1. Introdução
O homem faz parte da natureza, do universo com todos
os seus fenômenos. O estudo do homem é chamado antropologia que quando
realizado segundo os métodos e as técnicas científicas torna-se uma ciência
natural. Um dos ramos da antropologia se ocupa da estrutura e da natureza
física do homem assim como de seus processos fisiológicos. Este ramo tradicionalmente
é chamado de antropologia física ou mais modernamente, bioantropologia. Mas ela
é muito mais que isso: inclui todas as obras e atividades humanas. Por essa
razão pode-se dizer que é a ciência do homem e da cultura.
O homem é primeiramente um organismo biológico e
secundariamente um animal social. Conseqüentemente, estuda-lo do ponto de vista
físico é primordial para compreender sua natureza.
O objetivo da bioantropologia é conhecer as
características biológicas das populações humanas antigas e modernas. Só assim
poderá obter dados sobre a estrutura, o crescimento e a fisiologia do corpo
humano em detalhe.
A evolução humana também integra esse campo de estudo
na medida em que busca respostas para questões como: o que ocorreu e como
ocorreu. Para responder a primeira pergunta – o que ocorreu? – lança mão de
estudos comparativos dos fósseis, ou seja, dos estudos paleontológicos. Já com relação ao “como” só é possível
encontrar respostas a partir dos estudos
genéticos e das adaptações ao meio.
2. O que
dizem os fósseis
A dispersão do gênero Homo provavelmente se deu
durante um período de resfriamento global ocorrido entre 3.0 – 2.4 milhões de
anos atrás. Sabe-se que, na África, durante essa época, muitas espécies de
mamíferos ou foram extintas ou passaram por um processo de especiação ou
simplesmente se dispersaram.
O crescente número de achados de fósseis de hominídeos
e de indústrias líticas (artefatos confeccionados a partir de rochas e de
minerais) datados em cerca de 2.0 milhões de anos parece sugerir que uma
população mais antiga, também do gênero Homo, teria chegado à Ásia
Oriental em poucas centenas de milhares de anos logo após seu aparecimento na
África.
Dentre as descobertas importantes de serem citadas com
relação à dispersão humana na Ásia a partir da África, destacamos a da caverna
de Longgupo, a sudeste da Província de Sichuan, na China, datada em 1.9 milhões
de anos atrás. Os dentes do hominídeo de Longgupo possuem afinidades com os do
mais antigo Homo africano assim como os artefatos líticos são
semelhantes aos instrumentos africanos mais antigos.
De acordo com Larick e Ciochon (1996) há fortes
indícios de que o homem emergiu não tanto como conseqüência da necessidade de
se adaptar a novas condições ambientais, mas, também, para dominar novas fontes
de recursos naturais disponíveis em novos territórios.
Mesmo se nos ativermos, em nossas considerações,
simplesmente ao Homo sapiens, ainda
assim não conseguiremos explicar convenientemente a origem africana deste e sua
distribuição pelo mundo.
Por exemplo, ossos fossilizados encontrados em 2003,
numa caverna perto de Pequim (Tianyuan), foram datados de 42 mil anos segundo
os pesquisadores da Universidade de Washington, Erik Trinkous e Hong Shang.
Basicamente temos um Homo sapiens com
dentes e ossos das mãos apresentando características arcaicas. Segundo os
autores (vide Proceedings of the National Academy os Sciences, abril 2007) isso
significaria que os homens sapiens,
vindos da África, se cruzaram com homens arcaicos que já viviam na Eurásia.
Seria essa a única explicação?
Se o estudo dos homens sapiens tem tal complexidade, o que podemos dizer do estudo dos
homens fósseis pré-sapiens?
O fato é que a árvore genealógica do homem tem sido
constantemente revista, o que evidencia com muita certeza sua fragilidade.
Em 1988, Beltrão, Danon e Doria, consideraram o Homo erectus “o grande viajante”. Mais
recentemente, referimo-nos a um conjunto de crânios descobertos em uma aldeia
medieval – Dmanisi - situada junto à antiga rota da Seda, na Geórgia (país do
Cáucaso). Esse achado, que apresenta características do Homo habilis, é considerado, agora, como testemunho do primeiro
hominídeo a sair da África. Foi datado na Eurásia em cerca de 1.8 milhões de
anos.
Surpreendentemente, os crânios de Dmanisi têm boas
condições de fossilização. Um deles está praticamente completo. Apresenta
caninos avantajados, osso da testa (frontal) muito fino e nariz pequeno demais.
Com rosto que se assemelha ao do Homo
habilis encontrado na África, há 2,5 milhões de anos, possuía cérebro com
capacidade inferior a do Homo erectus.
Quanto aos artefatos, os achados se restringem a
instrumentos como “choppers”,
raspadores e outros objetos cortantes. Apesar de o Homo habilis possuir crânio pequeno, Philip Rightmire, da
Universidade de Binghamon, justificando sua longa migração, considera que o
tamanho do cérebro não é tão importante quanto a proporção entre a matéria
cinzenta e o resto do corpo. Essa proposição, no entanto, não é consenso entre
os paleontólogos.
Em princípio, na África, o Homo erectus era alto (até 1,80 m), possuía cérebro grande e pernas
longas. Já o Homo habilis tinha pernas curtas e braços
longos.
O Homo erectus
possuía bifaces com os quais deveria caçar os animais que lhe garantiriam uma
dieta rica em gordura.
O Homo habilis, ainda segundo os autores
citados, tanto da África como os de Dmanisi usavam “choppers” e raspadores para descarnar pedaços da carcaça e extrair
o tutano dos ossos.
Já houve, no passado, estudiosos que consideraram
todas as espécies de hominídeos anteriores ao sapiens como erectus.
Hoje, há quem pretenda considerar tudo o que veio anteriormente ao sapiens como habilis. Não há dúvida de que o Homo
habilis possuía crânio de certa forma semelhante ao do sapiens, embora seu cérebro não chegasse ao tamanho daquele do ser
humano atual. Já o Homo erectus
asiático era mais pesado e robusto que o da África. Além disso, não se pode
deixar de frisar que os erectus
asiáticos não apresentavam a mesma recorrência de artefatos.
Os achados da Geórgia, comandados por David
Lordkipanidze, vinculado ao Museu Estadual da Geórgia, em Tbilis, são
considerados por uns como sendo do Homo
erectus e por outros como do Homo
habilis. O fato é que há uma enorme diversidade de espécimens em Dmanisi. Um exemplo é
o achado de partes de seis indivíduos em uma mesma camada, entre elas uma
enorme mandíbula.
Acreditamos que para resolver essa dicotomia – erectus versus habilis – os
pesquisadores deveriam ter radiografado a mandíbula para confirmar se o fóssil
exibiria o molar com raiz divergente próprio do erectus. Também foram achados ossos de animais de espécies
africanas como a girafa de pescoço curto e o avestruz além de espécies
euro-asiáticas como o cervo, o cavalo, o megatério, o tigre-de-dentes-de-sabre,
o lobo e a hiena.
3. A ocupação do Continente Sul-Americano
Saindo da África e se espalhando pela Eurásia, o Homo erectus ou habilis poderia ter entrado na América. A discussão que se coloca é
se há provas de que ele ocupou o continente americano.
Infelizmente, para nós, não há fósseis de esqueletos
que nos sirvam como prova. Em conseqüência, temos que nos valer dos dados
arqueológicos (artefatos e estruturas), dos dados geológicos e, ocasionalmente,
de datações para entender e interpretar esses achados.
Sabemos que o artefato típico do Homo habilis é o “chopper”.
Mas, também sabemos que os primeiros Homo
erectus fabricavam esse tipo de instrumento, embora os bifaces sejam
considerados como o instrumento típico desses indivíduos.
Quanto aos “chopper”
podemos dizer que os de tamanho pequeno são típicos do Homo habilis – cabem na palma da mão. Em geral são feitos a partir
de seixos rolados e apareceram há 2,5 milhões de anos. Na África, e em outras
partes do mundo, podem reaparecer, mas não guardam as mesmas características
dos antigos: são “choppers” muito
maior.
No Brasil, Beltrão registrou “choppers” do tipo africano, isto é, artefatos que apresentam as
mesmas características tecnológicas daqueles encontrados e datados em mais de
um milhão de anos, portanto antigos, em três lugares distintos: Campos do
Jordão, SP, na Toca da Esperança, BA e em Itaboraí, RJ.
Em
Campos do Jordão foram-lhe mostrados alguns exemplares, que de acordo com a
informação prestada à época, teriam sido coletados junto a ossos de mastodontes
em uma depressão quando da construção de um dos hotéis, há muitas dezenas de
anos atrás.
Na
Toca da Esperança, na Bahia, Beltrão registrou um “chopper” do tipo africano no chão da Camada IV da gruta. Mais que
isso, obteve várias datações para a Toca pelo método do urânio-tório, havendo
consenso quanto à data mínima de 300 mil anos para o “chopper” encontrado (Beltrão & Danon, 1987 e Lumley et ali,
1987 e 1988). Esse método absoluto, no entanto, possui um limite de alcance, ou
seja, só data até 300 mil anos.
Em
suma, para explicar o povoamento da América há três proposições. A primeira,
que entende a ocupação do continente dentro de um esquema básico que estabelece
que a penetração teria se dado linearmente, do noroeste ao sudoeste, a partir
da Beringia até a Terra do Fogo, contornando a enorme capa de gelo continental
que cobriu boa parte do Canadá ocidental e setentrional e negando a presença do
homem na América do Norte antes de 20.000 anos A.P. (antes do presente) e antes
de 15.000 anos A.P. na América do Sul.
A segunda admite um povoamento inicial para a
América em torno do início do glacial Würm/Wisconsin, ou seja, há 125.000 anos
A.P., que teria se deslocado lentamente em direção sul no Continente Norte
Americano por um corredor livre de gelo a oeste do Canadá. Para ocupar a
América do Sul, os povoadores teriam passado, esporadicamente, em épocas de
maior aridez, e conseqüentemente de recuo da selva, pelo istmo do Panamá, em
torno de 40.000 anos A.P., dividindo-se, principalmente, para os planaltos
centrais e o SW da América do Sul.
Finalmente
a terceira e última hipótese considera que o primeiro povoamento americano se
deu há mais de 300.000 anos A.P., época do penúltimo ciclo glacial
pleistocênico, Illinois que corresponde, na Europa, ao glacial Riss. Assim, há
400.000 anos ou mais, o Homo erectus, na sua variante asiática, portando
uma indústria de seixos e lascas, avançou para o nordeste da Ásia (Cho-ku-tien,
Miao-hou-shan). Uma datação de 300.000 anos, obtida por Termoluminescência,
para a Sibéria, parece, reforçar essa entrada precoce do homem. Já, a essa
época, ele estava perfeitamente adaptado às condições ambientais da Sibéria.
Sendo caçadores e seguindo a fauna teriam penetrado na América.
4. O caso Itaboraí
4.1. O contexto geológico
O sítio de Itaboraí integra um conjunto de sítios da
Região Arqueológica de Manguinhos. Esses sítios são, de modo geral, formados
por uma sucessão de camadas quaternárias que repousam sobre sedimentos do
Neocenozóico (Formação Macacu) ou sobre o embasamento Pré-Cambriano. Sua
estratigrafia é composta por camadas areno-argilosas e cascalheiras (depósitos
de cascalho). No topo da encosta, o perfil estratigráfico estudado abrange 7 m de profundidade por 600 m de extensão, mostrando
cascalheiras e camadas intermediárias contendo artefatos.
Mais
precisamente tem-se, considerando de baixo para cima: a) a Formação Macacu, de
idade neocenozóica; b) a Cascalheira Inferior, terraço descontínuo de cascalho
onde se encontram os artefatos; c) colúvio vermelho, camada argilo-arenosa na
parte mais alta do Morro da Dinamite, que pode ser subdividida ou não em Colúvio Vermelho I
(inferior) e Colúvio Vermelho II (superior); d) a Cascalheira Superior, terraço
e seixos bastante contínuos.
Separa o Colúvio Vermelho do Colúvio Amarelo, podendo também estar presente
entre os dois colúvios vermelhos; e) o colúvio Amarelo, camada argilo-arenosa
que, como o Colúvio Vermelho, pode ser subdividido em Colúvio Amarelo Inferior
e Colúvio Amarelo Superior. Todas as camadas de colúvio e as cascalheiras
contêm artefatos.
No caso
particular do Sítio de Itaboraí os processos sedimentares foram mais atuantes e
o paleo-declive acentuado provocou o deslocamento das camadas para os bordos do
Morro, retendo, no cume das elevações, apenas umas poucas camadas. Por essa
razão, o perfil que nos bordos da depressão é mais profundo, apresenta
cascalheiras em muito maior número. Assim, embora o homem pré-histórico tenha
habitado o topo, é nos bordos que se poderá melhor avaliar a evolução
tecnológica da indústria lítica (única presente no sítio). Tanto as camadas
coluviais quanto as linhas de seixos (cascalheiras) possuem artefatos.
Vale
observar que, por se tratar de rampa de colúvio, a interligação
artefato-estratigrafia é muito complexa. Assim, por exemplo, na parte principal
do Sítio de Itaboraí - Morro da Dinamite - as camadas podem ser mais recentes
do que os artefatos nelas contidos. Além disso, os processos sedimentares que
atuaram na formação das rampas de colúvio de Itaboraí fizeram com que fossem
depositados em uma mesma camada artefatos de Tradições diferentes.
As cascalheiras de Itaboraí liberaram exemplares de megafauna
pleistocênica (Price & Campos, 1970) de modo geral fragmentados e friáveis;
entretanto, foram encontrados dentes completos de mastodontes (+ Haplomastodon
waringi (Holland, 1920)) e um grande fêmur completo de preguiça gigante (+Eremotherium
laurillardii (Lund,1841)). Esses animais indicam idade pleistocênica para o
depósito.
4.2 Os sítios arqueológicos de Itaboraí
Vários setores apresentando vestígios arqueológicos
foram encontrados nos bordos da depressão. É o caso daquele próximo a área
correspondente a um significativo derrame de larva datado em 52 milhões de
anos. São importantes registros da presença humana preservados em uma das
bacias sedimentares mais importantes do Estado do Rio de Janeiro - a bacia
sedimentar de São José de Itaboraí. Esta bacia teve sua origem no início do
Terciário (Paleoceno) como resultado das atividades tecto-magmáticas que atingiram
a região desde o Período Cretáceo.
As evidências de vida ai encontradas correspondem ao
período que sucedeu ao da extinção dos dinossauros. Fósseis de um mamífero
xenungulado, provavelmente o mais velho da América do Sul, com idade que
alcança cerca de 65 milhões de anos, foram ai encontrados. Além deste, vários
outros fósseis foram, também, recuperados, inclusive exemplares que datam do
pleistoceno (+Eremotherium, +Haplomastodon e o +Testuto sp.).
A presença humana na região data, mais ou menos, desta
mesma época. Tal afirmação se apóia nesses diversos achados arqueológicos
identificados nas superfícies colinosas, em encostas relativamente íngremes,
associadas à morfologia de “rampas”. Foram as descoberta dos fósseis
pleistocênicos, em 1969, nas camadas conglomeráticas existentes ao sul da bacia
calcária, que ensejaram uma série de prospecções arqueológicas (1974), levando
à descoberta desse importante sítio arqueológico. As escavações foram iniciadas
apenas em 1979, tornando-se sistemáticas a partir de 1981.
Na bacia há, efetivamente, pelo menos quatro setores
de significativa ocorrência arqueológica. O primeiro se encontra no bordo
leste, denominado Morro da Dinamite. O segundo situa-se no bordo norte, nomeado
Sítio do Sílex. O terceiro, no bordo sul, foi chamado de Sítio Paleontológico
e, finalmente o quarto, Morro Verde, localizado, também, no bordo norte.
O sítio arqueológico de Itaboraí, descoberto por
Beltrão em 1970, pode ser considerado um sítio litorâneo localizado
estrategicamente em uma elevação, demonstrando que o homem pré-histórico
evitava o confronto, nas planícies, com a megafauna pleistocênica em uma região
onde as grutas são raras.
A
parte principal do sítio está situada sobre uma colina de 110 m de altitude (Morro da
Dinamite) no bordo da Bacia Calcária de São José de Itaboraí, constituindo-se
em um depósito coluvial com uma espessura de cerca de 12 m.
A escavação conduzida no
alto do Morro da Dinamite revelou uma fogueira arqueológica acompanhada de
artefatos líticos na parte mais alta da camada superior que, datada pelo método
do C14,
forneceu uma idade de 8.100 ±75 anos (Beltrão, Danon, Teles, 1982).
Entre a formação neocenozóica Macacu e a fogueira
datada de 8.100 anos A.P., dentro do conjunto do depósito de 12 m, foram encontrados vários
níveis que apresentam blocos trabalhados misturados com outros blocos naturais,
sobretudo blocos de quartzo. Também foram achados instrumentos de sílex,
principalmente no bordo norte da bacia (Sítio do Sílex) e no bordo sul (Sítio
Paleontológico), próximo do local onde foram encontrados os fósseis
pleistocênicos.
A coleção lítica decorrente dos trabalhos de campo
realizados compreende cerca de 1.000 peças. Esse conjunto reúne peças do Sítio
do Sílex (1979), do Morro Verde (1984), do Morro da Dinamite ou Morro Alto (em
dois setores distintos: no topo e na face oeste da colina – Paredão da
Cascalheira) (1979, 1980, 1981, 1982, 1983, 1984, 1986) e do Sítio
Paleontológico (1983).
Os dados geológicos e arqueológicos disponíveis para o
sítio de Itaboraí sugerem o registro de uma ocupação muito antiga, anterior ao
Wisconsin, podendo alcançar, pelo menos, o Pleistoceno Médio, talvez o
Pleistoceno Inferior.
Por essa razão, Beltrão e colaboradores vêem buscando
proceder a revisão crítica da ocupação humana na América assim como dos
conceitos sobre o nível de desenvolvimento cultural do homem sul-americano,
especialmente do brasileiro. Têm
igualmente apontado para a urgente necessidade de se estudar sítios
arqueológicos situados em rampas de colúvio apesar de sua complexidade, além do
aprofundamento do trabalho transdisciplinar.
Por outro lado, a intensificação das pesquisas é de
grande importância na medida em que os dados que vierem a ser obtidos
fornecerão melhor leitura dos eventos geológicos ocorridos no Cenozóico.
Esses estudos assumem primordial importância tendo em
vista as características especiais da bacia de São José que guarda uma fauna
cenozóica única concentrada em uma pequena área, tornando-se referencia
obrigatória para toda e qualquer interpretação da Geohistória do Cenozóico
Regional e mesmo Continental principalmente no que diz respeito à evolução da
fauna de mamíferos.
5. Cronologia
Há
artefatos em Itaboraí que apresentam pátina brilhante e amarelada enquanto
outros, pátina incolor e escorregadia. Preferiu-se fazer uma distinção entre as
pátinas, que recobrem os artefatos, e as manchas climáticas, depositadas na
superfície destes, embora ambas possam servir como indicadores cronológicos.
A pátina propriamente dita recobre toda a superfície
dos artefatos e não desaparece quando é lavado. As manchas climáticas ficam
restritas a algumas partes da superfície dos artefatos e de modo geral tendem a
sair quando lavadas. Algumas manchas climáticas têm sua origem, ao que parece,
nos sedimentos que sofreram precipitações pelos óxidos de ferro. (Beltrão et al.,
1982).
Segundo Maria
R. Mousinho de Meis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, depois de
quinze anos de estudos, concordou que as manchas climáticas de Itaboraí eram
muito antigas. Segundo sua avaliação essas manchas climáticas foram depositadas
sobre os artefatos no Pleistoceno Médio. Sugeriu então uma avaliação, à guisa
de confirmação, a partir do grau de maturidade dos sedimentos. As duas técnicas
utilizadas apontaram para a possibilidade de idades ainda mais recuadas,
provavelmente situadas na faixa cronológica correspondente ao Pleistoceno
Inferior.
As mais
antigas manchas climáticas, a julgar pela posição estratigráfica, pareciam ser as da cascalheira inferior, o
que não se confirmou pelas técnicas empregadas para avaliação da maturidade dos
sedimentos. São de cor vinho e, nos artefatos de quartzo sub-hialino, aparecem
sobre uma pátina acinzentada parcialmente brilhante, parcialmente opaca. Nos
artefatos de sílex a pátina é opaca. Há casos em que os sedimentos da camada
vermelha, de aspecto mosqueado, (Formação Macacu - idade Neocenozóica) aparecem
grudados em pequenas porções da superfície dos artefatos da cascalheira
inferior.
Os
artefatos de quartzo sub-hialino da camada vermelha, quaternária, apresentam-se
manchados de vermelho por toda a superfície, embora não uniformemente. São,
igualmente, muito antigos, embora não tanto quanto os artefatos de quartzo
sub-leitoso ou sub-sacaroidal da camada castanho-amarelada.
Neste caso, a mancha climática se confunde com a
pátina propriamente dita. Em razão da exposição dos artefatos aos sedimentos
por um período muito longo, a mancha climática vermelha, transformada em
pátina, não desaparece mesmo quando lavada e penetra nas micro-fraturas
existentes na superfície dos artefatos. A julgar pelas mencionadas técnicas
indicativas de maturidade dos sedimentos e pela análise tipológica, os
artefatos com manchas climáticas amarelo-alaranjadas, que provêm do colúvio
castanho-amarelado, são mais antigos que os do colúvio vermelho. (Fig.2)
A
utilização das manchas climáticas como método de datação relativa, conjugada às
técnicas indicativas de maturidade dos sedimentos, apresentam as seguintes
vantagens:
1º.) poderão ser usadas por geólogos e arqueólogos na
determinação relativa de idades;
2o.) artefatos muito simples, como “choppers” e lascas
unifaciais resultantes de percussão violenta que caracterizam as ocupações mais
antigas da humanidade, podem ocorrer, eventualmente, em faixas cronológicas
muito recentes. As manchas climáticas indicariam as ocupações mais antigas.
3o.) em períodos mais recuados as transformações
tipológicas são menos marcantes tornando-se difícil, por exemplo, reconhecer se
um artefato é do Pleistoceno Inferior ou do Pleistoceno Médio ou ainda dentro
do Pleistoceno Médio quais seriam os mais antigos. As manchas climáticas
parecem indicar que, dentro do Pleistoceno Médio, os artefatos antigos foram
tingidos de amarelo-alaranjado (ou seria Pleistoceno Inferior?).
Todas as pesquisas já realizadas no
Sítio de Itaboraí apontam para a necessidade de se continuar com os estudos
litoestratigráficos em escala pontual (na escala de estudo do sítio), o mesmo
se verificando para os estudos em escala regional, em uma tentativa de
estabelecer correlações com outras colunas litoestratigráficas já definidas
para a região. Esses estudos litoestratigráficos em diferentes escalas podem
ser aliados a outros métodos de cronologia relativa, tais como o paleomagnetismo,
na medida em que ainda prossegue a indisponibilidade de material que permita
datações de uma forma absoluta. Esta é uma etapa de trabalho que poderia ser
levada a termo o mais breve possível, de forma tentativa, na área já estudada e
para a qual já se dispõe de uma boa quantidade de dados.
Por outro lado, outras providências podem se mostrar
convenientes para a obtenção de respostas satisfatórias às interrogações que se
apresentaram durante este estudo do material arqueológico do Sítio de Itaboraí.
Evidentemente, uma será a continuação dos trabalhos prospectivos de campo, com
o fim de descobrir outras áreas ou sítios arqueológicos em Itaboraí e suas
vizinhanças. Neste caso, o aumento da quantidade de material arqueológico a ser
analisado levaria a um crescimento proporcional de conclusões.
A
continuação dos estudos da indústria de cada sítio, associada aos estudos
litoestratigráficos permitirá integrar o conhecimento arqueológico presente
sobre o Sítio de Itaboraí a um quadro mais compreensível, englobando as
informações cronológicas, geomorfológicas e mesmo dentro de uma perspectiva
mais extensa, antropológicas.
6. Conclusões
A árvore genealógica da espécie humana
está longe de ser delineada com propriedade. Novos achados causam turbulência
no mundo científico.
O que parece certo é que o homem seguiu
a caça que há centenas de milhares de anos atravessou Bering nos dois sentidos.
Sítios sul-americanos em grutas seladas
pela marga podem ser muito antigos (Pleistoceno médio), como no caso da Toca da
Esperança. Igualmente antigos podem ser aqueles sítios localizados próximo aos
lugares onde em épocas pretéritas houve erupções vulcânicas ou atividades de
derrame como no caso de São José de Itaboraí.
Desconhecemos que exista em algum outro
lugar do mundo um sítio como o de Itaboraí: a) profundidade de varais dezenas
de metros contendo a partir da base artefatos do tipo “chopper”, de lasca ou de seixo rolado evoluindo da base à
superfície com uma tecnologia encontrada em outras partes do mundo mas em sítios
espaçados; b) bifaces, machado sobre lasca, grandes raspadores, facas com
dorso, lascas pré-Levallois, lascas de fácies Levallois, perfuradores,
raspadores, facas, buris; c) núcleos volumosos a partir de blocos, núcleos
cônicos, núcleos piramidais, núcleos piramidais truncados, núcleos tabulares,
núcleos bipiramidais, núcleos poliédricos e núcleos esferóides.
Em nossa opinião a ocupação humana em
Itaboraí data de, pelo menos do Pleistoceno Médio, podendo alcançar o
Pleistoceno Inferior.
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