Este texto
do século XIII a.C. já documenta o culto dionisíaco, a linhagem do deus e seus
rituais. Em Creta, uma placa encontrada no palácio de Cnossos traz o nome
pe-te-u (Pentheús), que significa "cheio de sofrimento". Nas versões
do mito que chegaram até nós, especialmente a tragédia As Bacantes, Penteu é um
adversário do deus, a quem faz sofrer e é punido com sofrimento.
Originariamente, o sofredor, "Penteu", era o próprio Dioniso e estas
alterações ou adaptações aconteceram por causa da relação entre o homem e os deuses,
pois no período histórico os gregos não davam a um homem um nome que o
relacionasse tão intimamente com o deus quanto no período minóico.
Os ritos minóicos e gregos na época da vindima evocam a
morte e renascimento de Dioniso. Homero menciona os apanhadores de uvas que
entoavam cantos de lamentação e Hesíodo indica o tempo da vindima e a
fabricação do vinho, mas ambos os poetas excluem de suas obras a etapa do
lagar, o espremer das uvas, fato que se repete por toda a literatura do período
clássico. Os espremedores de vinho cantavam o mélos epilénion, uma canção camponesa
dedicada ao lagar, que envolvia a morte de Dioniso. Estes cantos eram muito
tristes, pois invocavam a dilaceração do deus, assim como a própria vinha, que
"morre" no inverno para renascer no início da primavera. Dioniso
representa esta força de vida que faz brotar novamente Publicado em a vinha,
como uma manifestação da realidade viva, da vida que se regenera
periodicamente.
M. Eliade (1993), menciona a concepção primitiva da
vinha como árvore cósmica do conhecimento e da redenção. O vinho seria a
incorporação da luz, da sabedoria e da pureza, que os textos clássicos trazem
como a "dádiva" de Dioniso. Em As Bacantes, Tirésias, o velho sábio, canta
o vinho como aquele que cura as amarguras da triste raça humana, dá paz e
esquecimento dos males cotidianos, sendo Dioniso um profeta cujo dom
divinatório é revelado aos homens em seus delírios, quando ele penetra nos
corpos humanos e, embriagando-os, revela o que está por vir. Aqui há uma idéia
de que a "embriaguez" dionisíaca seria induzida por outros fatores presentes
nos rituais, como o transe, que leva ao êxtase e ao entusiasmo, seguindo-se a
liberação e, por fim, a purificação. A "embriaguez" sagrada permitia
participar, ainda que de maneira imperfeita, da natureza divina. Ela realizava
o paradoxo de viver uma existência plena e, ao mesmo tempo, se tornar; de ser
força e equilíbrio.
Junito Brandão (1995), denomina Dioniso deus do êxtase
e entusiasmo, dois estados próprios da religião dionisíaca que levavam os
humanos a estarem mais próximos do deus.
Êxtase, do grego ekstasis, é um estado da alma em que
os sentidos se desprendem das coisas materiais, absorvendo-se no enlevo e na
contemplação interior; um arrebatamento dos sentidos causado por uma grande
admiração ou por um vivíssimo prazer que absorve todo e qualquer sentimento, um
estado de inspiração absoluta. Entusiasmo, do grego enthousiasmos, é a excitação
da alma quando admira excessivamente, paixão viva, arrebatamento, dedicação e exaltação
criadora. Entusiasmo significa, além disso, "estar pleno de deus", de
acordo com sua origem etimológica a partir da palavra grega theos, deus. Por
isso os mais importantes filósofos, poetas e artistas da Grécia cantam a
importância de Dioniso e de seu culto.
Não é possível afirmar que a religião dionisíaca
pregasse a crença na reencarnação, mas é certo que continha a mensagem de
salvação após a morte, com a possibilidade de transcendência, o que era não só
uma revolução em relação à antiga religião homérica, mas também algo muito confortador
para o homem. Dioniso é mais do que o deus sofredor, é o deus trágico como nenhum
outro. Seus ritos religiosos garantiam que a morte não é o fim de tudo, pois o
fato de morrer e renascer levava seus fiéis seguidores a crer que a alma vive
para sempre. Dioniso, mais do que Perséfone, representa aquele que venceu a
morte e, em sua ressurreição, ele simboliza a Publicado em encarnação da vida,
por isso tornou-se o centro da crença na imortalidade. M. Eliade (1993) menciona
que todas as estatuetas de Dioniso encontradas nos túmulos beócios possuem um
ovo na mão, sinal de regresso à vida. Edith Hamilton cita que o escritor grego
Plutarco, por volta do ano 80 d.C. escreveu a seguinte carta à sua mulher a
respeito da morte de uma filha de ambos, ainda criança:
"Quanto àquilo que ouviste, querida esposa, no
sentido de que, uma vez separado do corpo, o espírito se transforma em nada e
nada sente, sei que não acreditas em tais afirmações, em nome das promessas
sagradas e fiéis contidas nos Mistérios de Baco, que conhecemos pelo fato de
pertencermos a esta irmandade religiosa. Temos a firme certeza de uma verdade
inquestionável: nossa alma é incorruptível e imortal. Para nós, os mortos vão
para um lugar melhor, onde viverão mais felizes do que foram aqui.
Comportemo-nos de acordo com essa crença, ordenando em função dela nossa vida
exterior, ao mesmo tempo em que, no íntimo, tudo deve ser mais puro, mais
sábio, incorruptível". (1995:76).
Rituais de sacrifício e desmembramento de animais
também eram realizados para lembrar a morte trágica do deus, que aparecem nos
mitos e, posteriormente, nas tragédias. O nome Dioniso-Zagreu está relacionado
com a caça da presa viva, para que fosse posteriormente dilacerada e sua carne
comida crua pelos participantes do ritual, revivendo assim a faceta da vida selvagem
que Dioniso também representa. Kerényi (2002), menciona que, em tempos muito arcaicos,
uma criança, filha de uma das mulheres dedicadas a Dioniso, era sacrificada
nestes rituais de desmembramento, o que passou a ser feito posteriormente com
animais ou então sacrifícios simbólicos, com a evolução cultural do povo grego.
Vários outros mitos estão relacionados com a chegada de
Dioniso aos locais onde ele desejava que seu culto fosse instituído. Já adulto,
Dioniso viajava pelo mundo então conhecido para levar os mistérios da nova
devoção, ensinar o cultivo da vinha e a preparação do vinho. Os mitos relatam
que, ao voltar para a Grécia, encontra oposição em várias regiões além de
Tebas, conforme é narrado na tragédia As Bacantes. Licurgo, rei da Trácia,
Perseu, rei de Argos e Mínias, rei de Orcômeno, na região da Beócia, opuseram-se
ao chamado de Dioniso às Bacantes e foram cruelmente punidos. Estas histórias
de chegada e resistência ajudaram a estruturar o culto dionisíaco fora da
Ática, pois isto faz parte da experiência religiosa que o deus suscitava, colocando
em risco a antiga religião olímpica. Atenas tornou-se, posteriormente, o mais
Publicado em importante local de festejos dionisíacos da Grécia, mas também aí
demorou a chegar, pois tais festejos ficaram bastante tempo restritos às áreas
camponesas.
Dioniso é o deus da epifania, da chegada repentina, o
que, na Grécia, era conhecido também como epidemia, a incursão de algo
avassalador, o aflorar imprevisível de uma nova experiência. O culto dionisíaco
pode ser considerado também como uma religião missionária, precursora do
Cristianismo, pelas inúmeras histórias de chegada e peregrinação. Graças à riqueza
cultural de Atenas, assim como por sua democracia, o ano festivo dionisíaco da
cidade foi o mais importante da Grécia. As comunidades vinicultoras da Ática
preservavam a memória do fato de que tiveram que aprender a fazer vinho, mas
não aprenderam de modo profano, mas de acordo com os mistérios, pois não
poderiam ter inventado nem compreendido por si mesmas estas técnicas. Kerényi
(2002), menciona que o mito segundo o qual Dioniso veio à Ática trazendo a
vinicultura é mais antigo que o de Dioniso nascido em Tebas. Dioniso, trazendo
para a Ática a vinicultura, foi recebido como hóspede na casa do herói Sêmaco,
onde foi cuidado pelas mulheres. O relato mítico está de acordo com os usos consagrados
pelos quais as mulheres desempenhavam o papel principal no culto de Dioniso e todas
as sacerdotisas do deus eram consideradas sucessoras das filhas de Sêmaco.
Outra versão deste mito é a recepção de Dioniso pela filha de Icário, Erígone,
que se tornou a primeira mulher de Dioniso. Estes mitos e outras versões tornam
verossímil que Dioniso tenha sido levado a Atenas por mulheres, sendo as
mulheres de Atenas as guardiãs do culto dionisíaco na cidade.
Elas tomavam posse do deus por meio da cerimônia de sua
união com a rainha, que representava a união de Dioniso e Erígone e, assim, a
cidade participava desta posse. Em Atenas as mulheres eram as senhoras do
vinho, sendo ativas no Lénaion, o santuário de Dioniso, que também servia de
lagar público e era sagrado. Elas eram identificadas como aquelas a quem,
depois do deus, o vinho era devido.
Os festivais dionisíacos eram variados e complexos, de
acordo com a região em que se realizavam. Junito Brandão (1995), destaca as
Dionísias Rurais, Lenéias, Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias e
Antestérias. As Dionísias Rurais eram celebradas na segunda metade de dezembro
aproximadamente, nos demos da Ática. A cerimônia central constituía-se numa
alegre e barulhenta procissão com cantos e danças, em que se transportava um
enorme falo e cujos Publicado em participantes usavam máscaras ou disfarçavam-se
de animais, em alusão à fertilidade dos campos. No século V, estas falofórias,
como eram chamadas, foram enriquecidas com concursos de tragédias e comédias,
pois em vários demos havia bons teatros.
As Lenéias eram celebradas no inverno, correspondendo
ao final de janeiro e início de fevereiro. Este nome alude ao Lénaion,
santuário de Dioniso, onde havia também um teatro. A respeito desta festa
sabe-se muito pouco, apenas que Dioniso era invocado por meio do daduco, o
"condutor de tochas"; o sacerdote e os participantes também gritavam
para provocar a epifania do deus, que deveria presidir as festividades.
As Dionísias Urbanas celebravam-se na primavera, no
final de março e duravam seis dias. No primeiro dia havia uma grande procissão
com a participação de toda a cidade, em que se transportava a estátua do deus
de seu templo até um antigo templo de Baco. Nos dois dias seguintes
realizavam-se concursos de Coros Ditirâmbicos e, nos três últimos dias, havia concursos
dramáticos numa tetralogia, isto é, três tragédias e um drama satírico. Junito
Brandão (1995), cita Aristóteles, informando que a tragédia teve origem nos
solistas do ditirambo, num processo de transformação dos dramas satíricos, que
passaram de fábulas curtas com tom jocoso a assuntos mais elevados e trágicos.
O ato sacrificial da morte de Dioniso, que representa a indestrutibilidade da
vida em meio à destruição deu origem à tragédia grega, sendo o mais universal
dos ritos dionisíacos.
As Antestérias marcavam o elemento fundamental da
religião dionisíaca, a transformação, a que seus adoradores eram transportados
pelo êxtase e entusiasmo, rompendo as barreiras sociais cotidianas. As danças
vertiginosas faziam com que os participantes saíssem de si para que o deus os
tomasse, o "estar pleno de deus" e, assim, superassem a condição
humana.
As Antestérias eram denominadas de "festa das
flores", pois se realizavam na primavera, com o rejuvenescimento da
natureza. Em seu primeiro dia, denominado Pithoiguía, abriam-se os tonéis de
terracota em que se guardava o vinho, transportando-os ao santuário de Dioniso
para serem dessacralizados e bebidos pela população. O segundo dia
denominava-se Khóes, consagrado aos concursos de beberrões. Também se realizava
uma procissão para comemorar a chegada do deus à pólis, em que Dioniso era
representado chegando em uma embarcação, de acordo com seus mitos de chegada.
Nesta embarcação era levado também um touro destinado ao sacrifício e, ao
Publicado em chegar ao santuário, consumava-se a união da rainha com o
sacerdote, que representava o deus e simbolizava a união deste com toda a
pólis.
O terceiro dia recebia o nome de Khýtroi, vasos de
terracota consagrados aos mortos e às Queres. Era um dia nefasto, em que todos
oravam pelos mortos e pela Queres, que vagavam pela cidade. Oferecia-se a
Hermes, deus psicopompo, uma sopa com todas as espécies de sementes, pois os
mortos estavam ligados à fertilidade da terra e subiam ao mundo em busca de agradecimento
pelas riquezas que proporcionavam aos vivos. Quando a noite chegava todos gritavam:
"Retirai-vos, Queres, as Antestérias terminaram".
A liberdade concedida pelos festejos dionisíacos
favorecia a adesão das mulheres, dos pobres, camponeses e escravos aos cultos.
De fato, Dioniso é o deus das mulheres e as Antestérias simbolizavam sua
libertação e valorização, um momento em que saíam da condição de repressão e
humilhação a que estavam atreladas. As mulheres representavam as nutrizes míticas
do deus. Seu culto também exigia a presença do thíaso, o grupo de pessoas que celebrava
o sacrifício em honra do deus, na esperança de renovação espiritual. Em suas
festas, muitas vezes o aspecto sombrio do deus precedia o aspecto luminoso,
catártico e purificador, de crença na imortalidade.
Kerényi reproduz em sua obra uma citação de Otto sobre
a importância das mulheres nos ritos dionisíacos:
"Nunca devemos esquecer que o mundo dionisíaco é,
acima de tudo, um mundo de mulheres. As mulheres aviventam e nutrem Dioniso.
Mulheres o acompanham onde quer que ele esteja. Mulheres o assistem e são as
primeiras a ser dominadas por sua loucura. E isso explica por que o
genuinamente erótico se encontra apenas na periferia da paixão e da
libertinagem reveladas com tanto atrevimento nas bem conhecidas esculturas.
Muito mais importantes que o ato sexual são os atos de dar à luz e criar a
criança. O terrível trauma do parto, a selvageria que pertence à maternidade em
sua forma primal, selvageria essa que pode irromper de forma alarmante não
apenas nos animais - tudo isso manifesta a natureza íntima da loucura
dionisíaca: o encrespar-se da essência da vida cercada pelas tempestades da
morte. Desde quando esse tumulto latente no mais fundo das profundezas se dá a
conhecer, a plenitude do êxtase da vida, tocada pela agitação da loucura
dionisíaca, é capaz de romper todos os limites do arrebato em perigosa selvageria.
A condição dionisíaca é o fenômeno primal da vida, de que mesmo o homem pode
participar, em todos os momentos de nascimento de sua existência criativa".
(2002:116).
Nesta combinação de elementos sensuais, imanentes e
transcendentes, chegamos à união de Dioniso com aquela que foi eleita sua
esposa divina, a Senhora do Labirinto: Ariadne.
Em plaquetas de argila encontradas em Cnossos, vê-se
uma deusa e a seguinte inscrição: pa-si-te-o-i / me-ri / da-pu-ri-to-jo /
po-ti-ni-ja me-ri, "para todos os deuses, mel... para a senhora do
labirinto, mel...". Isto indica que ela foi uma grande deusa, pois recebe
tanto mel quanto os outros deuses. Vê-se também uma representação do labirinto,
que simbolizava a descida aos mundos inferiores e a volta para a luz. Em
Cnossos, um grande corredor com afrescos labirínticos em meandros leva para a
mais importante fonte de luz do palácio: um pátio com sete colunas, informando
o que o vocábulo da-pu-ri-to-jo significava para os minóicos: " um caminho
para a luz". Na cultura minóica eram oferecidos mel e danças em honra da
Senhora do Labirinto, sendo este traçado em forma de labirinto também uma pista
de danças rituais, que de fato existia e foi encontrada nas escavações
arqueológicas.
Na versão mítica mais conhecida, a Odisséia de Homero,
Ariadne era mortal e filha do maligno Minos, sendo o labirinto um lugar de
morte. Teseu foi salvo graças ao famoso fio que Ariadne lhe deu e esta,
apaixonada, acompanhou o príncipe estrangeiro. Isto foi um pecado e Ariadne foi
morta de parto por Ártemis. Esta história mostra uma relação muito próxima de Ariadne
com a Senhora do Labirinto, embora tenha sido humanizada. No período grego de Creta,
a deusa recebeu o nome de Arihágne, a "toda pura", sendo Ariadne uma
forma dialetal do idioma lá utilizado.
Kerényi (2002) sustenta que Ariadne não só representava
grandes deusas como Ártemis, Afrodite e Perséfone, mas que ela seria realmente
Ariadne e Perséfone em uma só pessoa, que deu à luz no mundo subterrâneo seu
filho Dioniso. Ariadne pertencia a Dioniso, como donzela e esposa e sua fuga
com Teseu foi não só uma traição ao deus como também um pecado contra o princípio
feminino, por isso foi punida por Ártemis. No porto marítimo de Falero há uma
festa em ação de graças por Ariadne ter sido "abandonada" por Teseu e
se unido a Dioniso, mas conta o mito que fora o próprio Dioniso, com auxílio de
Atená, que livrou o herói do risco de dominar completamente Ariadne e levá-la
para casa como sua esposa.
Em Argos há um altar onde eram feitas oferendas a
Ariadne como uma rainha do mundo subterrâneo, que os habitantes dizem ser seu
túmulo. Este mesmo local é um santuário Publicado em subterrâneo de Diónysos
Krésios, indicando que pertence à esfera da religião dionisíaca de Creta.
Nos mitos de Creta, o falecimento de Ariadne durante o
parto tem paralelismo com o parto prematuro de Sêmele, sendo que Ariadne não
deu à luz, mas foi enterrada em uma gruta sagrada com o filho no ventre,
levando consigo seu filho para o mundo subterrâneo e identificando-se com
Perséfone.
Dentre todos os deuses, Dioniso é o único que veio ao
mundo ainda como um feto, e um nascimento na morte é algo realmente místico.
Segundo Kerényi (2002), os Mistérios de Elêusis giravam em torno deste
nascimento e seu valor místico seria ainda maior se, como Sêmele, Ariadne tiver
dado à luz Dioniso. Em Cnossos, a dança ritual em homenagem à Senhora do Labirinto
era executada numa pista de danças e a Senhora localizava-se no centro deste
labirinto, que representava o mundo subterrâneo. A Senhora dava à luz um menino
misterioso que trazia a esperança de um retorno à luz.
Ariadne foi sem dúvida uma grande deusa lunar do mundo
Egeu e sua associação com Dioniso mostra sua grandeza. Tanto o fato de ter
vencido o Minotauro quanto a união com Dioniso em Naxos após o abandono por
Teseu demonstram a superação de estágios inferiores para atingir a
transcendência. Em Naxos acontece a ascenção aos céus de Ariadne, levada por Dioniso,
que lhe deu uma tiara de estrelas, a corona borealis. Kerényi relata assim esta
união transcendental:
"Assim como Dioniso é a realidade arquetípica de
zoé, Ariadne é a realidade arquetípica do dom da alma, do que faz de um vivente
um indivíduo. A alma é um elemento essencial de zoé, que dela carece para
transcender o estágio seminal. Zoéexige alma e toda concepção é psicogonia. Em
cada concepção nasce uma alma. A imagem deste evento é a mulher como
concebedora, que dá alma a viventes, e o reflexo desta imagem é a lua, sede
mitológica da alma. Em imagem e em reflexo, a fonte feminina de almas, para a
Creta Minóica, era a grande deusa, Réia e Perséfone - uma díade só em aparência,
fundamentalmente uma unidade. A imagem em questão é arquetípica, expressiva da
mesma unidade e continuidade que, em Elêusis, exprimem Deméter e Perséfone. Na
união das duas imagens arquetípicas, o casal divino, Dioniso e Ariadne,
representa a eterna passagem de zoé na, e pela, gênese dos viventes. Isso
acontece de contínuo, e sempre está a acontecer, de modo idêntico sempre e de
forma ininterrupta. Não apenas na religião grega, mas também no culto e na
mitologia minóica, zoé assume a forma masculina e a gênese das almas reveste a
feminina". (2002:108-9).
VIVENDO DIONISO - UMA VIAGEM AO MUNDO DO INCONSCIENTE
A ele clamai:
Cantaremos Dioniso
Nestes dias santos
-
O por doze meses
ausente.
Agora é o tempo,
agora as flores chegam.
Ditirambo - Canto
dionisíaco de triunfo.
Viver Dioniso em nosso mundo atual pode ser uma tarefa
difícil. Não são muitas as expressões genuínas da cultura dionisíaca na
sociedade atual e, muitas vezes, quando elas acontecem, evidencia-se o lado
negativo, sombrio, que não deixa margem para a purificação e transcendência
finais, mas somente para vivências de desmembramento ou dissociação. As festas
rave de que os jovens atualmente participam exemplificam bem esta questão, pois
duram dias, há uma dança frenética ao som de músicas hipnóticas e o consumo,
entre outras, de uma droga com nome sugestivo: ecstasy. Talvez seja possível
falar em um desejo de transcendência que seria atingido através das fortes
emoções e do transe, que não se completa, pois não há a profundidade de uma
experiência religiosa, no sentido amplo da palavra.
López-Pedraza (2002), enfatiza que atualmente predomina
nossa natureza titânica, permanecendo nossa parte dionisíaca extremamente
reprimida. Em algumas versões do mito, a parte recebida por nós de Dioniso é
justamente o coração, motivo simbólico muito rico para que se compreendam as
implicações que tal repressão traz ao homem moderno. O modelo socialmente
aceito e procurado por todos é titânico, ou seja, uma energia desproporcional e
desenfreada que se manifesta nas várias esferas de nossa vida: na política, nos
estudos, nos negócios, na religião, na ciência, na tecnologia, nas
comunicações, na arte, na sexualidade, na criminalidade, etc. A característica
titânica é a insolência agressiva e sem limites e sua presença na sociedade
contemporânea é opressiva. Para este autor, o titanismo aparece em teorias pré-concebidas,
atitudes missionárias, técnicas e fantasias de manipulação, estratégias astutas
e na destrutividade tão comum à natureza humana.
A sombra humana estaria então mais ligada ao titanismo
e à repressão do dionisíaco, o que é verdadeiro levando-se em consideração a
hýbris, o descomedimento e a soberba, próprios da natureza titânica. A manía
dionisíaca é de natureza diferente; pode ser violenta como é a força da vida e
do inconsciente, mas é também a fonte de criatividade, cultura, emotividade, sentimento,
consciência e transcendência. Dioniso é um deus humilde e sua experiência emocional
intensa pode ser purificadora.
A experiência dionisíaca pode nos conectar com os
níveis mais profundos da psique, com os complexos mais arcaicos da humanidade,
onde cenas de desmembramento ou dissociação podem ser vislumbradas. É
necessário ter o devido cuidado à aproximação destas imagens ou vivências, mas
a importância de experimentá-las num nível simbólico pode ser benéfica, como o faziam
os gregos em suas festas e cerimônias anuais em honra a Dioniso, em que todas as
atividades cotidianas eram interrompidas e até quem estivesse preso era
libertado para participar. A vivência do sofrimento e o contato com os níveis mais
profundos da psique podem prevenir o indivíduo de tornar-se alguém presunçoso e
vazio de emoções, embora possa parecer brilhante. Dioniso sofreu a morte por
desmembramento e a loucura para mostrar aos seres humanos que eles não precisam
passar por isso, assim como mostrar os meios para evitar ou curar a loucura.
Nos relatos mitológicos quem sofre e enlouquece é Dioniso e as tragédias gregas,
como As Bacantes, apontam para o fato de que, quando não atenta para isso, é o
homem quem se torna louco. Aos que se entregam, o milagre; aos que se defendem,
a loucura.
Há uma versão mitológica contando que Dioniso, ainda
adolescente e acometido de manía, é auxiliado por Réia, que o instrui a refazer
todos os passos que havia dado antes de sua crise, terminando por curá-lo. É
também Réia, a sábia Grande Mãe, que recompõe o menino Dioniso cortado em
pedaços pelos Titãs. Estas imagens evocam não só o princípio da cura pelo semelhante,
já que Dioniso, para ser curado, precisa percorrer o caminho anteriormente
feito, mas também princípio feminino, ou Anima, como intermediária entre
consciente e inconsciente.
Desta maneira, Dioniso pode ser visto como um grande
xamã, que passou por uma experiência extrema para ensinar e guiar os homens.
Jung (1974), discorrendo sobre os tipos apolíneo e dionisíaco,
coloca que os gregos tiveram que criar os deuses olímpicos para enfrentar o
medo enorme ante as forças titânicas da natureza e para poderem viver
serenamente sobre uma sombra profunda, a grande questão da Publicado em existência
humana. Para Jung, há sempre uma relação de compensação entre a religião de um povo
e seu comportamento vital, sendo os deuses olímpicos tão luminosos por causa da
obscuridade da alma grega. Haveria uma violenta discórdia na essência grega,
uma essência bárbara, também titânica. Daí a ânsia de redenção que dava aos
Mistérios do Elêusis extrema importância para a vida popular grega. Mediante
uma evolução gradual, a cultura grega pôde conjugar o dionisíaco e o apolíneo
no âmbito religioso, o que é algo raro para o homem moderno experimentar. No
homem civilizado, as forças instintivas, quando exteriorizadas, são muito mais
perigosas e destrutivas que os instintos do homem primitivo, que os pode viver continuamente
através de seus ritos religiosos. Isto era também função das celebrações e
ritos dionisíacos, pois, através deles, poderia vivenciar sua essência bárbara,
integrado na coletividade e unificado ao próprio inconsciente coletivo,
exercendo a dýnamis criadora, uma expansão máxima que une a todos, trazendo
poderosa compreensão universal que embriaga os sentidos.
Jung (1974), destaca a participação da função
percepção, sensível ou afetiva, e uma extroversão de sentimentos ligada à
percepção nas vivências dionisíacas. Elas detêm-se na percepção extrovertida e
desenvolvem os sentidos, os instintos e a afetividade, em contraposição à introversão,
que se detém na intuição de idéias, desenvolvendo a visão íntima. Hillman
(1997), tratando de Dioniso na obra de Jung, comenta que a consciência
analítica favorece o princípio masculino em detrimento do feminino, ou seja, a
luz, a ordem e a distância em lugar do envolvimento emocional. Este autor
sugere uma retificação no modo de entender a estrutura arquetípica dionisíaca,
que tem sido vista pela psiquiatria e psicologia tradicionais como inferior,
histérica, efeminada, desenfreada e perigosa, por ser considerada dissociativa
e enfatiza que a psicoterapia não pode trabalhar baseada em noções enganosas
sobre Dioniso, por ser ele o Senhor das Almas.
Dioniso pode ser comparado às profundezas do inconsciente
e desempenha papel central na tragédia, nos mistérios transformadores, nos
níveis instintivos e comunais da alma e na psique feminina. Para Hillman
(1997), interpretar mal sua manifestação poderia comprometer seriamente os
processos de cura, por ser Dioniso a imagem arquetípica da vida que sempre se renova.
De acordo com Hillman (1997), Jung lembra que Dioniso
era chamado de "o dividido", processo que pode ser vivenciado nos
sintomas psicossomáticos e aditivos, conversões histéricas, no câncer, no medo
de envelhecer e todas as condições desintegradoras incoerentes que possuem um
foco corporal, proporcionando, por outro lado, o despertar da consciência do corpo,
como sendo composto de elementos distintos: "nossos dilaceramentos podem
ser compreendidos como o tipo especial de renovação apresentado por
Dioniso". (1997:186).
López-Pedraza (2002), destaca a dança e a música
flamencas como uma manifestação do dionisíaco ainda vistas na atualidade. O
jazz também pode ser considerado assim. Há uma interessantíssima passagem do
filme Nelson Freire, de João Moreira Salles, em que o pianista genial vê uma
antiga fita de um dos astros do jazz e exclama que gostaria de saber tocar como
ele, de improviso. Esta imagem revela a necessidade do tipo apolíneo em
compensar sua vivência com algo de dionisíaco. Também o carnaval de rua, com
seus blocos ruidosos, sua irreverência, arrebatamento e intensidade de que
todos participam, numa explosão de alegria em que tudo é permitido durante
quatro dias. Os festejos do carnaval parecem-se bastante com as Antestérias,
pois há muita bebida, um Rei Momo e suas acompanhantes, concursos de fantasias
e tudo termina na quarta-feira de cinzas, que evoca a imagem da morte.
No âmbito terapêutico há uma técnica que evoca o dionisíaco
para integrá-lo à nossa vida: Os Cinco Ritmos. Os Cinco Ritmos fazem parte de
um método transpessoal de movimento expressivo que permite a movimentação
corporal de sensações, emoções, sentimentos e imagens, proporcionando maior
harmonia e criatividade. O método utiliza música, especialmente o ritmo e o
movimento como instrumentos de estimulação para cinco movimentos corporais, que
correspondem a determinadas etapas de nossa vida e retratam nossas principais
emoções, percepções a arquétipos importantes, efetuando uma passagem simbólica
por estas cinco etapas de nosso desenvolvimento emocional, visando o contato
com o inconsciente.
A criadora deste método, a dançarina e coreógrafa
americana Gabrielle Roth, o denomina também de "dança extasiante" e
"dança tribal", o que permite vislumbrar mais claramente sua ligação
com o aspecto dionisíaco. Tal ligação também se evidencia no caminho percorrido
por ela até chegar a esta técnica, pois sofria de uma grave anorexia que
refletia sua dificuldade em aceitar seu corpo, sua sexualidade e sua vida.
Passou também pela experiência de um acidente que a deixou impossibilitada de
dançar, mas descobriu que poderia ainda movimentar-se e isto Publicado em lhe
deu mais ânimo na busca pelo movimento como meio de atingir uma dimensão mais extasiante
de transformação e cura. Prestando atenção em seus movimentos e naqueles das pessoas
de quem tratava, descobriu os ritmos por onde flui a energia, através da
improvisação, das trocas repentinas de intensidade e do estilo próprio de cada
um.
Estes ritmos relacionam-se com os movimentos cíclicos da
vida, a manifestação do princípio criativo do universo. O ritmo é o elemento da
música que mais se aproxima dos movimentos do corpo e seus padrões simples,
quando repetidos sucessivamente, podem ter efeito hipnótico sobre os seres
humanos, provocando emoções e satisfação. A dança possui a qualidade de unir o
ritmo do corpo, as emoções e a música numa só expressão que se completa para a manifestação
da alma.
Os Cinco Ritmos são iniciados após um aquecimento onde
as várias partes do corpo são movimentadas livremente, ao som de músicas
intensamente rítmicas, percussivas ou instrumentais. Assim toma-se consciência
e prepara-se o corpo para a prática dos Cinco Ritmos, permitindo uma vivência
mais intensa e profunda. O primeiro ritmo é denominado fluir e é feito através
de movimentos circulares, calmos, fluidos, contínuos, focalizados no inalar da
respiração.
Este ritmo relaciona-se ao medo, à sensação de inércia,
ao ciclo de vida relativo ao nascimento, à auto-estima e ao nosso dançarino
interno. O segundo ritmo é denominado staccato, sendo curto, afiado,
percussivo, pausado e com movimentos em ângulos retos, estando relacionado à raiva,
ao ciclo da infância, à amizade, à experimentação da imitação e ao nosso cantor
interno.
O terceiro ritmo é o caos, definido como uma passagem
para o êxtase, num estado próximo ao transe. Os movimentos são desorganizados,
com um intenso chacoalhar do corpo em que somente os pés devem manter contato
com a terra. Este ritmo relaciona-se à tristeza, ao ciclo da puberdade, aos
amores, à intuição e ao nosso poeta interno. O quarto ritmo denomina-se lírico
e seus movimentos são leves, numa busca pela dimensão etérea, pelo vôo, pela
faceta lúdica e luminosa do ser. O lírico relaciona-se à alegria, ao ciclo da
maturidade, ao companheirismo, à imaginação e ao nosso ator interno. Finalmente,
o quinto ritmo é a quietude, onde o foco será acalmar o corpo, centrando e revitalizando
a mente através de movimentos lentos e pausados. Este ritmo relaciona-se à
compaixão, ao ciclo da morte e à inspiração, suscitando nosso curador interno.
Para a criadora dos Cinco Ritmos, precisamos encontrar
todos estes ritmos em nós, para podermos nos relacionar com a possibilidade de
uma cura mais profunda. Após a prática dos Cinco Ritmos, que é realizada em
silêncio, todos podem expressar suas vivências de diversas maneiras e a
expressão artística é uma delas. Esta técnica terapêutica tem sido utilizada no
âmbito da Musicoterapia, por unir música e movimento, destinando-se ao trabalho
com vários tipos de populações em centros de terapias.
Kerényi (2002), conta que, no dia de Khoés, na
celebração ateniense das Antestérias, era costume das meninas balançarem-se em
cadeiras suspensas em árvores, sendo permitido aos meninos imitá-las, mas a
Festa dos Balanços, como era chamada, era uma festa de virgens. O ato de
balançar-se está entre os elementos fundamentais da natureza humana e animal, exprimindo
a intensa alegria de viver. É a primeira brincadeira que se faz com os bebês e realiza-se
nos momentos felizes da infância ou por toda a vida. O ato de balançar-se
inaugura espontaneamente uma festa e, no caso das festas dionisíacas, era um ato
mítico e mágico, pois possibilita alcançar um estado extraordinário, uma
espécie de êxtase. Este não era um ato comum, pois o dia dos balanços, Aióra,
precedia a união da rainha com o sacerdote que representava Dioniso.
Cerimônias dionisíacas como a Festa dos Balanços, as
danças extáticas e as danças rituais em homenagem à Senhora do Labirinto,
Ariadne, permitem fazer a ligação destes atos míticos com a prática dos Cinco
Ritmos, uma vivência atual que possibilita a conexão com tais atos arquetípicos,
revivê-los e integrá-los à consciência. Na análise esta é uma condição
fundamental, pois Dioniso é chamado de lýsios, aquele que liberta, que afrouxa,
palavra esta relacionada a lysis, sílabas finais de analysis, que rompe antigos
laços para atingir um novo e mais pleno estado de consciência. Segundo as
palavras de Hillman:
"Por outro lado, a luz pode significar a luz da
natureza e a mudança da consciência através de semelhanças, onde o semelhante
atua sobre o semelhante.
Neste caso, a fragmentação seria imaginada, não a partir
do interior do ponto de vista do centramento, mas a partir do interior da própria
consciência dionisíaca que atua dentro da dissolução. O pneuma disperso do
segundo Dioniso que emerge através da dissolução seria a luz exigida pela voz,
implicando a lysis da experiência dionisíaca". (1997:189).
CONCLUSÃO
Quem conduz o tíaso torna-se Dioniso.
As Bacantes - Eurípedes.
Dos mundos subterrâneos surgiram três plaquetas de
argila sem inscrições, somente com imagens. A primeira traz o deus de pele
branca, olhos e longos cabelos negros, com uma coroa de heras na cabeça, o
tirso na mão direita e vestes brancas. Cachos de uva pendem em volta dele e, em
sua frente está uma mulher alta e esbelta, com um longo vestido também branco.
Ele a convida a participar das danças sagradas em sua honra. A mulher e o deus
sorriem um para o outro, numa expressão de cumplicidade. O deus sabe que o
caráter emotivo da mulher é o veículo para a sua transcendência e, por isso,
revela-se a ela em toda a sua glória.
A segunda traz o deus sentado num trono, com seus
cabelos e vestes resplandecentes, seu tirso na mão direita e a coroa de heras
sobre a cabeça, circundado por folhas da vinha e cachos de uvas. Ele foi
conduzido ao triunfo pelas mulheres, propagadoras de seu culto e de suas
verdades. O deus aparece como um rei e seu carisma e presença são de uma
grandiosidade jamais vista. A terceira mostra uma parede feita de pedras, muito
antiga, talvez do início dos tempos.
Esta parede está levemente entreaberta e deixa
transparecer que há algo atrás dela, um caminho para aqueles que lá quiserem
penetrar. Na parte da frente da parede de pedras há uma fonte esculpida na
pedra, da qual jorra eternamente água fresca e, logo acima da fonte, há uma
pira eternamente acesa, com fogo muito vermelho, para nos lembrar que Dioniso é
fogo e água, calor e umidade, como a vinha que nasce da terra úmida sob a luz
do sol. O que há atrás desta parede não se sabe, mas ela permanece sempre
entreaberta para aqueles que quiserem ver e penetrar no mistério. Para aqueles
que não vêem, ela está para sempre fechada. EVOÉ BAKKHÓS !
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis:
Vozes, 1995.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de
Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo:
Mirador Internacional, 1975.
ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. São
Paulo: Martins Fontes, 1993.
EURÍPEDES. As Bacantes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
s/d.
HAMILTON, Edith. Mitologia. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
HILLMAN, James (org.). Encarando os Deuses. São Paulo:
Cultrix/Pensamento, 1997.
JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Rio de Janeiro: Zahar,
1974.
KERÉNYI, Carl. Dioniso - Imagem arquetípica da vida
indestrutível. São Paulo: Odysseus.2002.
LÓPEZ-PEDRAZA, Rafael. Dioniso no Exílio: sobre a repressão
da emoção e do corpo. São Paulo: Paulus, 2002.
NEUMEISTER, Maria Eliane C. O Potencial Terapêutico do
Método dos Cinco Ritmos Aplicado à Musicoterapia. Rio de Janeiro: Monografia
final para conclusão da Graduação no Curso de Musicoterapia do Conservatório
Brasileiro de Música, 1998
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